Quando a Serraria do Zé Português virou Madeireira Lisboa, já ocupava quatro lotes na Pouso Alto com a 504, lá na Vila Operária. Começou com um galpão, no lote alugado, da esquina, ao lado da Padaria Nossa Senhora Aparecida, do Levy Padeiro. Comprou o lote e foi comprando os outros em volta.

No começo era uma máquina circular, uma desempenadeira, três bancões com tornos,serrotes, martelos, enchós, e plainadeiras. Fabricava mesa, prateleira, cadeira, guarda louça, cama e guarda roupa. Começou trabalhando sozinho, depois contratou o Vicente e o Wesley, irmão da Deusa. As más línguas diziam que o português estava de olho na Deusa, irmã do Wesley e por isto a contratação. Mas deu certo o Wesley trabalhou com ele até se aposentar e ele se casou com a Deusa. A chamava carinhosamente de “Minha Deusa”.

Nos tempos da serraria era conhecido por Zé Lisboa, Zé Português ou Zé da Serraria. Depois que ficou rico passou a ser o senhor José Martins de Sousa Zenha. Os mais próximos o chamavam de Seu Zenha. Era um bom patrão, boa pessoa e dono de tino empresarial raro. Veio de Portugal na adolescência com a família pobre, trabalhou em outra marcenaria, aprendeu fazer móveis, alugou o lote da Pouso Alto e foi só crescendo.

Como trabalhava o dia inteiro, a escola ficou em segundo plano, mas completou o ginásio, lá escola noturna do Professor Solon, onde a mensalidade era baratinha. O Professor Solon era um jovem de 19 anos, metido com política e conseguiu com a influência, as instalações do Grupo Escolar Damiana da Cunha para montar sua escola a noite, quando a unidade ficava fechada. O pagamento da locação era através de bolsas para os mais pobres, mas o Zé Lisboa não tinha bolsa… pagava a mensalidade.

Na sua formatura ginasial, o Professor Solon anunciou que a escola seria fechada. Ele era do PSD, de Pedro Ludovico e o Hélio de Brito da UDN havia sido eleito prefeito e como o Grupo Escolar era municipal, o contrato não foi renovado. Mas o Professor Solon fez bela carreira política. Morreu jovem em um acidente, quando era deputado. Um dos auditórios da Assembleia Legislativa tem o seu nome: Auditório Deputado Solon Amaral.

Seu Zenha mudou a serraria para madeireira para aproveitar o novo nicho de mercado. Os fazendeiros do interior de Goiás, os comerciantes paulistas, os sírios e libaneses estavam invadindo Campinas, naquele final da década de 1950. Os barracões de três cômodos construídos nos lotes do Programa de Habitação da Nova Capital de Goiás, do prefeito Venerando de Freitas Borges, em que a população recebia o lote, com o compromisso de construir um barracão e pagava mais 36 prestações baratinhas para receber a escritura, estavam sendo transformados em grandes casas.

Os primeiros moradores vendiam as moradias para aqueles que estavam chegando, com melhor condição financeira. A Vila Abajá, Vila Operária, Fama, Setor dos Funcionários Públicos, Bairro Bonfim, Vila São Paulo, Setor Perim foram transformadas num grande canteiro de obras. Barracões caiam e casas grandes eram erguidas no lugar.

Seu Zenha acabou com a serraria e criou a madeireira, que fabricava tacos para piso, forro paulista, portais, portas, caibros e ripas. Chegaram muitas maquinas novas e quando ele já havia comprado todo o quarteirão e mais o outro do outro lado da 504, já vendia de tudo para construção. No quarteirão de baixo ele fez o depósito e na madeireira ficavam a indústria e a grande loja, que funcionou até sua morte, em 2006.

Desde que virou madeireira passou ter tanta gente trabalhando que tinha até um sirene que tocava as 07:00, 11:00, 12:30 e 17:00. Anunciando os horários de saída e entrada dos empregados. Desde os tempos da serraria até meados da década de 1970, às entregas eram feitas pelos carroceiros. As carroças ficavam do outro lado da Pouso Alto enfileiradas.

O comprador ia lá acertava com o primeiro da fila, o valor do frete e a fila andava. Era bem organizado. Tinha até um tambor cortado no meio, cheio d’água, bem na esquina da Pouso Alto com a rua do Comércio para os cavalos beber água. A água dos carroceiros vinha nos carotinhos de madeira, pendurados na parte de trás da carroça. Adelino, Currupio, Tião, Bigode, João, Chico são alguns que me lembro. Mas tinham outros. Todos eram chamados de Carroceiros, após o primeiro nome.

Chico Carroceiro vivia um momento difícil. Era relaxado com a arreata. O Currupio e o Bigode já havia falado pra ele comprar uma qualheira que aquela, toda enrolada de trapos de saco ia quebrar. Tinha até uma promoção na Selaria Goiás, do seu Alcides. Comprava a qualheira e ganhava a chicote. Mas o Chico só prometida que amanhã iria lá e todo amanhã a lenga-lenga se repetia e a qualheira ia ficando. Pelo menos não machucava o pescoço da Pancosa, égua pampa de vermelho e branco, por quem, ao contrário do restante, tinha muito zelo. Além de bonita era muito boa de carroça.

Morava na rua dois, uma esquina abaixo da então serraria. Saiu segunda de manhã, voltou para o almoço e a Gertrudes lhe disse que a tarde ia limpar o salão da igreja. Havia passado para crente e se responsabilizou pela limpeza do salão no início da semana, após os cultos dos domingos. Aquela gente fuxiqueira de campinas inteira falava que ela tinha passado para crente porque havia pecado demais antes de conhecer e se casar com o Chico.

Já tinha embuchado quatro vezes e nada de segurar o menino no bucho. A gente faladeira dizia que tinha tomado chá de fedegoso com carqueja para abortar algumas vezes, antes de entrar na vida do Chico e por isto Deus não deixava ela ter filhos, agora que queria. Era cozinheira lá no Buteco Tem-Tem, que por sinal só tinha salgados, cachaça e guaraná e servia PF. Era neta de índio: morena do cabelo lisinho, olhos espichados igual de japonês, boca grande e beiços grossos. Baixinha, mais pra gorda do que pra magra e tinha uma curvatura na coluna que empinava a bunda pra trás. Veio de Crixas sozinha.

Lá no Buteco o Chico a conheceu e como morava sozinho, logo estavam morando juntos. O Padre Faria falou pra ele que era pecado e determinou que casasse. Ela topou e se casaram. Antes do casamento seus companheiros de pinga e carroça, Adelino e o Tião disseram pra ele pensar melhor e esperar um pouco. Mas estava apaixonado: “bonita, cozinha bem, cuida bem da casa, lava nossa roupa e gosta de mim. O resto ficou no passado” – disse.

“Mesmo se arrancar as unhas e as presas da onça, tratar dela com muita carne todo dia, uma hora ela tenta te comer. É da natureza dela e o que é da natureza não muda” – atalhou o Adelino com o sinal positivo do Tião Carroceiro, sacudindo a cabeça pra cima e pra baixo.

“Não vou casar com uma onça” – disse resoluto o Chico. Ia convidar os dois para ser padrinhos do casamento, mas aquela conversa o fez mudar de plano. Levou o Vicente com a Noêmia, Deco com a Terezinha, Akiô com a Miokó.

Comeu, saiu para trabalhar e quando entrou no rabo da fila das carroças, a qualheira quebrou: “Praga daqueles dois” – pensou. Mas como segunda feira era dia de muitos fretes, tinham várias carroças na fila. Pediu pro Bigode ir puxando devagar a Pancosa na fila e foi correndo pra casa, pegar a bicicleta, para ir na Selaria Goiás comprar a qualheira e ganhar o chicote. A porta da sala do barraco estava trancada, com a chave por dentro.

Deu a volta, passou o canivete pelo vão do portal da cozinha e abriu. Só atinou para o que estava acontecendo porque ouviu um “psiu” bem baixinho vindo do quarto, que tinha um chitão colorido que servia de porta. Meteu a mão no pano e a Gertrudes estava sem roupa: “O que foi? Porque voltou?” – quis saber a Índia. “Estou mudando a roupa para ir limpar a igreja” – completou. Chico não disse nada. Foi no pé de goiaba do terreiro, onde deixava o facão entalhado na forquilha e voltou.

Levantou a beirada do lençol e o Natan Preto saiu de lá numa velocidade, segurando calça, botina, camisa. Já tinha vestido a cueca samba canção e o jeito foi acelerar a marcha rua dois abaixo com o Chico atrás, tentando matar ele com o facão. Mais magro e veloz o negrão fugiu e sumiu também. O Chico contava papo que tinha matado ele, colocado o corpo na carroça é jogado lá para bandas do Caveirinha, do outro lado da Capuava. Mas o Currupio descobriu que era mentira pois viu o Natan Preto todo garboso e bem vivo, na festa de Trindade.

Acabou o casamento do Chico. Miguel Tomatinho não quis a Gertrudes de volta no Buteco Tem-Tem. Era amigo do Chico Carroceiro e não tinha como aceitar. O jeito para Gertrudes foi ir pro buracão da Dita Pimenta, que ficava ali perto, na J-1, hoje Bernardo Sayão. Chico não quis saber de vingança. Logo já estava morando com a Ricarda, viúva do Caroço, assassinado pelo Marcelão lá no carteado do Anta. Ricarda era mais velha do que o Chico. Os dois filhos eram casados, muito pobres – o pai viciado em baralho não deixou dívidas, nem herança alguma. Eles acharam bom ela ir viver com o Chico.

Aos sábados, a Lisboa fechava ao meio dia. O Chico ia pra casa, dava banho na Pancosa, passava a raspadeira no pelo. Tomava banho, um gole de Tatuzinho para abrir o apetite, almoçava e saía de bicicleta. Sábado à tarde era o dia que o Padre Faria ouvia as confissões dos fiéis, lá na Matriz de Campinas e era pra lá que o Chico dizia ir. Ricarda não ia mais a igreja. Desde que o marido foi assassinado, brigou com Deus. Era calada, discreta e não se incomodava do companheiro ir confessar. Quando fizesse as pazes com Deus passaria ir com ele.

Só que o Adelino quando viu o amigo carroceiro pedalando todo cheiroso, para o lado oposto da Matriz, J-1 acima, se escondeu detrás do muro da Máquina de Limpar Arroz do Isaac e ficou observando. Viu quando o Chico torceu o guidão para o portão do Buração da Dita Pimenta. Não foi atrás. Numa tarde da outra semana, entrou com cuidado no Buracão e foi falar com a Dita: “Dona de bordel não se mete na vida das mulheres, mas também não mente.

Uma semana depois que a Gertrudes chegou aqui, o Chico veio atrás e desde então ela é manteúda dele. Vem aos sábados, trás o dinheiro da semana, se deita a tarde toda com ela e vai embora quando ouve o sino da Matriz anunciar o fim das confissões. Ele pensa que não sei que ele sabe que durante a semana ela se deita com outros homens, mas dona de bordel não tem nada haver com isto. Já disse pra Gertrudes que se ele perguntar falo a verdade, mas ela garante que ele nuca vai querer saber que outros sabem que ele sabe a verdade” – concluiu a cafetina. O Adelino não perguntou mais nada e não contou nada pra ninguém.

Mesmo assim todos ficaram sabendo, inclusive a Ricarda, que fingiu não saber. Filhos casados e pobres, marido assassinado, não tinha pra onde ir. Lá no barraco não faltava nada. Pequeno era fácil de cuidar. Cozinhar e lavar roupa era serviço que mulher tinha de fazer em qualquer lugar. O melhor era deixar quieto. E deixou. Aos 68 anos, já no começo da década de 1970, Chico ainda trabalhava com a carroça.

A Pancosa já tinha morrido e a Mulata, uma égua preta, também bonita era sua companheira. Foi colocar um saco de cimento na parte traseira da carroça que empinou e o saco caiu em cima da canela direita. A perna foi quebrada no local. Não colou mais. Ricarda arrendou a carroça para o Mauvão, seu filho mais velho e os dois dividiam o lucro.

Com o dinheiro ela cuidava do Chico, que só se levantava pra tomar banho. Até as necessidades fazia no pinico. Embora com mais de 70 anos Ricarda continuava caladona e forte. Um dia apareceu por lá a Gertrudes. Toda acabada, bêbada e banguela: “Posso ver o Chico?” – perguntou.

“Pode” – respondeu com voz calma a Ricarda. Gertrudes entrou sem ser acompanhada pela Ricarda, saiu catingando cachaça uma meia hora depois. Ricarda não perguntou, o Chico não falou e ninguém sabe o que os dois conversaram neste último encontro. Chico morreu em janeiro de 1974, bem no dia do ano novo. Em julho do mesmo ano Ricarda também morreu.