(foto: reprodução / internet)

 

Ano passado, o Festival de Cannes foi palco de uma polêmica que, apesar de parecer boba, revela uma das principais discussões envolvendo as produções audiovisuais – dentre elas, obviamente, o cinema e a TV.

É que a Netflix, essa gigante do entretenimento, tem revolucionado a forma de acesso ao conteúdo de vídeo. Disso, todos nós sabemos. O sintoma mais explícito foi o fim das videolocadoras, por exemplo. Para quê perder tempo se deslocando até uma loja física para disputar os exemplares de DVD e Blu-ray com outros frequentadores, correr o risco de alugar mídias arranhadas, depois ter que voltar para devolver o disco no dia seguinte, se podemos ter um catálogo vastíssimo de filmes na ponta dos dedos, a um click do controle remoto? Sem disputar com ninguém, sem prazo para devolução.

Claro, sempre existirão os românticos que entendem a beleza e o prazer de pegar 5 catálogos e 2 lançamentos na sexta-feira à noite, para devolver só depois do feriado prolongado. Mas, como eu disse, a extinção desses pequenos prazeres é só o aspecto mais visível (e, talvez, superficial) do impacto da Netflix.

Porque acontece que a empresa de streaming não só disponibiliza conteúdo para seus assinantes. Ela também passou a produzir esse conteúdo por si mesma, como um grande estúdio qualquer. Produções de alta qualidade, com orçamentos altíssimos, grande elenco, diretores premiados. Natalie Portman está na Netflix. Ben Stiller, Drew Barrymore, Timothy Oliphant, David Ayer, Will Smith, Adam Sandler, Keanu Reeves, Vince Gilligan, Paul Rudd, Robert Redford, Jane Fonda, Gerard Depardieu, Noah Baumbach, Dustin Hoffman (Selton Mello e Padilha, mais recentemente, também estão lá na sessão “polêmicos”. A mesma sessão que mandou Kevin Spacey embora, outro dia desses, se é que você me entende). A lista é enorme. Está todo mundo na Netflix, em produções originais e exclusivas. Quem não está, um dia estará.

E aí entra Cannes. Porque se um diretor como Noah Baumbach pode produzir um filme como “Frances Ha” de forma quase independente e ganhar uma porção de prêmios com ele, o que impede que um filme como “The Meyerowitz Stories”, do mesmo diretor, também arranque aplausos nos grandes festivais, levando a assinatura Netflix? Já parou para pensar? Um filme que só está disponível na sua televisão, num serviço de streaming, poder levar uma “Palma de Ouro”?

Eu comecei falando que ano passado a polêmica rolou solta em Cannes, mas não concluí o raciocínio. Foi por isso. Os filmes “Okja” e “The Meyerowitz Stories”, produções originais Netflix, foram exibidos no festival de cinema francês sem nunca haverem sido exibidos num cinema. Se não foram exibidos num cinema, podem participar de um festival de cinema? Ano passado, ninguém soube dar a resposta. Os filmes foram aplaudidos por uns, vaiados por outros, mas acabaram cumprindo sua jornada. Esse ano, a organização de Cannes chegou a um veredito e apresentou sua primeira não-selecionada: Netflix.

Na verdade, chegou-se à decisão de que só participarão do festival os filmes que tenham sido exibido nos cinemas franceses. Logicamente que a carapuça serviu direitinho na cabeça da produtora de conteúdo streaming, que se recusa a exibir suas produções em cinema. Afinal, não é esse o nicho dela.

E porque isso é importante?

Primeiro, porque a partir desse deslocamento de referencial, passa-se a questionar a própria importância do prêmio e do festival em si. Artistas como Woody Allen e Bob Dylan, por exemplo, já fazem isso individualmente ao recusarem-se a participar de cerimônias do Oscar e do Nobel, respectivamente. A Netflix elevou isso a um patamar mais elevado. Se uma excelente obra não é reconhecida por Cannes, por exemplo, isso a torna menos genial? É realmente necessária a chancela de grandes festivais (que não deixam de ser grandes marcas, com intuito comercial e tudo) para sobreviver, artisticamente falando?

Segundo, porque nos desloca a nós mesmos como espectadores. E o cinema, por tabela. Porque desde o seu surgimento, assistir filmes é uma experiência coletiva. Parte da graça de assistir a um filme está na imersão coletiva. Faz diferença o mar de gargalhadas, a vaia ou a salva de palmas no transcorrer de cada sessão. Algo que nunca vai acontecer numa “sessão Netflix”. É como se o cinema perdesse uma parte de si mesmo na exibição doméstica. Por outro lado, entender a linguagem e a mística cinematográfica como algo hermeticamente fechado, imutável, é negar toda a evolução que a sétima arte sofreu até aqui. E continua sofrendo. Não deveria haver espaço para conservadorismos.

Há que se convir, entretanto, que a questão é bem mais simbólica do que efetivamente artística ou comercial. A Netflix representa uma espécie de vilã frente ao cinema tradicional. Um cinema movimento social. Cinema pulsão, interação, participação coletiva. Os mais radicais levantam foices até contra os cinemas de shopping! Consideram como experiência cinematográfica perfeita apenas os cinemas de rua. O que dizer de uma plataforma de streaming?

O assunto ainda está em construção. Porque o cinema, em si, está em constante evolução – e isso inclui as formas de produção e exibição de obras. Hoje em dia, é possível assistir um filme como “O senhor dos anéis” na palma da mão, na tela do seu smartphone. Como resistir a isso?

O que está passando batido é uma segunda decisão da organização de Cannes. Essa, ainda mais polêmica: em 2018, estão proibidas as selfies no tapete vermelho. Agora é que eu quero ver!