86% dos brasileiros são a favor da restrição ao uso do celular nas escolas. O dado é de um levantamento da Nexus – Pesquisa e Inteligência de Dados que mostra a aprovação de 54% da população à proibição total e de 32% à proibição parcial, pois defendem o uso somente para atividades pedagógicas e com determinação do professor.

A pesquisa é importante porque traz a opinião da população a respeito da lei que restringe o uso de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais dentro dos estabelecimentos públicos e privados de ensino da educação básica. Ana Paula Corti, doutora em educação e pesquisadora de políticas educacionais, celebrou a informação de que muitas pessoas já têm uma percepção bastante adiantada sobre os malefícios do uso abusivo das telas.

Ana Paula Corti é especialista em educação (Foto: Acervo pessoal)
Ana Paula Corti é especialista em educação (Foto: Acervo pessoal)

“A população de uma maneira geral demora para incorporar a percepção que os estudos, pesquisadores, professores e comunidade escolar tem sobre o que está acontecendo dentro da escola. Ou seja, aquilo que acontece dentro da escola não é transparente para a sociedade no sentido de que, se você é alguém de fora da educação, muitas vezes você não conhece ou você não tem uma noção dos impactos que esse dispositivo produz na vida dentro da escola”, comentou.

Por que restringir?

A justificativa para a existência da lei é salvaguardar a saúde mental, física e psíquica das crianças e adolescentes. É nesse sentido que Corti celebrou a percepção do cidadão comum. Além disso, ela ressaltou a importância da opinião das mais variadas faixas etárias, como pode ser notado na imagem abaixo. Para ela, é importante que a ideia da limitação do uso já seja aceita.

Proibição ao uso de celular nas escolas por faixa etária (Imagem: Nexus – Pesquisa e Inteligência de Dados)
Proibição ao uso de celular nas escolas por faixa etária (Imagem: Nexus – Pesquisa e Inteligência de Dados)

“Isso não é pouca coisa. Existe uma percepção muito forte na cabeça das pessoas quando usam o celular ou quando o seu filho usa de que as pessoas usam o celular porque elas querem, que é uma escolha voluntária e livre. Então se quiser, usa e se não quiser, não usa, você gasta o número de horas que pretende nas redes sociais e é como se esse tipo de uso estivesse num lugar de escolha individual”, contou.

Ana Paula Corti disse que a lei é necessária e que é um reconhecimento que tem ocorrido um uso abusivo e cada vez mais precoce das telas e das redes sociais. A especialista destacou a existência de pesquisas no Brasil e no mundo que abordam os impactos que o uso excessivo do celular provoca, principalmente para crianças e adolescentes que estão em processo de desenvolvimento cognitivo.

Ideia relativa da livre escolha

A restrição dos aparelhos eletrônicos portáteis, especialmente o celular, visa recuperar o foco do estudante na sala de aula e melhorar a convivência e a interação entre as pessoas no ambiente escolar. A medida combate ainda o vício, que surge do uso excessivo e da própria interface das redes sociais e dos smartphones. Os dispositivos são desenvolvidos com um sistema operacional inteligente que retém a atenção por muito tempo. 

“Uma das variáveis que os estudos mostram sobre o uso das telas, e dos smartphones em especial, mas não exclusivamente, é que as interfaces usadas nesses dispositivos são interfaces desenvolvidas intencionalmente para manter as pessoas vinculadas a tela pelo maior número de horas possível. Ou seja, você tem um design de produto, toda uma interface pensada para manter as pessoas conectadas o máximo de tempo possível”.

De acordo com Ana Paula Corti, essa interface coloca abaixo a ideia de que as pessoas usam os dispositivos de forma livre, voluntária e se quiserem. Para ela, essa relativização da ideia de escolha termina quando as pessoas descobrem que o negócio de tudo que está nas telas é a atenção.

presidente uso de celular escolas
(Foto: Guilherme Oliveira/Divulgação Prefeitura do Rio de Janeiro)

“Tem um plano de negócios que alguns chamam de economia da atenção. Então, o modelo de negócio é manter a atenção naquilo que você fornece na sua mídia social e que você quer, porque é essa atenção que vai ser vendida para os fornecedores na forma de publicidade, que é o grande objetivo dos algoritmos”, explicou.

Perigo para a formação das crianças

O modelo de negócio utiliza recursos que a especialista avalia que “nem sempre a gente chamaria de éticos” porque são desenvolvidos para gerar dependência. E essa é maior preocupação com o uso de telas por crianças e adolescentes.

“Crianças e adolescentes não têm sequer o cérebro todo formado. Eles não tem uma autonomia, estão desenvolvendo a sua personalidade, não existe uma autonomia para tomar a decisão do quanto ficar na tela, o quanto isso faz bem ou mal e isso as pesquisas têm mostrado”.

Fazemos parte da primeira geração que utiliza tecnologias e à medida que as coisas vão sendo criadas e usadas vamos percebendo suas facilidades, mas também seus aspectos negativos. A lei de restrição dos aparelhos eletrônicos nas escolas é um passo importante nessa percepção de uma aspecto que está se mostrando negativo.

“A população vem percebendo, talvez não pelas pesquisas mas pela sua experiência direta com os dispositivos, que elas ficam viciadas e passam muitas horas sem nenhum entretenimento mais aprofundado ou alguma informação mais qualificada e de repente elas percebem que passaram três horas inúteis rolando a tela. Então, a própria população está percebendo que não consegue controlar e que os seus filhos não conseguem controlar isso de uma maneira apenas individual”, afirmou.

Uso pedagógico dos dispositivos eletrônicos

O ideal é que as escolas tenham laboratórios e computadores suficientes para atender a demanda dos professores que utilizam o recurso tecnológico de forma didática. Mas, na verdade, a realidade educacional brasileira mostra que as escolas possuem os dispositivos em números insuficientes ou não possuem o laboratório, e ainda lidam com a dificuldade de acesso à internet.

“Num contexto um pouco mais precário que você não tem o livro didático ou não tem material, às vezes o aluno vai ter acesso a um exercício, um texto, por meio do dispositivo. Então eu não descarto a possibilidade de algum uso desse dispositivo, embora ele não possa ser abusivo, com sentido pedagógico.

Celular nas escolas (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
Celular nas escolas (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

As possibilidades de uso pedagógico englobam pesquisas e aplicativos educativos, por exemplo. Mas há outros problemas em celulares porque eles possuem a tela muito pequena para a leitura, o que pode gerar um problema na visão. A norma brasileira não deixa claro se o dispositivo utilizado deve ser fornecido pela escola ou se os estudantes podem usar o próprio aparelho, ficando a decisão a cargo da regulamentação de cada estado e município.

Leia mais: Especialista explica a importância de regras claras para o uso de celulares nas escolas

De quem é a responsabilidade?

A lei entrou em vigor com o início do ano letivo de 2025, mas cada escola precisa avaliar como implementar no próprio espaço físico. Se forem recolhidos, por exemplo, os dispositivos precisam ser acondicionados num local seguro e devolvidos aos estudantes no final de cada dia de aula. Ana Paula Corti chamou o processo de recolhimento de “logística complexa”. 

“Dependendo do tamanho da escola e da faixa etária dos estudantes, essa é uma logística tacitamente complexa. Então, muitas escolas, principalmente do sistema público de ensino, já estão muito sobrecarregadas. São escolas que já tem muitas vezes falta de professores e funcionários, tem uma equipe de direção muito reduzida, então não me parece razoável dar mais uma tarefa para uma equipe que já está sobrecarregada”, argumentou.

Corti avalia que os estados e municípios devem assumir a responsabilidade com suporte material, financeiro e de recursos humanos para que as escolas realizem a tarefa. “O que eu acho que não é possível é simplesmente pedir para as escolas cumprirem uma lei federal em tempo recorde sem terem nenhum tipo de suporte, preparo e planejamento para fazerem isso”, afirmou.

De quem é o problema?

Celular (Foto: Palloma Rabêllo)
Celular (Foto: Palloma Rabêllo)

“A escola sozinha não vai resolver esse problema”, diz Ana Paula. A especialista ressalta que a escola não está isolada do que acontece na sociedade e questiona a atribuição da responsabilidade de solucionar o problema do uso excessivo das telas nas unidades de ensino.

“Isso é um enorme engano. Na verdade, o uso do smartphone nas escolas está ligado a um valor social muito mais amplo que essas crianças estão aprendendo na vida. Elas estão aprendendo na família e é uma marca do nosso tempo o abuso desses dispositivos. Então, a escola não vai conseguir sozinha reeducar essas crianças e adolescentes”, pontuou.

A construção de uma nova mentalidade

Corti reforça que a escola tem o papel de realizar a parte educacional do tema, que não está na proibição, mas no porquê da proibição. O papel da educação é dar aos estudantes espaços na escola para pensar de onde vem a lei, porque foi aprovada e quais são os seus objetivos. Mas como a escola faz parte da sociedade ela reforça novamente que as famílias e toda a sociedade tem também suas responsabilidades.

“É preciso construir juntos uma nova mentalidade sobre o uso desses dispositivos, principalmente dos malefícios gigantescos que eles estão produzindo no físico, social e cognitivo, os danos são muito variados” disse. E frisou:

“Se a gente não tiver uma contemplação nesse sentido, o que vai acontecer é que a gente mais uma vez vai jogar para a escola uma batata quente, que é um problema que não foi criado por ela e que é impossível ser resolvido só por ela. Então, a escola, de novo, vai virar aquele lugar em que a gente como sociedade joga todos os problemas como se num passe de mágica a escola fosse uma instituição redentora de todos os malefícios da sociedade. E ela não é esse espaço”, finalizou.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta matéria, o ODS 04 – Educação de Qualidade.

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