O Tião Preto era o mais forte da turma. Com 12 anos parecia ter 15. Grandão, beiços grossos, cabelo muito enroscado, olhos brilhantes. Num tempo e lugar onde não existia separação entre ricos e pobres, pretos e brancos, viver lá na maloca da Vila Abajá não o separava dos outros meninos das redondezas. Saia do Grupo Escolar Dr Vitor Coelho de Almeida, ia em casa, esperava dar meio dia e saia nas casas habituais para pedir as sobras do almoço. Levava para o seu Benedito, dona Ludovina e o Natal e comia junto deles. Na trajetória costumava comer as carnes.

Nas peladas dos campinhos nos lotes vagos era sempre o primeiro escolhido. Era zagueiro e barrava tudo. Como tinham campinhos nas Vilas Abajá, Operária e Santa Helena!!!! Era no mínimo um por quarteirão. Todo final de tarde tinham peladas. Nos finais de semana aconteciam os jogos. Aí cada um jogava para o seu time, lá no campo da Estação Ferroviária. A única coisa que tinha de uniforme era as camisas. O Hildeu Amâncio, dirigente do timaço da Vila Santa Helena, onde Levy de Assis era o centroavante, dava as camisas para os times. O Tarzan da academia também dava. Nas peladas jogadores de times diferentes jogavam do mesmo lado. Era tirado o par ou ímpar que decidia a ordem de escolha. Em todos os campinhos sempre se formava pelo menos quatro times. As vezes os goleiros ficavam direto: só o Ricardo (que depois foi goleiro do Atlético e da SAMA, de Minaçu) gostava de jogar no gol. O resto fugia. Aqueles muito ruins acabavam tendo de aceitar, senão ficavam fora.

Um time de camisa outro sem. Seis na linha e um no gol Alguns de conga, ou kichute, a maioria de pé no chão. Os tornozelos destes eram rachados. Dez minutos ou doía gols. Quem perdia saia e entrava na fila dos próximos. Até nos jogos do campo da Estação, muitos jogavam descalços.

O Tião era o zagueiro do time do Zé Fundanga era a segurança. O Romeu que jogava no Campinas viu o Tião Preto jogando e o levou para o dente de leite do Campinas.

As ruas não tinham asfalto ainda. Em dias de chuva a enxurrada descia pelos lados delas. Entre agosto e dezembro chovia demais, em janeiro eram sempre vistas as erosões enormes, nas laterais das ruas. No meio delas muitos buracos. As bicicletas, lambretas e vespas eram os veículos mais comuns. Tinham de andar desviando dos buracos e de vez em quando parar para tirar o barro dos pneus.

Na porta do Grupo Damiana da Cunha, da rua 506, tinha uma turma custosa. Lambreteiros que tiravam as carenagens e escapamentos das lambretas e viviam ali, indo e voltando sabe se lá pra onde fazer o que. Todos falavam que o Goró fumava maconha, mas não sei se era verdade. Tocar violão e bem ele tocava. Tinha voz bonita e cantava músicas do Eduardo Araújo e do Jerry Adriano: – “Querida quero lhe pedir// Se toda minha vida entreguei a você// procure olvidar o que lhe fiz// queria perdoa me// hó querida relembre….// Hó querida relembre os momentos tão felizes// que juntinhos passamos sobre a luz do luar// diga ao menos meu bem// que de mim não tem mais rancor// para que eu possa esquecer todo meu amargor”. – arrancava suspiros das mocinhas de mine saia, lá na porta do Damiana da Cunha. O Pranchado também era da turma. Se chamava José Otávio, mas ganhou este apelido. Loiro, cabelo lá nos ombros ( sempre lustrados com brilhantina Glostora) alto, olhos verdes, lambreta envenenada, calça Lee e camisas estampadas, compradas na Loja do Afonso. Filho de pai rico, que trabalhava com o governador Mauro Borges – era exibimento só. Agradava as moças. Acabou com muitas amizades entre elas. O Goró o acompanhava ao violão e ele cantava músicas do Ronnie Von: “a mesma praça, os mesmos bancos, as mesmas flores e o mesmo jardim// tudo é igual, mas estou triste, porque não tenho você perto de mim” . A medida que a canção ia terminando, abaixava o rosto, para o cabelo cair cara abaixo. Quando acabava de cantar, jogava o cabelo pra trás. Igual o Ronnie de Von fazia na televisão. Ser amigo dele era sinal de prestígio. Fumava Minister (o mais caro), pagava a cerveja e fazia questão de pagar a abastecida das lambretas dos seus amigos para mostrar que entre os ricos, era o mais rico. De quem ele gostava…gostava, de quem não gostava era agressivo, dava respostas grossas e não dava ouvido para o assunto. Era o orgulho em pessoa. Mas namorava viu!!!! Namorava demais. Muitas de cada vez.

A Angélica era uma das moças mais bonitas da região. Também sabia tirar proveito da beleza. Lá no baile do Tênis Clube da Vila Coimbra ela o conheceu. Os Hippies Cordas e Metais tocavam lá todos os sábados. Cantavam até músicas do Beatles e muito rock n’ roll. Ele sabia dançar e caprichava para impressionar. Ela também.

Era morena clara, olhos pretos grandões, boca carnuda, pernas grossas, vestido curto, preto com bolinhas brancas. Não preciso dizer que exceto os amigos, todos os outros tinham raiva dele e todas as outras tinham raiva dela. A luz negra ascendeu. Sai o rock entra as lentilhas. O Pranchado piscou e a Angélica respondeu. Não perdeu tempo, chamou pra dançar e a levou de lambreta pra casa. Ambos cultivaram o namoro. Se ele dava bolo nela, ela ia para o vai-e-vem da Praça Joaquim Lúcio e agarrava um outro bonitão. Era comum, mas um não largava o outro. O Luiz Sardento morria de raiva do Pranchado….ele e as moças que eram esnobadas, os outros rapazes que não tinham lambretas e nem dinheiro do papai. Começo da tarde de domingo de novembro. Tinha chovido a noite de sábado inteira. A rua catalão ficou com uma laminha fina por cima da terra. O Pranchado surgiu lá em cima, rua abaixo, na lambreta barulhenta. Era hora de buscar a Angélica para a matinê do Cine Eldorado. Tinha prometido levá-la para assistir E o Vento Levou. Era uma tarde inteira de filme. Haja pipoca e chiclete ping-pong.

Lá vinha o Pranchado. Limpinho e cheiroso. Desviava dos buracos todo pancoso, tombando a lambreta para um lado e outro. O Luiz estava bem na porta do Ferro Velho, de frente pro campinho, onde depois foi construído o Tabernáculo da Fé, que está lá até hoje. Era branquelo e ficou da cor de pimenta malagueta, de raiva daquela metidez toda: – “Podia levar um tombo” – falou pro Zé Gordinho que estava ao seu lado. A praga foi tão bem rogada, que o Pranchado saiu de um buraco tombando a lambreta para o outro lado. Tombou demais, a danada deslisou e soltou ele dentro do buraco. Rolou com o tombo e a lama fina coloriu até seu cabelo loiro.

O Luiz e o Zé Gordinho não deram conta de parar de rir e o Pranchado levantou parecendo um leitão, brabo como um catitu e quis brigar. Os dois toparam, mas o seu Haroldo, mais alguns separaram. O Pranchado levantou a lambreta, deu um tranco e voltou por onde tinha vindo. A Angélica conhecia as manias do rapaz e quando viu que ele não apareceria foi na casa do Vicente e foram juntos ver o filme. Quando soube do ocorrido ela riu muito. Ainda foram em muitos bailes de sábado no Tênis Clube, mas quando o Mauro Borges foi tirado do governo pelos Militares que tomaram o poder, o pai do Pranchado caiu junto e teve de se mudar de Goiânia. Pra onde ninguém soube.

No dia que o Pranchado caiu da lambreta, o Tião Preto e o Delei estavam correndo no buraco da erosão. A molecada adorava fazer isto. Ambos viram o tombo: o Delei caiu na risada e o Tião ficou admirando. Viu a tatuagem na parte dentro do braço dele. Uma caveirinha. Mostrou pro Delei. O Delei falou: – “sei fazer. É com careta de caju que faz. Desenha com lápis e passa o sumo da careta por cima dos traços, usando um palito de dente. Queima e fica a tatuagem” – informou ao vizinho da maloca: – “Faz uma pra mim?” – pediu o Tião. O Delei topou na hora. Roubaram o caju na casa do japonês e foram fazer a tatuagem. A dor que o Tião sofreu com o queimado do caju não foi brincadeira. Braço inchou. Pegou o dinheiro das engraxadas na Praça Joaquim Lúcio e foi lá na Farmácia Brandão. Seu Benedito Brandão aplicou uma injeção, deu uma pomada e não cobrou do Tião. Sabia que o dinheiro dele não dava. Demorou, mas curou. Ficou a cicatriz da caveira no punho esquerdo – mal feita, preta da cor da pele, mas ficou. Quando completou 14 anos, arrumou um emprego na oficina do Lazinho. Teve de parar de jogar bola. Logo o Íris fez as Vilas Redenção e União. Seu Benedito e dona Ludovina foram contemplados com a casa, graças ao pedido do deputado Professor Tobias Alves. Nem sei se foram para a Redenção ou para a Vila União. Mas se foram e a maloca foi toda patrolada e loteada. Na oficina do Lazinho o Tião conheceu a Lalá, dona de uma casa na P-16. Foi convidado por ela para trabalhar no bordel. Faria a faxina, lavaria loucas e copos e outros serviços da casa. Antes de ir falou com os pais e o irmão. Seu Benedito deu uma surra no Tião e mandou sair de casa. Logo agora que tinha uma casa, estava expulso dela: – “Tem problema não. Você vem morar aqui” – falou a Lalá. Tião foi. O Delei foi com a Família para a Vila União. Foi o Professor Tobias que arrumou a casa também. Se tornou policial e na polícia trabalhou até se aposentar. Depois, no início dos anos de 1980, arrumou um cargo comissionado com Ary Valadão, lá no Hospital de Doenças Tropicais, como segurança. Trabalhava 12 horas e folgava 36.

Época assustadora. A Aids tinha chegado ao Brasil. Ninguém sabia como tratar. Usuários de drogas injetáveis, hemofílicos e homossexuais eram os mais atingidos. Passando pelo corredor, da enfermaria onde os aidéticos ficavam, Delei viu o braço de um travesti estendido com pulso pra cima, tomando soro. Couro e osso. Negro, cabelos alisados loiros. As próteses nos peitos deslizando por baixo da pele. Os ossos da face formatando o rosto. Nada de músculos por baixo. Uma cicatriz preta, na pele preta, no punho lhe chamou atenção. Como era impossível reconhecer aproximou e perguntou: – “Você é o Tião Preto”? O paciente com voz bem enfraquecida disse: – “Sou Katiúcia”. Tião Preto morreu no final da adolescência, lá na P-16”.

– “Sou o Delei. Fiz a tatuagem no seu braço. Sei quem é sua família. Vou encontrá-la e avisar”.

– “Não sei quem é você e nem de que tatuagem está falando. Também não tenho família.”
O Delei não sabe se ele estava confuso ou se não queria se lembrar das origens. Foi sepultado como indigente menos de um mês após entrar no hospital.