As semanas pós-cerimônia do Oscar costumam ser bastante mornas quanto a lançamentos de filme. Está todo mundo de ressaca. Os distribuidores, de forma geral, preocupam-se em explorar os títulos premiados e os espectadores, por outro lado, têm mais interesse em ir conferir as obras citadas na cerimônia do que assistir algo sobre o qual ninguém está comentando. Para quem está pleiteando uma vaga ao Oscar do ano seguinte, comercialmente é a pior semana para se lançar um filme.

“Projeto Flórida” (2017), de Sean Baker, foi lançado nacionalmente semana retrasada (01/03). Internacionalmente, bem antes. Mas chegou com uma semana de atraso a Goiânia. Comentei de forma superficial sobre ele com o Rubens e a Cileide no último Cinemateca (08/03), mas acho que dá para falar muito mais sobre esse que é um dos filmes mais simples e profundos da temporada.

O Sean Baker é aquele que fez um filme inteiro usando um iPhone 5s e uma engenhoca como adaptador de lentes, em 2015. Saiu “Tangerine” (2015), que faturou uma porção de prêmios no circuito independente (o Independent Spirit e o Gotham Independent Film Awards são os de maior destaque, mas também chamou a atenção em Sundance). Essa, aliás, é a veia do diretor: a produção independente de baixo orçamento, com qualidade inversamente proporcional.

Em “Projeto Flórida”, apesar de tecnicamente mais bem elaborado, Baker mantém seu espírito. Depois de algum tempo de pesquisa entre trabalhadores e moradores dos arredores dos grandes parques da Disney, em Orlando, saiu com essa análise profunda da vida barata que circunda aquele universo mágico capitalista.

Rodado em 35 milímetros, o filme se aproxima de Moonee, uma garotinha (interpretada magistralmente pela Brooklyn Price) que mora com a mãe num hotel barato no entorno da Disneylândia. O hotel, ironicamente, se chama “Magic Castle Inn”, gerenciado pelo Bobby (papel que rendeu a Willem Dafoe uma indicação ao Oscar na categoria de melhor ator coadjuvante.)

Moonee e seus coleguinhas atazanam a vida dos vizinhos com suas molecagens. Criança é cruel até quando brinca, todo mundo sabe disso. A falta de malícia existe para bem e para mal, o bom senso é quase zero. E se por um lado acompanhamos a garotinha inescrupulosamente cuspindo no carro da vizinha que mora no hotel ao lado (que se chama “Futureland”. Barato e irônico), com a mesma facilidade ela é capaz de fazer amizade com a filha da vítima. Essa facilidade em relevar o contexto e seguir vivendo – visto de modo mais claro nessas pequenas aventuras do dia a dia infantil – abre a porta para que enxerguemos a verdadeira matéria do filme: a condição precária em que vivem aquelas pessoas, sem instrução, grana contada, sem sustentação emocional e afetiva, e a força que a criançada encontra para crescer e se desenvolver à parte do caos.

De frente para a tela, estamos acostumados a uma visão mais extremada da aridez nas relações sociais. A pobreza é aquela sintetizada como ausência total de recursos básicos como comida, moradia, roupa. Aqui, o incômodo vem principalmente pelo caos emocional. Porque os recursos materiais são poucos, mas não falta comida ou roupas. A grana é curta, mas nada que um trambique bem executado não resolva. O teto pode sumir a qualquer momento, mas a amizade (ainda que turbulenta) com o gerente garante uns dias a mais de aconchego e privacidade. Mas do lado emocional, puxa-se a coberta para cobrir a cabeça, destampa-se os pés.

Se por um lado Moonee tem o carinho que julga necessário e suficiente de sua mãe, socialmente isso pode não parecer o mais adequado. Nossos olhos, inclusive, fazem o papel de inevitável assistente social, a vasculhar cada falta de zelo de Halley (a mãe), a bagunça do quarto, a falta de vigilância e educação das crianças. E não é que Halley não seja carinhosa: ela é. Mas não do jeito que esperamos. Apenas da forma como é possível ser.

Não vou comentar o final do filme. Mas é tocante. Contrasta com o ritmo parcialmente monótono que Baker insiste em impor durante certa parte da obra, conforme vamos nos acostumando às pequenas aventuras das crianças.

Vivamos em que mundo for, no final das contas, a realidade bate à porta. Injusta ou não, a conta vem. E quando isso acontece, cada um foge para o castelo que lhe estiver ao alcance.

Ps.: Vamos concordar numa coisa: Que cartaz sensacional o desse filme, hein?