(Foto: Larissa Artiaga/ Portal 730)

Era uma sexta-feira, dia 26 de maio de 2017. 6h da manhã. A auxiliar de serviços gerais Laudicéia Rufino, de 51 anos, preparava-se para mais um dia de trabalho. Algumas semanas antes ela recebera a notícia de que tinha sido transferida do posto de saúde da Vila Mutirão para uma unidade de saúde no Jardim Primavera, em Goiânia.

Sem demora, Laudicéia se despediu da família, fez a oração matinal e saiu de casa por volta de 6h45, de olho no relógio, pois sabia que para percorrer os cerca de 3 km que separavam sua residência, em Goianira, do Jardim Primavera, ainda teria que pegar o “113”, ônibus que liga o Eixo Anhanguera ao Terminal de Goianira. Mas Laudicéia nunca terminaria esse trajeto.

Às 7h da manhã a auxiliar de serviços gerais observava a parada de ônibus do outro lado da GO-070. Não havia passarelas. No local a única sinalização existente era uma faixa de pedestres, cuja tintura estava bastante apagada. Sem outra opção, Laudicéia olhou para os lados. Avistou um veículo vindo no horizonte, mas pensou que este trafegava em baixa velocidade. Calculou: ‘Dá tempo’. Porém, o barulho que se ouviu na sequência mostrou que não, não dava tempo.

“O carro estava bem longe. Foi muito rápido. Do nada me vi sobre o para-brisas do carro. Eu bati a cabeça no para-brisas, mas estava consciente. Quando eu olhei pensei que ia morrer. Eu já estava do outro lado, imóvel, só conseguia mexer a cabeça. Tenho certeza que a mão de Deus me amparou”, relata Laudicéia.

Rapidamente, populares que esperavam no ponto de ônibus se mobilizaram. Consciente, a vítima informou o telefone de sua filha, a estudante de Gestão Comercial Jéssica Rufino, de 25 anos. Segundo a jovem, o condutor do veículo permaneceu no local, mas não prestou socorro. “Quando me ligaram e contaram sobre o acidente me disseram que o motorista estava em alta velocidade. Eu já saí doida. Foi muito difícil ver minha mãe ensanguentada. Eu estava grávida, prestes a dar à luz. Foi um choque muito grande”, conta Jéssica.

Depois que Jéssica acionou o socorro, Laudicéia foi encaminhada por uma equipe do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) para o Hospital de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira (Hugol). Os médicos identificaram três fraturas na coluna. A essa altura, a auxiliar de serviços gerais sabia que não iniciaria tão cedo o trabalho na unidade de saúde do Jardim Primavera. Outrora uma pessoa ativa, ela foi obrigada a parar por causa de um motorista que não parou. Bastante emocionada, a senhora refletiu sobre as mudanças que aconteceram em sua vida.

“Uma das vértebras comprimiu a minha medula. O médico não me falou se eu poderia andar ou não, só disse que dependeria da evolução do meu tratamento. Foi um momento muito tenso. Bem no dia em que recebi alta do Hugol minha filha deu à luz. Eu tive uma lição muito grande. Temos que dar muito valor à vida. É um processo muito difícil você ser ativa, trabalhar e de repente saber que não vai mais poder fazer isso”, afirma.

Algum tempo depois, Laudicéia Rufino começou a reabilitação no Centro de Reabilitação e Readaptação Doutor Henrique Santillo (CRER). Na instituição, ela tem acesso ao tratamento com uma equipe multiprofissional que inclui psicólogos, fisioterapeutas, enfermeiros e assistentes sociais. Durante as sessões, Laudicéia é acompanhada pela filha Jéssica e pelo neto João Miguel, hoje com cinco meses de idade.

Em uma das salas do Centro de Reabilitação a família é recebida pela fisioterapeuta Thays Cândida Flausino, de 32 anos. Há sete anos trabalhando no CRER, a fisioterapeuta faz um apelo a condutores e motociclistas. “Nós pegamos esses pacientes já totalmente debilitados. Isso é tão complicado. Às vezes as pessoas entram no carro e parece que elas esquecem que há outras pessoas no trânsito. A gente tem que dirigir para a gente e para o próximo. Nós que lidamos com esses pacientes vemos o quanto é difícil e os motoristas não enxergam esse lado”, argumenta.

Enquanto Thays pedia que Laudicéia segurasse pesos leves – de 2 kg – para exercitar os membros superiores, um outro caso se passava em uma outra sala, no mesmo andar. A menina Ana Júlia Oliveira, de 11 anos, também realizava procedimentos de reabilitação em virtude de um atropelamento.

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Laudicéia Rufino e a fisioterapeuta Thays Flausino durante sessão de reabilitação feita no CRER. (Foto: Larissa Artiaga/ Portal 730)

Diferentemente de Laudicéia, Ana Júlia não precisou colocar os pés na rua para sofrer na pele as consequências da imprudência no trânsito. No dia 14 de abril de 2017, sexta-feira da paixão, ela foi atropelada por um motorista de aplicativo, a 100 metros de casa, no Parque Santa Rita, em Goiânia, enquanto aguardava para fazer a travessia nas proximidades da BR-060. Detalhe: a menina estava na calçada.

Do lado de fora, nos corredores que dão acesso às salas do CRER, o pai de Ana Júlia, o eletricista Divino Oliveira, de 43 anos, aguardava pela filha pacientemente. Comovido, ele relembrou o dia do atropelamento e ressaltou que o motorista infrator não prestou assistência à família. “A passarela ali é distante. Fica a uns 600 metros de onde as pessoas costumam atravessar. Precisa de uma faixa com botoeira ali urgente. Nós precisamos ter mais amor pelo próximo no trânsito. O motorista que atropelou minha filha nunca deu assistência, nunca quis saber como ela estava, nunca quis saber se ela tinha morrido ou não”, enfatiza.

Ana Júlia precisou amputar parte do pé esquerdo. Laudicéia, a primeira personagem apresentada nesta reportagem, ainda não sabe se poderá voltar a andar. Duas anônimas cujos destinos se cruzaram em um ponto comum: ambas são vítimas do individualismo no trânsito.

Divino Oliveira ajuda  a filha Ana Júlia a atravessar uma das faixas de pedestres situadas na área externa do CRER (Foto: Larissa Artiaga/ Portal 730)

Divino Oliveira ajuda a filha Ana Júlia a atravessar uma das faixas de pedestres situadas na área externa do CRER. (Foto: Larissa Artiaga/ Portal 730)

Estatísticas e cidadania

As histórias de Ana Júlia e Laudicéia estão longe de serem casos isolados. Segundo dados da Delegacia Especializada em Investigação de Crimes de Trânsito de Goiânia (Dict), na Capital, 171 pessoas morreram no trânsito entre os meses de janeiro e outubro de 2017. Desse contingente, 35 eram pedestres, sendo que três deles estavam na faixa quando foram atropelados.

Poucas pessoas conhecem tão bem a realidade do trânsito em Goiânia quanto a titular da Dict, Nilda Andrade. Há anos à frente da delegacia, ela afirma com propriedade que grande parte dos atropelamentos poderiam ter sido evitados se os condutores aplicassem técnicas de Direção Defensiva, ou seja, dirigem para eles e para os outros. “As principais causas dos acidentes são excesso de velocidade, descumprimento da legislação e distração, principalmente pelo uso do celular. O goiano, em sua maioria, é muito intolerante no trânsito. Em vez de sair um pouco mais cedo de casa, pensando em evitar um congestionamento, por exemplo, ele prefere xingar os outros”, ressalta.

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(Gráfico produzido pelo Portal 730 com dados repassados pela Dict)

Conforme o artigo 29 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), os veículos de maior porte são sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres. Portanto, o pedestre é a parte mais vulnerável do trânsito e deve ser respeitado por ciclistas, motociclistas e condutores. Contudo, frequentemente isso não acontece. Pedestres e condutores costumam travar uma disputa acirrada, metro por metro, para saber quem colherá os louros de se chegar ao destino sem atrasos.

Autora de uma tese sobre o comportamento dos pedestres durante a travessia de vias em faixas não semaforizadas, a doutora em Transportes e professora efetiva do curso de Engenharia de Transportes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), Patrícia Margon, afirma que os conceitos de mobilidade humana e mobilidade urbana funcionam como uma via de mão dupla. Para ela, a construção de um sistema viário efetivamente seguro não é uma utopia. “Tudo que você faz no ambiente tem ida e volta. Precisamos, cada um, pensar nas calçadas que estamos oferecendo aos pedestres. É preciso pensar que não custa parar e esperar o pedestre atravessar na faixa. Por sua vez, o pedestre deve respeitar o fluxo de tráfego e atravessar no lugar certo. Para funcionar no coletivo nós precisamos de regras”, considera.

Bons exemplos

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Motociclistas respeitam sinalização na Avenida Goiás, centro de Goiânia (Foto: Luciana Maciel/ Portal 730)

Maus condutores e pedestres irresponsáveis podem ser encontrados em todos os lugares. Todavia, o lado ruim não impede que os bons exemplos assumam a dianteira.

Dirigir é um ato que exige comprometimento, responsabilidade, atenção e ainda uma dose de bom humor. Quem vê o lado positivo das situações pode inspirar outras pessoas no trânsito, tornando os deslocamentos mais leves e confortáveis.

Este é o caso da assistente social aposentada Maria das Graças, de 70 anos, mais conhecida como dona Mariinha do Forró. A goiana viralizou (tornou-se popular) na internet depois que o administrador de empresas Jackson Fernando da Silva Corrêa postou um vídeo dela nas redes sociais cantando a música Samara enquanto estava parada em um semáforo da Avenida Castelo Branco, no setor Campinas.

“Eu estava concentrado no trânsito quando ouvi uma música que me chamou atenção. Me deparei com essa senhora que estava em um carro branco, dançando muito. Sou filho único e moro com a minha mãe, que é doente e usa um marca-passo. Eu quis filmar para mostrar para a minha mãe que a vida não se resume a doenças. Depois mandei o vídeo para a minha mãe e ela amou. Em seguida o vídeo foi parar no WhatsApp e viralizou. Hoje sou amigo da dona Mariinha do Forró”, conta Jackson.

Apesar de o vídeo ter sido gravado no dia 28 de outubro deste ano, dona Mariinha garante que a positividade no trânsito é um hábito antigo. “Há sete anos eu canto e danço nos sinaleiros de Goiânia. A alegria pode mudar tudo. Às vezes o motorista que está do meu lado está com a cara fechada, eu olho para ele, dou um sorriso e logo ele começa a sorrir também. Depois que o vídeo foi postado todo mundo passou a me conhecer, me param nas ruas, me pedem para dançar e tirar selfies. A mãe do Jackson, o que gravou o vídeo, virou minha amiga ”.

Para a psicóloga de trânsito do Departamento Estadual de Trânsito de Goiás (Detran), Nayane Viana, valorizar os aspectos positivos, como faz a dona Mariinha, não entrar em provocações, dar a vez e priorizar os pedestres são atitudes nobres que contribuem para a redução do número de acidentes com vítimas fatais. “Gentileza e empatia são condutas que fazem uma diferença enorme no trânsito. Hoje em dia os motoristas estão muito egoístas. O desrespeito é uma consequência da falta de conscientização”, reflete.

Há cerca de dez anos as ruas são o escritório do motorista Paulo Luigi Bandeira Guimarães, que atualmente trabalha para uma empresa de transporte via aplicativo. Ao relatar sua experiência profissional, ele alega ter constatado que atos simples como dar a seta no momento certo e manter-se à direita contribuem muito para a boa fluência do tráfego. “Todos devem se manter à direita. Se acontecer um acidente, com o motorista estando à direita, fica mais fácil para que as ambulâncias possam passar. Desse jeito o trânsito flui melhor”, declara.

Assim como Paulo Bandeira, o motorista de ônibus do transporte coletivo Robson José da Silva, de 45 anos, acredita no valor das ações gentis no trânsito. Segundo ele, o stress diário não justifica a perpetuação de atitudes nocivas à coletividade. “Trabalho há 15 anos como motorista. Minha carga horária é de 7 h e 20 minutos por dia. Quando ouço a sirene das ambulâncias tocando eu já paro, posiciono o ônibus à direita e dou passagem para elas. A educação no trânsito é importante no caso do motorista para que ele esteja mais atento às leis”, pontua.

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(Foto: Johann Germano/ Portal 730)

Considerando que cada segundo é importante quando se trata de salvar vidas no trânsito, pessoas como Maria das Graças, Paulo e Robson colaboram diretamente para o sucesso dos procedimentos realizados pelos socorristas do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Goiás (CBMGO).

Todos os dias milhares de cidadãos ligam para o 193 em busca de atendimento para vítimas de acidentes de trânsito. No instante em que o telefone toca, a Central já identifica os dados do solicitante, registra a ocorrência e rapidamente aciona os socorristas. Terminada esta etapa, as viaturas vão às ruas. Neste momento os condutores exercem um papel crucial ao se tornarem parceiros das equipes.

O tenente-coronel Fernando Augusto Caramaschi está na corporação há quase 19 anos. Ele revela já ter comprovado na prática o poder do respeito e da gentileza no trânsito. “A questão do tempo para o Corpo de Bombeiros é fundamental. Uma vez nós atendemos uma ocorrência de um motociclista que tinha batido na traseira de um caminhão. O trânsito estava muito pesado. As pessoas foram abrindo, algumas inclusive subiram na ilha e deram passagem. Isso foi fundamental porque a vítima já estava em parada cardiorrespiratória. Nós conseguimos reestabelecer a vítima, a transportamos para o hospital e ela sobreviveu. Naquele dia ficou claro que o tempo é fundamental e nós conseguimos ganhar tempo por meio da gentileza que o condutor tem para com as viaturas”, avalia.

Educação no trânsito e para o trânsito

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Pedestres realizam travessia em faixa localizada no cruzamento da Avenida Anhanguera com a Avenida Goiás, no centro de Goiânia.

(Foto: Larissa Artiaga/ Portal 730)

Ciente de que o trânsito é fruto de ações coletivas que impactam significativamente toda a população, o Detran Goiás investe há décadas em projetos de Educação para o Trânsito voltados para todas as faixas etárias.

Um desses projetos é o Detranzinho, que conscientiza crianças e adolescentes sobre a importância do respeito ao próximo e das boas práticas no trânsito.  A educadora de trânsito do Detran, Regina Lúcia Siqueira, afirma que em muitos casos as próprias crianças ensinam e corrigem os pais nas ruas. “O Detranzinho trabalha a educação da pré-escola até o EJA (Educação de Jovens e Adultos). Temos tido um saldo positivo. Eu tenho observado principalmente nas escolas que as pessoas recebem muito bem as ações e mudam o comportamento. A criança passa a ser um multiplicador, o pai vai buscá-la na escola e ela cita o que aprendeu com o pessoal do Detranzinho”, afirma.

Em Goiás os esforços governamentais no sentido de promover a educação para o trânsito resultaram em uma queda no número de mortos nas vias. Segundo dados apurados pela inciativa Trânsito com Vida, do programa Goiás Mais Competitivo e Inovador, no ano de 2015 o índice foi de 27,7 mortes para cada 100 mil habitantes. O resultado representou um recuo de 4,5 pontos percentuais em relação a 2014, quando o índice foi de 32,5 mortes para cada 100 mil habitantes.

A pesquisa mostrou ainda que o condutor de Goiânia é o que mais mata no trânsito em Goiás, visto que a cidade registrou 32,27% do total de acidentes fatais. De acordo com Regina Siqueira, o Detran, em parceria com a Secretaria Municipal de Trânsito de Goiânia (SMT), tem intensificado as ações de educação e fiscalização na Capital. “É uma parceria. Nós temos a SMT como um parceiro. Nós todos trabalhamos em prol da vida. É um trabalho de formiguinha”, reforça.

De acordo com o Diretor de educação para o trânsito da Secretaria Municipal de Trânsito, Transporte e Mobilidade (SMT), Horácio Ferreira, fiscalizar também significa educar. “O mais importante é formar bons cidadãos que serão bons condutores. A fiscalização traz um importante complemento à ação educativa. Em todos os países em que ocorreu a diminuição dos acidentes de trânsito isso só aconteceu porque houve a implantação de três colunas: a engenharia de tráfego, a fiscalização e a educação. A multa tem um poder disciplinar muito relevante”, resume.

O Código Brasileiro de Trânsito caracteriza o acesso à Educação para o Trânsito como um direito de todos. Com base na legislação, a maioria dos especialistas da área concorda em um ponto: compreender que o trânsito depende de todos nós é o primeiro passo a ser dado em um longo caminho rumo à cidadania plena nas vias.

Reportagem de Jerônimo Junio e Larissa Artiaga

Edição: Cecília Barcelos e Roberval Silva