Acho que nunca houve um lugar no mundo com tantos bares, como em Campinas, naqueles anos de 1950. Tinha mais bares do que loja de turco, na 24 de outubro, mais bares do que bicicletas e lambretas pelas ruas. Em cada esquina tinha um e entre um e outro tinham os armazéns. Naquela época os compradores tinham a caderneta, uma miniatura de caderno, onde durante o mês os compradores iam tendo por parte suas compras anotadas e ao final do mês, fazia a soma e eles pagavam. Os mais distintos tinha só a caderneta deles; para aqueles que tinham fama de maus pagadores, o dono do armazém tinha uma outra caderneta que ele mantinha na gaveta do balcão. Quando ocorria a compra, ele anotava nas duas cadernetas. Eram raros os casos em que alguém deixava de pagar e quem dava o nó, ficava sem ter aonde comprar na caderneta, pois quem ficava no prejuízo cuidava de mandar avisar aos donos dos outros armazéns, que aquele fulano não pegava. Ser mau pagador naquela época não era bom negócio. Aquele cartazinho anunciando “não vendo fiado” não era visto em armazém nenhum, mas toda venda no prazo só era possível para quem abria a caderneta com o proprietário do estabelecimento. A cadernetinha era o cartão de crédito daquela época. Qualquer membro da família podia comprar com ela. Além dos armazéns, os açougues também tinham as cadernetas. Os armazéns compravam em dois atacadistas de secos e molhados, que ficavam próximos, lá na baixada da Anhanguera: O Irmãos Machados e Companhia Ltda e o Irmãos Sousa e Companhia Ltda. Não tinha entrega no estabelecimento. Por isto as imediações dos dois atacadistas ficavam rodearas de carroças que faziam o frete. Já os armazéns faziam a entrega nos domicílios, com a bicicleta de carga. Era um veículo bonito: tinha o quadro, com a coroa, cilim, corrente ligada a catraca na roda traseira e o guidão com as artes do freio, como qualquer bicicleta. Não existia a cargueira com freio de pé, aquele que gira o pedal para trás e trava a catraca por dentro. Freio de pé só brecava a roda de trás e como o peso das cargueiras era todo na frentes, se freasse só a roda de trás, a aranha deslizava e o tombo era certo. Ela tinha a garupeira como as outras e uma grade que fazia um quadrado com pouco mais de um metro de cumprimento pelo mesmo tamanho de largura. Ali era colocado um caixote que ia na altura do guidão, maior do que o suporte que o sustentava. O caixote era amarrado com cordas no suporte. Na garupeira também era amarrado um caixote menor, que também deixava o armazém cheio até a tampa. Compras grandes eram entregues nos domicílios. Os que ficavam para o mesmo lado, tinham as compras separadas em caixas de papelão e ia tudo numa bicicleta só. Fazer as entregas nas cargueiras era serviço pra “nêgo” forte – era muito peso de cada vez: “Nêgo” fraco não davam conta. E mesmo os fortes viviam com rego molhado. Quando levantavam a bunda do cilim para pedalar na subida, dava pra ver as calças molhadas atrás. Era tão comum que ninguém dava importância para o detalhe. Época em que moleque com mais de 13 anos era empregado pelos pais, para se acostumar com o trabalho e dar gente boa. Mas nenhum deles dava conta de conduzir a cargueira. Este era um serviço de adulto e mesmo assim, de vez em quando era vista pelas ruas alguma com o bico no chão e a garupeira no ar. Descer a danada para o lugar certo era impossível, sem auxílio de alguém, mas todos auxiliavam os entregadores.
Rosemar trabalhava no Armazém Sertanejo, lá da Geraldo Nei, perto do Café Bandeira. Tinha 22 anos e era forte….bem forte.
Nos bares, poucos tinham caderneta e assim mesmo, só para a pinga, o salgado, bolo, café, pingado e pão com manteiga. A sinuca era no dinheiro e as apostas também.
Os armazéns abriam às sete da manhã e fechava às cinco da tarde. Os bares abriam a uma da tarde e só fechavam quando o último bêbado e os últimos sinuqueiros iam embora. Rosemar saia do armazém, ia em casa, lá no Dergo, tomava banho, mudava a roupa, jantava e rumava para o Bar Taco de Prata, que ficava na José Hermano, bem onde começava a cerca de pau roliço do Cemitério do Bairro Bonfim. Como tinha a confiança do patrão Rosemar ia e vinha pra casa na cargueira e nela ia para a jogatina.
O Cemitério existia desde que Campinas apareceu no mapa e continuou após a cidade virar bairro de Goiânia. Só foi fechado, no início dos anos de 1960, quando o prefeito Hélio de Brito construiu o Cemitério Parque, lá depois do morro do Perim, pelas bandas do Urias Magalhães. Desde a construção do Cemitério Santana, que no Cemitério do Bairro Bonfim, chamado de Cemitério Velho, eram enterrados os pobres. Os ricos eram sepultadas no Santana. No Velho não tinha carneira, era só cova, já no Santana não tinha cova, era só carneira. Os caixões eram levados das casas para os Cemitérios carregados pelas pessoas. Eram três de cada lado e iam se revezando. Quando ouviam a expressão: “Passam seis, outros seis pegavam na alça e substituíam os que estavam carregando. O povo ia atrás, a família colada no caixão puxando o choro e os amigos e curiosos a seguir, uns chorando, outros cantando as ladainhas. A senhora que puxava as ladainhas iam na frente do caixão. Era triste ver o féretro transitando pelas ruas esburacadas de Campinas.
Lugar feio o do Cemitério Velho. Aquela cerca de madeira roliça deixava ver, durante o dia, uma parte lá dentro. A noite só onde os raios das luzes em volta refletiam podia ser visto. O resto era um breu só. Como não tinha carneira, era cheio de Cruz, no lado da cabeça do defunto. Algumas catacumbas tinhas casinhas em cima, para por velas pra queimar pela alma do morto. O local começava a ser povoado e a luz do Bar Taco de Prata clareava uma parte daquele cenário macabro.
Sinuqueiros e cachaceiros se acostumaram com o lugar. No mais, só quem precisava mesmo é que passava por alí a noite. Quem ia de bicicleta, passava o cadeado na corrente enrolado no manco da cerca do velho cemitério, na parte iluminada pela luz do bar. Ô lugar feio:-“ Mas gente que joga sinuca e bebe cachaça se acostuma com qualquer coisa, desde que seja para encher a cara e passar na jogatina” – falava a velha Maricota.
Brigas eram comuns lá no Taco de Prata e por isto a “viuvinha” passava sempre por lá. “Viuvinha” era o nome dado para o carro da polícia. Era preto como as roupas das viúvas e tinha uma sirene vermelha no meio do teto, no lado da frente.
O Rosemar nunca passava das dez da noite. Tinha de levantar cedo para ir para o armazém. Outros viravam a noite. Ele não era o melhor taco. Ganhava, perdia, mas não deixava de jogar um só dia. Não era chegado a confusão e nem a construção de amizade. Nem namorada tinha. Era alto, forte, quase Mulato, cabeça grande, nariz chato, boca pequena para o tamanho da cara e cabelo enrolado. Parecia que tinha o tronco maior do que as pernas. Os braços eram cumpridos, mãos grandes e como tinha pés chatos, as pernas faziam curvas para o lado de dentro. Era um sujeito feio. Falava pouco e quando chegava a hora de ir embora, ganhando ou perdendo, zerava a mesa, montava na aranha e partia. Em todo começo de aposta ele já avisava que as 10 horas ia embora. Os adversários que frequentavam o Taco de Prata com frequência já sabiam disto.
No mês de julho, fazia muito frio em Campinas. Alí nas imediações do Cemitério Velho então era de lascar. O Ribeirão Anicuns, que ainda hoje separa o Bairro Bonfim das Vilas São José e São Paulo, ajudava na intensidade do frio. O Ribeirão atraía os ciganos que vinham negociar tachos de cobre, cavalos com os carroceiros e ouro com os campineiros. As barracas armadas nas inúmeras quadras vazias do lugar, ficavam próximas a água farta. Naquele tempo a água do Anicuns, mesmo não sendo totalmente limpa, não recebia rede de esgoto e era potável. Os ciganos ferviam e usavam a água para beber, banhar crianças (os adultos não banhavam facilmente) e lavar as roupas. Enquanto os homens negociavam, as mulheres saiam com aqueles vestidões coloridos pelas ruas campineiras engambelando as pessoas, lendo a sorte pelas mãos.
Vinham e iam pra outras paragens e as vezes voltavam.
Foi num dia frio de junho que um sujeito chegou a pé, coberto por uma capa longa de feutro, preta e pediu uma pinga. Todos viram que era Cigano, pela boca. Todos os dentes eram de ouro. O Rosemar estava sentado junto aos “sapos”, que apostavam num ou noutro taco e davam opinião no jogo, mas baixinho para não ser reprimido pelo Pedro Martelo, dono do bar. Rosemar não apostava no taco de ninguém e não palpitava no jogo também. Ficava esperando algum adversário e ia jogar.
O Cigano perguntou se tinha algum jogador para uma rodada: “Tem sim. Eu aqui” – respondeu mais que depressa o Rosemar. Já se aproximava das oito horas e ele avisou que com qualquer resultado nas apostas, a rodada iria até as dez da noite e o Cigano topou. Enquanto ia jogando o Cigano ia tomando cachaça e logo jogou a capa de feutro em cima da ponta do balcão. A medida que foi ficando bêbado foi ficando jogo fácil para o Rosemar, que limpou o Cigano. Quando deu dez horas o Rosemar pegou o montante da última casada meteu no bolso, juntou as bolas e enfiou na gaveta, pendurou o taco no taqueiro da parede:- “Que é isto?” – quis saber o Cigano. – “Meu tempo acabou” – respondeu o Rosemar.
A resposta irritou o Cigano bêbado que puxou uma faca e disse: -“Nada disto. Vamos jogar. Estou perdendo e não vou deixar você pescar meu dinheiro. Se quiser sair, acerta os custos da mesa, devolve o que sobrar e vai embora, senão o jogo vai continuar”. Sem ação o Rosemar foi salvo pela “viuvinha”, que chegou bem na hora da confusão. Os guardas tomaram a faca do Cigano e levaram-no preso.
Por uma semana o Rosemar deixou de ir no Taco de Prata. Foi o Tião Pé de Rodo quem contou pra ele que o Cigano não havia aparecido lá mais. Ele voltou. As barracas continuavam na beira do Anicuns, mas como o Cigano era um homem de uns 40 anos, deveria ter aprendido com a prisão, que naqueles tempos não ocorriam sem o preso tomar o “café” do Sargento, surra bem dada para o erro não se repetir e desistiu de ir ao Bar.
Poucas ruas de Campinas tinham luzes nos seus postes de madeira. Era um breu só. Numa noite da primeira semana de setembro, quando os flamboyants estavam todos florindo, dona Rosa e seu Marcondes notaram que o Rosemar cegou altas horas e foi lavar a cargueira. A roupa também foi colocada de molho na barrica de madeira cortada ao meio, para servir de tanque. De manhã Rosemar foi trabalhar e dona Rosa chamou seu Marcondes para mostrar que na roupa do filho tinha sangue e muita terra. Seu Marcondes esperou pelo filho, com vários esfolões nos braços e quis saber o que houve: – “Bebi no Taco de Prata e caí da cargueira, na baixada da Padre Wendel, antes de chegar na pinguela para atravessar” – explicou o filho. O pai se deu por satisfeito. O filho ainda pediu ao pai para não comentar senão o fato chegaria ao patrão e ele não teria mais a cargueira para ir pra casa. Ficou combinado assim. Levou uns cinco meses para o Rosemar voltar ao bar. Os outros ciganos apareceram por lá para saber se o parente não tinha voltado ao recinto. Nunca mais foi visto.
Na década de 1960, em seu primeiro mandato como prefeito, Íris Rezende resolveu desativar de vez o Cemitério Velho que tinha poucas estacas roliças da cerca que não estavam podres e boa parte já caída. Os corpos sepultados na última década teriam as covas cavadas de novo, a terra passada na peneira e os ossos seriam trasladados para o ossário do Cemitério Parque.
No local seria construída a praça, que ainda hoje está lá. Naturalmente ninguém se opôs. Numa das covas foram encontradas ossadas de dois corpos. As tábuas podres do Caixão separava uma ossada da outra. Na ossada de cima, todos os dentes da arcada eram de ouro.
Naquela noite de setembro, o Cigano esperou pelo Rosemar, debaixo do velho Flamboyant frondoso, da Geraldo Nei com a São Paulo. A copa da árvores escurecia ainda mais o lugar. Deixou o Rosemar passar e segurou firme na garupeira tentando furar o entregador pelas costas. Rosemar saiu da bicicleta, fugindo da faca, se atirou pra cima do cigano, baixinho e magro, tomou a faca e enfiou no peito. Deixou cravada lá para o sangue não voar pelo chão. Esperou escondido ali mesmo debaixo do Flamboyant. Mais tarde, colocou o cadáver na parte da frente da cargueira e chegou no Cemitério Velho pelos fundos, na parte onde a luz do Bar não clareava. Com a enxada que estava na casinha onde o coveiro guardava a mesma e as cordas de descer o caixão, retirou a terra de cima de um enterrado recente. Ainda fedia e quando removeu a terra por cima do caixão, viu alguns corós saírem da urna. Colocou o corpo do Cigano lá, arrastou a terra pra cima, colocou folhas dos coqueiros caídas em volta por cima do monturro e se foi. Como era comum a terra ficar alta sobre as covas até o caixão quebrar a tampa e a chuva levar a terra para baixo, ninguém, nem os parentes do Cigano desconfiaram. O fedor espalhou pelas redondezas, no outro dia, mas isto era comum, ali naquele Cemitério, alguns dias após os sepultamentos.
O resto do acontecido já foi contado.