Em Campinas nunca se soube de um velório tão triste como o Guarda. Choro e revolta se misturavam. Dona Ritinha do seu Isaac crente orou na Bíblia e falou que o Reino do Céus era dos justo, mas Lindamara nem escutou o palavriado. Soltava um gemido sofrido, mas não tinha mais lágrimas para descer cara abaixo. Só a vermelhidão naquele rosto repleto de sardas. Já rouca Rosália não conseguia gritar alto, mas continuava gritando: “Porque Deus deixa alguém matar um homem tão bom? E como Deus não respondia, ela continuava a gritar, quase sem voz.

O Guarda era realmente um homem bom. Se chamava Sebastião, mas como trabalhava de guarda noite na oficina do Vicente Italiano, ficou com este apelido. Era primo da esposa. Vieram meninos das bandas de Paracatu. Seu João Menezes e dona Sebastiana eram os pais dele, seu Francisco Costa e dona Marta os pais dela. Seu João e dona Marta eram irmãos. Vieram pra Goiânia porque sabiam que o prefeito Venerando estava dando terreno nos arredores de Campinas para povoar a nova Capital. Ganharam os lotes, lado a lado e cada um construí seu barracão. A prefeitura deu os tijolos, telha, cimento pra fazer o piso e a terra para fazer o barro de assentar os tijolos. Seu Zé dos Reis, do Centro Espírita cuidava de organizar as pessoas para fazer o mutirão e construir os barracões e assim a Vila Operária foi crescendo pros lado da Vila Abajá. E foi assim que os dois barracões foram erguidos. Naquelas paragens, depois de muito tempo de construídos, é que o barraco era rebocado e alguns até pintados. Tudo de três comodos: cozinha, sala e quarto. Cisterna com carretilha para puxar o balde, privada de buraco no fundo do lote é um puxadinho de pouco mais de um metro por um, com o chuveiro pendurado na corda. Esquentava a água no fogareiro, temperava e tomava o banho. O fogareiro era comum nas moradias. Era feito de lata de 20 litros. A boca em cima toda aberta, em um dos lados, na parte de baixo abria uma tampa. Colocava uma garrafa no meio da lata, enchia de serragem, apertava bem, na tampa aberta lá embaixo tirava a serragem até encontrar a garrafa, puxava a garrafa pra fora e ateava fogo pela tampa. A outra lata de 20 litros era colocada de travesso em cima, cheia d’água e ali ia sendo reposta por quem tomava o banho. Era lá pelas quatro da tarde que começava o aquecimento da água. Pela manhã o fogareiro cozinhava o feijão. O arroz e o resto era feito no fogão de lenha, que ficava na cozinha e já era construído junto com o barracão. Os muros cercando os barracões só apareceram lá pelo ano de 1955, quando a maioria dos que ganharam os lotes já havia morrido e os filhos vendiam o imóvel para dividir o dinheiro. Nesta época muitos fazendeiros trouxeram os filhos pra Goiânia para estudar. Eles ficavam com as mães na cidade e os pais iam e voltavam para as fazenda de Jeep. Eram os fazendeiros que compravam os imóveis e Construíam as casas bangalôs que ainda hoje estão por lá.

Seu Francisco e dona Marta só tiveram a Lindamara; seu João e dona Sebastiana tiveram o Sebastião e a Joana, mas a menina morreu de sarampo. Seu Francisco era carroceiro e seu João lenhador. Quando Lindamara estava com 16 anos e Sebastião com 18, os pais decidiram casar os dois e eles gostaram da ideia. Cresceram juntos, trocavam umas espiadelas desde meninos. Ela era branquela, sardentinha, baixa e gordinha. Ele era magrelo e puxou a cor da mãe, era quase preto. Mais pra preto do que pra branco. Alto, olhar sério – um rapaz bonito que a partir dos 11 anos já rachava lenha com o pai, na lenharia. Os dois estudaram até a admissão e depois ficaram só trabalhando, ajudando os pais. Dona Marta era costureira e ensinou a Lindamara o ofício. Tinha de ter cuidado para a costura não sair torta. A mão esquerda rodava a máquina e a direita encaminhava o pano. Foi assim até aparecer as máquinas Pffaf, que eram tocadas com os pés. Nos anos de 1960 os pais dos dois já tinham morrido. O barracão do seu Francisco e dona Marta foi vendido e a lenharia continuou funcionando no barracão do seu João Menezes e dona Sebastiana, onde a família do filho morava. Ficava bem na esquina da rua J-1, com a Catalão, em frete ao Bar Progresso. O Guarda e Lindamara não tiveram filhos. Ela não embuchava. Quando o Vicente Italiano abriu a oficina colocou um cartaz escrito num papelão: “precisa de guarda noite”. Sebastião vendo decidiu se apresentar para a vaga, já que a oficina ficava na primeira esquina acima da sua casa, ao lado do Armarinho do turco Abud. A lenharia seria tocada pela esposa. Quando acordava, almoçava e rachava a lenha. A tarde sai para comprar as madeiras para abastecer o negócio, que quase não dava lucro nenhum.

A oficina do Italiano foi montada para consertar automóvel chique que batiam. Chegavam ao Brasil os Sincas, Aerowillis, Candangos, DKVs, Vemaguetes e Gordinnis. As ruas ainda eram de terra, sem sinalização e com os carros que corriam até 100 quilômetros por hora, era batida todo dia. O Italiano que era funileiro veio de São Paulo com a família e montou a oficina, que vivia lotada. Tinha três filhos: Vicentinho, Roberto e Batista. Ensinou o Roberto pintar os carros, o Batista desmontar e montar a lataria e para choque e ele mais o Vicentinho faziam a funilaria. A oficina abria as sete, fechava para o almoço as 11, reabria as 12 e meia e encerrava o expediente às cinco da tarde, quando o Guarda entrava em serviço. Ele achava uma moleza. Entrava, baixava as portas e dormia dentro de algum carro. Se ouvisse algum barulho ascendia a lanterna de pilha e olhava, depois voltava dormir.

A Rosália entrou pra família aos 14 anos. Antes o Wakyra japonês abriu a frutaria, ela foi trabalhar com ele. Era filha do Gabriel e da Vandinha, que moravam na favela abaixo da estação ferroviária, conhecida como Maloca. Quando tinha 10 anos o Gabriel foi trabalhar no asfaltamento da Belém-Brasília e nunca mais voltou. Vandinha passou a frequentar o “Chiqueirinho das Leitoas”, um bordel na na Praça da Ok. Rosaria ficava sozinha quase a noite inteira. A mãe sempre chegava bêbada, de madrugada. Era carinhosa com a filha, dava presentes e logo alugou o barracão do seu Teobaldo, lá na rua 3, da Vila Abajá. Com 12 anos, Rosaria começou um namoro escondido com o Armando. Bonitão, tocava violão e sabia cantar a Garota Papo Firme, do Roberto Carlos e a Última Canção, do Paulo Sérgio. Tinha 16 anos. Bonito e cantando bonito ganhou o coração da Rosária. Dizem que até beijo na boca eles deram. Quando o rádio tocava a Última Canção ela suspirava fundo. Sonhava em se casar com o Armando. O Wakyra Japonês abriu a frutaria no dia das mães, 12 de maio. Via a Rosária pelas ruas, na bicicleta que ganhou no natal, da Vandinha. Um dia perguntou se ela não queria trabalhar com ele. Vandinha que já andava desconfiada do namoro com o Armando achou a ideia boa, pois ocuparia o tempo vago da filha. Acertou com o Japonês: a menina saía do Grupo as 11 e começava trabalhar a uma da tarde indo até as seis da noite. Rosália vendia frutas e verduras e limpava a frutaria. Ia bem. Além da frutaria o Wakyra era marreteiro: comprava e vendia carro. Era baixinho, cabelo lisinho como todo japonês e gostava de usar um boné marrom.

Um dia chegou por lá um galego desconhecido para vender um Impala. Wakyra disse que pagava os 100 milhões de cruzeiros, mas com prazo de 30 dias. O galego topou. Ninguém sabia de onde o Galego veio. Gordo, barbudo, branco de dar gosto e falava pouco. Após o negócio com o Wakyra, passou a frequentar o Bar do Sirico, que ficava do outro lado da rua. Tudo na esquina da 504 com a Catalão. Do lado de baixo da 504 ficava a frutaria, do lado de cima o Armarinho do turco Abud, ao lado a Oficina do Italiano e do outro lado o Bar do Sirico. Rosária só soube da morte da mãe quando já havia sido sepultado como indigente. Saiu na última semana de junho para ganhar dinheiro dos romeiros na festa de Trindade, que acontece até hoje, no primeiro domingo de julho, mas que começa receber romeiros três semana antes. Lá um sujeito se deitou com Vandinha na casa da Lana. Quis sair sem pagar. Vandinha pulou no pescoço dele e ele enfiou uma peixeira na barriga dela. Quando o Dr. Sizenando Monteiro a recebeu lá no hospital, já estava morta. O assassino levou a bolsa dela. A Lana, que alugava os quartos para os encontros só conhecia as mulheres de Trindade. Assim, Vandinha acabou sepultadas como indigente.

A festa de Trindade passou, nada da mãe aparecer e Rosália, agora com 14 anos, contou pro Armando, que já tinha 17. Ele a jogou na garupa da Monark e foi lá no Distrito da Praça Joaquim Lúcio. Rosária contou para o homem que escrevia na máquina, o pouco que sabia: a mãe tinha saído havia um mês, para ir para a festa de Trindade e não voltou. O homem perguntou: “Sua mãe era rapariga?”. Rosária ficou calada. Armando respondeu: “Sim”. O homem trouxe uma foto de Vandinha morta e perguntou se era ela. Deste modo Rosária soube que estava só na vida. Seu Venceslau até aceitou, mas dona Diná não quis nem saber de ouvir a ideia do filho. Armardo queria levar Rosária para morar na casa dele: “Deus me livre, nunca quis saber deste seu chamego com a filha da rapariga e agora você quer trazer ela pra morar aqui. Daqui a pouco um dos meus filhos está casado com uma rapariguinha”. Armando só abaixou a cabeça, para evitar uns petelecos que a mãe era acostumada dar nos filhos. Seu Teobaldo logo pediu para desocupar o Barracão. Quando foi comprar tomate na frutaria do Wakyra, Lindamara viu Rosária aos prantos, com uma trouxa de roupa enrolada num lençol. Acolheu a moça no peito e perguntou: “Que foi minha filha?” Rosália contou a história e que seu Teobaldo a colocou na rua, ficou com os moveis alegando que o aluguel estava atrasado, o que era mentira, pois Vandinha nunca atrasava nem com a caderneta do Armazém Dourado e nem com o aluguel. Lindamara sabia da vida da Vandinha, aliás Campinas inteira, repleta de gente fofoqueira, sabia. Sempre teve dó da menina. Fez a pergunta: “Quer ser minha filha?”. Como o amor só precisa do sinal para brotar, brotou no coração da Rosária na hora: “Quero, mas o Guarda vai querer? – quis saber: “Minha filha o Sebastião é o homem mais benevolente do mundo. Vai querer e vai ser seu pai. Só que ele vai mudar alguns hábitos na sua vida. Final do dia Rosária foi para a casa da Lindamara. Só na manhã do outro dia o Guarda conversou com ela. Pediu para que ela chamasse a ele e a esposa de padrinhos e que a partir daquele momento ele e Lindamara tinha uma filha. Não houve abraço, mas os três choraram. O Guarda nem quis dormir. Desceu duas quadras, foi se ver com seu Teobaldo. Voltou bem mais tarde na carroça do Zé Carroceiro, trazendo a prateleira, pratos e panelas, cama, guarda roupa e penteadeira. Exigiu três coisas da nova filha: sair do trabalho na frutaria, ajudar a mãe na lenharia e terminar o namoro com o Armando. Quando tocou neste assunto o coração quase saiu boca afora. O Guarda foi firme: “Não quer repetir a triste vida da sua mãe, quer? Precisa estudar e este rapaz que vive com um violão mas costas, andando de bicicleta pra baixo e pra cima, com quase 18 anos, não vai dar gente boa. Até hoje não trabalha.” Ela não teve saída, aceitou, mas não deu conta de evitar as lágrimas. Foi o Guarda que falou para o Armando não procurar mais a garota e ele não procurou. Tinha muitas namoradas. A vida da Rosária mudou. Tinha os pais mais amados do mundo. A mãe dava colo todo dia, fez roupas novas, inclusive uma calça esporte- que só filhas de rico usavam. O pai era mais distante, mas deixava ela ouvir música no rádio dele ouvir os jogos e nem se queixava quando as pilhas acabavam. Nunca chegou em casa sem trazer uma guloseima pra ela. Era bolo, pedaço de doce e até Sonho de Valsa. O lar era amor puro. Rosária só sentia um aperto no coração quando ouvia a Última Canção, no radinho do padrinho. Lindamara a consolava, isto passa.

A frutaria do Wakyra foi ficando sem estoque e antes do prazo para o pagamento do Impala vencer, ele desapareceu no carro. Foi parar no Paraná, de onde veio. Dois dias depois o Galego, que já conhecia todo o movimento da oficina do Italiano, esperou a madrugada chegar, pulou o muro que separava a oficina do armarinho e se enfiou no banheiro nos fundos da funilaria. O Guarda acordou com o movimento. Ascendeu a lanterna, abriu a porta do fundo, que era pequena e de madeira, não viu nada. Saiu e o Galego esperou ele dar as costas, abriu a porta do banheiro, já com a faca no seu pescoço.

Queria roubar uma Aerowillys que acabava de ser consertada. Com o Guarda morto entrou na oficina, destravou a porta de fora. O carro estava sem a bateria. Tirou a bateria do Kandango do lado e foi dar a partida. O que ele não sabia é que o turco Abud tinha notado o movimento estranho na oficina. Abud era o único daquelas redondezas que tinha telefone. Ligou pra Radio Patrulha e a viuvinha veio antes do Galego conseguir sair com o carro roubado. O ladrão quis correr, mas levou um tiro na perna. Foi preso. Menos de uma semana o Wakyra estava de volta trazido pela polícia com o Impala e tudo. Estava de posse de um carro roubado e com documentos falsos.

A dor e a revolta vista no velório, se estendeu até o Cemitério Parque, onde o Guarda foi sepultado. Lindamara fechou a lenharia, voltou a costurar pra fora e cuidou de Rosária até ela entrar para o científico, no Colégio Pedro Gomes, quando conheceu o Elzinho, um professor solteirão que já passava dos 50. Na festa do aniversário da escola ele cantou A Última Canção e como o amor só precisa do sinal para brotar, brotou de novo no coração de Rosária. Lindamara concordou com o casamento: “Homem velho, responsável dá muito valor em mulher nova”. Casaram na Matriz de Campinas e todos os sábados a Rosária saía lá da Avenida Pará, para passar o dia com a Lindamara na Vila Operária. Quando Elzinha teve o AVC e morreu, ela levou a mãe para sua casa. As duas ainda vivem no setor Coimbra.