(Foto: Divulgação/Netflix)


Desde que a Netflix assumiu seu papel de produtora de conteúdo, deixando de lado a imagem de mera plataforma de streaming, tem apresentado propostas bastante instigantes. Dai vêm críticas sociais ferrenhas (como “Okja”, de 2017), até ressurreição de séries abandonadas pelos seus canais de origem (por exemplo, “Arrested Development” e a recém anunciada “Lúcifer”). Nesse contexto, o francês “Eu não sou um homem frágil”, lançado esse ano, da diretora e atriz Eléonore Pourriat, surge como mais uma agradável surpresa que faz rir, mas que exige também uma boa dose de bom senso e crítica para ser absorvido de forma mais profunda.

A trama do filme é simples e até bem previsível: Damien (bem incorporado por Vincent Elbaz) é aquele perfeito machista que todo mundo conhece. O cara que se acha o estereótipo de macho alfa, cuja preocupação é catar geral, espalhando a crença de mulher objeto, inferior ao homem ou, no máximo, digna de certa pena. Até tem seu pequeno affair, mas ela não é a coisa mais importante de sua vida. Seu melhor amigo, ainda que não tenha a mesma visão de mundo que ele, também reproduz os costumes de uma sociedade curtida no patriarcalismo. São os exemplos que o filme carrega para “macho execrável” e “macho não tão execrável assim”, de maneira a já ir acostumando o olhar do espectador às nuances de comportamento masculino do mundo moderno.

Acontece que depois de construir esse cara detestável, a transição do primeiro para o segundo ato acontece quando Damien bate a cabeça num poste, justamente após uma tentativa de cantada. Desmaia. E quando acorda, está num mundo invertido, dominado pela força feminina. E aí, vai provar um pouco do seu próprio veneno.

A primeira grande crítica que o filme traz é justamente ao colocar esse espelho perante os homens e os comportamentos machistas em geral, através das atitudes do próprio Damien. Ao construir o personagem, o escora no estereótipo por vezes exagerado de um modelo de homem que deve ser evitado. É intencional. Portanto, se você é homem e não vê nada de mais no que Damien faz no primeiro ato do filme, fique atento: tá na hora de rever seus conceitos.

Mas ao inverter o mundo, após o acidente com o protagonista, a crítica fica mais evidente. E engraçada também, claro, porque somos expostos a situações absolutamente inusitadas. O humor se acentua porque Damien não entende bem o que tá acontecendo, e ainda portador do vírus machista, tenta manter a pose. Não se rende a um mundo onde as mulheres secam seu traseiro descaradamente.

Nesse nível de análise, é perfeitamente possível rir e absorver a crítica ao mesmo tempo. O “mundo das mulheres” é um espelho do nosso mundo real. Ali, as moças são a cabeça da família, abusam da cerveja, dos palavrões e curtem futebol com os amigos. Mandam nos homens, que são frágeis e dependentes emocionalmente. Mulheres não andam de saia, já que não há hipersexualização de seus corpos. Falam abertamente de temas como menstruação e sexo. Homens são socialmente obrigados a depilar, e sofrem com o assédio nas ruas e no  trabalho. E existem os movimentos sociais de homens que buscam igualdade de tratamento também! São inúmeras as situações de inversão, várias delas nos pegam desprevenidos. É uma excelente oportunidade de reflexão.

Bom, a trajetória do nosso protagonista começa a mudar de forma mais drástica quando ele percebe que, nesse mundo invertido, a moça por quem era apaixonado se tornou nada menos que uma versão feminina dele! Alguém detestável, orgulhosa, desrespeitosa e que se acha superior em virtude de seu gênero. Aí, ele se vê perante o espelho. É provocado a rever os próprios conceitos. E, enfim, assume o papel social a ele imposto como forma de sobrevivência.

Existe ainda um terceiro nível de crítica, esse um pouco mais difícil de perceber. Justamente porque questiona estereótipos e papéis sociais.

Internet afora e até entre amigos, um dos comentários mais comuns que ouvi foi o de que o filme mostra que a sociedade atual, calcada no patriarcalismo, é extremamente prejudicial, mas uma sociedade matriarcal, com domínio das mulheres, também seria. Ou seja, o filme também faria uma crítica ao feminismo, por querer buscar, em tese, essa supremacia feminina. Estaria instigando a autocrítica feminina também.

Aí entra a pegadinha que o filme prega, e o terceiro nível de crítica que traz: o da nossa visão de mundo já acostumada e dessensibilizada ao machismo e ao modo patriarcal.

Veja bem, a maioria das sinopses espalhadas por aí se refere ao mundo invertido do filme como “mundo das mulheres”. Em oposição ao “mundo dos homens”. Já demonstra uma aceitação tranquila e pacífica de que esse mundo em que vivemos é o mundo dos homens. E não deveria ser. Mas evidencia que a visão, o padrão, o normal, via de regra, é o masculino. Aquele mundo invertido não é nada mais do que um espelho do mundo atual. Inverteu-se o gênero, mas as práticas não foram invertidas. Não é um mundo feminino. É um mundo masculinizado, mas vivido por mulheres. Ou seja, mundos em que um gênero prevalece sobre o outro são, realmente, desiguais e injustos, mas nada faz crer que um mundo dominado por mulheres apresentaria aqueles tipos de comportamento. Aqueles estereótipos são os masculinos! São padrões dos homens, mas exercidos pelas mulheres no mundo invertido.

Percebe como a questão é sutil? E aí está o grande mérito do filme, a meu ver. Ele coloca o espelho na frente do espectador, e o força a analisar a questão sob diversos níveis. A crítica que ele faz não é às mulheres. Não são elas que devem olhar para o próprio umbigo e pensar: “Caramba, preciso deixar de querer a supremacia feminina”, não!! Até porque não é isso o que o feminismo prega (há quem tenha cunhado o termo “femismo” para essa situação). O objeto de crítica continua sendo o machismo, mesmo no mundo invertido.

Enfim, o filme é um convite não-vitimista a todos nós pensarmos nos malefícios de uma sociedade patriarcal, desde situações explícitas, como salários desiguais e o assédio sexual, até nuances extremamente sutis dessa desigualdade, como a discussão sobre quem paga a entrada do cinema ou se é mesmo necessário abrir a porta do carro para o seu “benzinho” entrar.