Norberto Salomão
Norberto Salomão
Norberto Salomão é Advogado, Historiador, Professor de História, Analista de Geopolítica e Política Internacional, Mestre em Ciências da Religião e Especialista em Mídia e Educação.

O “admirável mundo novo” das impermanências

Pessoas da minha geração, que nasceram nos anos 60 do século XX, têm sentido, profundamente, a vertiginosa mudança dos valores e das concepções de mundo e de modo de vida, principalmente nos últimos 40 anos.

É certo que as coisas estão sempre em transformação, como já dizia a canção, de Lulu Santos e Nelson Mota, “nada do que foi será, de novo, do jeito que já foi um dia. Tudo passa, tudo sempre passará…”.

Música de Lulu Santos, Como uma Onda.

Contudo, o ritmo dessas mudanças e os seus impactos, muitas vezes duríssimos em nossas vidas, nos deixam uma desconfortável sensação de incerteza ou nos leva à angustiante conclusão de que a única certeza possível é a impermanência.

Não é minha intensão desenvolver aqui um discurso apocalíptico ou mesmo uma perspectiva distópica. Também não se trata de buscar afirmar uma narrativa nostálgica, que é comum àqueles que já passaram dos 50 e que tendem a ver o passado como uma época de ouro, na qual “tudo era melhor”.

Meu objetivo inicial é convidá-los, independentemente da idade que tenham, para refletirmos sobre como assimilarmos o tempo presente, com suas gritantes incertezas, em oposição à pseudo sensação de solidez de paradigmas que predominou na perspectiva ocidental, entre o fim da 2ª Guerra Mundial e os anos 80.

Nesse sentido, podemos constatar que a concepção de mundo do pós 2ª Guerra mundial, com a derrota da ameaça nazifascista, era a de que parecia que as coisas tinham sido consertadas.

Agora cada coisa passou a ficar “na sua devida gaveta”: mundo dividido entre bloco capitalista e bloco socialista; a Conferência de Bretton Woods com a criação de ordem financeira mundial (FMI e o Banco Mundial e o dólar padrão ouro como referência monetária internacional) e a Organização das Nações Unidas (ONU) como o fórum para a resolução de conflitos entre as nações. Tudo isso prenunciava que o mundo viveria um período de paz e harmonia.

Pois é, mas mesmo dentro desse mundo, que parecia todo ordenado, ocorreram eventos impactantes como a Guerra do Vietnã; o Rock’n Roll e a mudança de costumes; as intermináveis guerras na África e no Oriente Médio; os movimentos do 1968 e a construção do Muro de Berlim. Porém, essas mudanças iam sendo assimiladas naturalmente, pois o ritmo em que ocorriam dava a ilusão de um futuro previsível.

A partir dos anos 1990 o ritmo e a variedade das transformações têm sido alucinantes, destacadamente com a revolução comunicacional representada pela internet e a utilização das redes sociais. Essas novas formas de comunicação têm modificado profundamente a forma como as pessoas recebem, criam e transmitem informações.

Ao responder sobre os desafios atuais que estão moldando o jornalismo ao redor do mundo, o jornalista italiano Giani Riota afirmou que não é possível falar em jornalismo sem as redes sociais.

Jornalista italiano Giani Riota. (Foto: Wikipedia)

Segundo ele, nos últimos 20 anos as pessoas acessaram as informações, predominantemente, pelo Facebook, Google ou Twitter. Assim, ele nega a ideia de que convivam atualmente uma mídia velha e uma mídia nova, mas o que há é “um bagunçado, cheio, barulhento e partidário ecossistema de notícias, mesmo assim, nunca na história tanta informação de qualidade esteve disponível, acessível e facilmente compartilhada”.

Em minha compreensão, atualmente a imprensa ou mídia convencionais têm que dividir o protagonismo na transmissão das “informações” com a agilidade com que essas informações transitam nas redes sociais.

A questão é que, com relação à grande parte dos conteúdos compartilhados nas redes sociais, o processo de verificação da informação e a reflexão sobre os fatos ficam profundamente prejudicados. Assim, desenvolvem-se as mais variadas interpretações e narrativas sobres a realidade em que vivemos.

Um dos pensadores que considero fundamental para que possamos refletir sobre essas questões é o judeu-polonês Zygmunt Bauman, que faleceu em 2017. Com obras como O mal-estar da Pós-Modernidade (1997), Modernidade líquida (2000), Amor líquido (2003) e Medo líquido (2006), Bauman reflete sobre a modernidade tardia ou pós-modernidade e a crise dos paradigmas.

Zygmunt Bauman (2015). Foto: andersphoto / Shutterstock.com

O ponto central da teoria de Bauman é o conceito de modernidade líquida segundo à qual estamos em uma nova época marcada por relações sociais, econômicas e emocionais que se apresentam como extremamente flexíveis ou moduláveis, se comparadas ao período anterior.

Nesse novo mundo, marcado pela “plasticidade” dos costumes, dos conceitos e dos valores, as relações são frágeis, fugazes e incertas, daí a ideia de liquidez. Segundo Bauman, essa modernidade líquida é o reflexo dos avanços técnico-científicos intensificados pela industrialização e pela lógica de consumo capitalista.

Assim, podemos observar que nesse novo mundo, das duas primeiras décadas do século XXI, ocorre uma espécie de naturalização da exploração capitalista, justificada por uma hipotética meritocracia. As instituições tradicionais como o Estado, o Judiciário, o sistema monetário e os organismos internacionais são questionados sobre suas funções e legitimidade.

Cada indivíduo é uma instituição em si mesmo, o termo relacionamento passa a ser entendido como conexão, que pode, a qualquer momento, ser descontinuada. Um exemplo desse novo quadro é a ostentação nas redes sociais, ostentação não só de bens materiais, mas também de vida perfeita e prazerosa mostrada nas selfies.

A demonstração dessa felicidade fugaz e superficial reforça a concepção de que a felicidade do indivíduo está diretamente ligada ao seu poder aquisitivo e à sua capacidade de consumir.

Outro conceito interessante, na busca de tentarmos compreender o momento atual, é o da hipermodernidade defendido pelos pensadores Giles Lipovetsky e Sebastien Charles. Na obra “Os Tempos Hipermodernos”, Lipovetsky e Charles não utilizam o conceito de Hipermodernidade como contestação à modernidade, pois, de certa forma, mantém-se os princípios basilares da modernidade tradicional como o desenvolvimento técnico-científico, a valorização da razão, da liberdade e do individualismo.

Assim, entendem que o momento atual não se trata de uma pós-modernidade, mas, sim, de uma exacerbação dos valores modernos marcada pela fluidez e adaptação aos novos ritmos nas variadas relações, tanto humanas quanto de mercado.

A Cultura do excesso é a marca da Hipermodernidade, ou seja, o imediatismo, o caráter de urgência e as relações efêmeras se justificam pela tentativa de acompanhar a velocidade dos avanços tecnológicos e a agilidade e variedade do trânsito de informações e conteúdos nas redes sociais.

Naturalmente, aqueles que não conseguem ou não querem se adequar a esse ritmo vão buscar amparo nos saudosismos, na nostalgia e em escala mais intensa na retomada de ideais religiosos e políticos ultraconservadores. Daí uma contradição perceptível em nossas sociedades: cultura do excesso x ultraconservadorismo.

Finalmente destacarei nessa nossa saga, de refletirmos sobre a atualidade, os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, autores da obra “Como as Democracias Morrem”.

Ao longo dessa obra Levitsky e Ziblatt abordam aspectos fundamentais sobre a existência do regime democrático. Segundo eles, é possível traçar o perfil do político autoritário e que representa ameaça para a manutenção das instituições que são a salvaguarda da democracia.

Tal perfil de político, cada vez mais comum em nossos dias, caracteriza-se pela falta de comprometimento com as regras que regem as liberdades democráticas, negação da legitimidade de ideologias e conceitos políticos que se opõem aos seus, encorajamento atos de violência como solução para questões pessoais e públicas, alegação de que os valores ditos patrióticos estão acima das liberdades, ataques a imprensa, intelectuais e artistas que defendem conceitos diversos dos seus e incentivo a polarização política, pois isso valida uma espécie de “vale tudo” para vencer os inimigos da pátria.

Bem, parece claro que as incertezas que vivemos atualmente são um campo extremamente fértil para a proliferação dessas ideias radicais. A desilusão de parcelas da sociedade com os rumos que o mundo vem tomando, favorece o discurso de que o passado era melhor e glorioso, de que é preciso retomar o “respeito” e as “tradições”, onde cada um sabia o seu lugar.

É nesse ambiente de incertezas que a retórica da direita e da extrema-direita encontram abrigo e apoio. Retomam os nacionalismos ufanistas e atrelam isso a uma ferrenha oposição à globalização e aos acordos multilaterais. O imigrante é o inimigo que ameaça seu emprego e sua cultura, e corrompem o modo de vida nacional.

É assim que nos encontramos, imersos em uma era de impermanências, mas que curiosamente abre espaço para a retomada do tradicionalismo radical e irracional, a ponto de se retomar o “terraplanismo” e de se validar absurdas teorias da conspiração.

Sem dúvida são tempos difíceis e que revelam os temores mais profundos. É o momento em que precisamos nos enriquecer com informações consistentes para podermos ter razoável lucidez em meio a esse bombardeio de informações.

O fato é que as mudanças não cessam e cada vez mais a ideia de mundo previsível parece improvável. Contudo, acredito que atitude mais sábia não está em perseguirmos uma “confortável sensação de previsibilidade”, mas sim e buscarmos a compreensão sobre as mudanças e de como seus ritmos nos impactam.

Dessa maneira, concluo nossa breve reflexão com os versos da canção “Meditação”, de Tom Jobin e Newton Mendonça: “Quem acreditou no amor, no sorriso, na flor, então sonhou, sonhou e perdeu a paz. O amor, o sorriso e a flor, se transformam depressa demais”.

Música Meditação, de Tom Jobin e Newton Mendonça.

*Norberto Salomão – Advogado, Historiador, Mestre em Ciências da Religião, especialista em Mídia e Educação, Professor de História e Especialista em Geopolítica.

Leia mais:

Mais lidas:

Leia também: