Você já ouviu falar em água de lastro? Trata-se da água que é armazenada em tanques específicos de uma embarcação para garantir a estabilidade e o equilíbrio do navio. No entanto, essa água também pode ser um problema ambiental, pois pode transportar organismos aquáticos invasores de um ecossistema para outro. E isso pode ajudar a explicar a presença do mexilhão-verde em águas brasileiras.
A espécie asiática mexilhão-verde (Perna viridis) ocorre naturalmente em águas tropicais e subtropicais do Indo-Pacífico. No entanto, desde 1995, sua disseminação tem provocado crescente preocupação pelos impactos ambientais, econômicos e sanitários que pode causar fora de sua área de ocorrência natural. Em estudo recente, realizado por meio de três diferentes abordagens (amostragens de campo, revisão de literatura e busca na plataforma iNaturalist), foram identificados 41 registros da espécie ao longo da costa brasileira.
Publicado na Marine Biology, o artigo foi conduzido por pesquisadores do Instituto de Pesca de São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da USP, além da Universidade da República, no Uruguai. A espécie foi registrada ao longo da costa paulista: Praia da Cocanha (Caraguatatuba), Praia das Cigarras (São Sebastião), Ponta das Furnas (Ilhabela), Saco da Ribeira (Ubatuba), Enseada da Baleia (Parque Estadual da Ilha do Cardoso, Cananeia), Reserva Extrativista do Mandira (Cananeia), Iguape, Ilha Comprida, Peruíbe, São Vicente e Santos.

Doze dos registros reportados vieram de unidades de conservação, incluindo parques nacionais e reservas ecológicas, o que preocupa os pesquisadores por serem áreas ecologicamente sensíveis, ou seja, ecossistemas frágeis, espécies ameaçadas de extinção ou recursos naturais importantes.
“A rápida expansão da população de espécies invasoras pode competir com as espécies nativas e afetar a biodiversidade. É importante entender que as espécies nativas não têm defesas contra essas invasoras, que podem trazer doenças e competir por recursos”, explica Edison Barbieri, oceanógrafo, pesquisador no Instituto Pesca e autor do artigo. Conforme Barbieri, a introdução do mexilhão-verde pode estar associada à liberação de larvas na água de lastro de navios, ou fixação e dispersão em plataformas petrolíferas, embarcações ou até a poluição — muitos desses organismos foram encontrados em cordas de nylon e lixo plástico.
Os resultados do estudo destacam a urgência de implementar estratégias de manejo eficazes e políticas de conservação, focadas em prevenir a disseminação da espécie e apoiar a sustentabilidade dos ecossistemas estuarinos e costeiros locais.
“Não adianta apenas capturar ou remover os espécimes, é preciso monitoramento contínuo, um plano de longo prazo para evitar problemas maiores”, diz Edson Barbieri.
As colônias mais densas foram observadas no estuário Cananeia-Iguape e na Praia de Aparecida (Santos, SP). Novos registros foram documentados ao longo da costa norte do Estado de São Paulo, incluindo Caraguatatuba, São Sebastião, Ilhabela e Ubatuba. O registro mais ao sul foi encontrado em Bombinhas (SC), indicando uma possível expansão contínua para a região. Mais ao norte, a espécie tem registros na Baía de Guanabara e em outras regiões do Rio de Janeiro. A identificação dos espécimes passou por análise morfológica, diferenciando-os da espécie nativa, Perna perna, e material testemunho do estudo foi armazenado para futuras análises no Museu de Zoologia (MZ) da USP.
Monitorar continuamente
A plataforma iNaturalist foi um dos pilares para a obtenção dos registros da espécie exótica, contribuindo para a ampliação do conhecimento sobre sua distribuição. No entanto, há necessidade de curadoria dos dados por especialistas, uma vez que a identificação inicial é feita por cidadãos com ajuda do algoritmo da plataforma. Também há limitação na validação científica, pois as imagens por si sós, ainda que georreferenciadas, não substituem a coleta e investigação em campo. De acordo com o oceanógrafo, “falta uma avaliação in loco mais ao sul do País para afirmarem e validarem a expansão da espécie de molusco para a região”.
Apesar disso, o pesquisador ressalta a contribuição da ferramenta para o monitoramento contínuo, destacando os úteis metadados de localização e a agilidade na identificação de espécies diferentes das habituais na região de coleta. “Ciência cidadã é um instrumento que temos que usar bastante. Embora precise de ajustes e melhorias, ela permite iniciar a investigação e validar informações, especialmente quando surgem dados novos ou inesperados, como a descoberta de um organismo diferente”, explica Barbieri. Além dessa contribuição, a população também tem papel importante no controle das espécies com mutirões para remoção dos indivíduos.

“Para implementar políticas eficazes, é preciso trabalhar em conjunto com a comunidade e utilizar dados científicos. Pode incluir estudar os padrões de reprodução de uma espécie e organizar mutirões para remover indivíduos do ambiente em momentos críticos, como durante a época de reprodução”, ressalta. Por ser um processo contínuo e adaptável, não há uma solução única ou definitiva para problemas complexos como esse, conforme o autor. Por isso, ele afirma que “o monitoramento contínuo, aliado aos dados históricos, permite sugerir políticas públicas eficazes para abordar o problema”.
Análises futuras
Mesmo com essa grande importância, o oceanógrafo declara que o monitoramento ainda não é visto no País como pesquisa, dificultando a captação de recursos. Esse desafio da sustentabilidade financeira resulta numa falta de estudos e dados sobre os impactos desses organismos na biodiversidade local, de acordo com Daniel Caracanhas Cavallari, coautor do artigo, especialista em moluscos e técnico de laboratório do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP. Apesar disso, ele alerta que “os desequilíbrios são extensos” e a “causa multifatorial”, indo desde legislação datada até a falta de políticas públicas direcionadas às bioinvasões.
Cavallari, que já trabalhou no MZ, confirma a importância do material armazenado nele. “Sem o material testemunho, a replicabilidade do estudo se torna muito difícil”, afirma o técnico. Além dessa relevância, ele também aponta para os dados que análises genéticas futuras dos exemplares podem revelar para o manejo da bioinvasão.

“A análise do DNA das espécies pode ajudar a identificar as populações de onde se originaram os espécimes invasores, o que facilita o planejamento de ações de monitoramento e controle”, diz Daniel Cavallari.
Ainda, o armazenamento dos espécimes ajuda pesquisadores a evitar e corrigir erros de identificação, como o que registrou o mexilhão-verde no Nordeste. “Algumas espécies que também ocorrem no Brasil, inclusive nativas, podem ter um formato e uma coloração esverdeada semelhantes à da espécie invasora, o que pode causar confusão. Há uma espécie nativa da América do Sul, Mytella strigata, que também é esverdeada e foi objeto de um estudo recente, publicado em 2024, que corrige um caso de identificação errada de P. viridis no Nordeste”, continua Cavallari.
O artigo intitulado Green mussel Perna viridis (L.) on the Brazilian coast: a fast-spreading invasive species reaching protected areas está disponível aqui neste link.
Com informações do Jornal da USP
*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta matéria, o ODS 14 – Vida na Água.
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