A Lei de Drogas exerce um papel central no fenômeno do encarceramento em massa da comunidade negra no Brasil, contribuindo significativamente para a sua sobrerrepresentação nos sistemas prisionais. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país ocupa a terceira posição global em termos de população carcerária, com aproximadamente 830 mil pessoas privadas de liberdade.

Alessandra Nogueira Lucio – Foto: Currículo Lattes

A pesquisa de mestrado conduzida por Alessandra Nogueira Lucio, graduada em Direito pela Universidade de Mogi das Cruzes, demonstrou como essa legislação desempenha um papel preponderante nesse contexto.

“Quando se fala em drogas, o maior número de condenações é de pessoas negras, que constituem 68% da população presa. Os motivos que contribuem para esse número são diversos e vão além do tráfico de drogas em si. Existe uma diferença na abordagem policial entre negros e brancos detidos pelo mesmo crime e o racismo estrutural presente no tribunal”, destaca a advogada, em entevista a Lívia Lemos do Jornal da USP.

A pesquisadora salienta a diferença na aplicação da lei entre indivíduos negros e brancos. “Durante minha pesquisa, eu analisei mais 1.700 processos de pessoas detidas por drogas e notei, por exemplo, que um indivíduo branco, quando abordado com a mesma ou mais quantidade de drogas que um negro, muita das vezes, não era condenado.”

Traficante x usuário

Sob a orientação da professora Maria Angélica Ribeiro, a dissertação intitulada “O sistema prisional: uma máquina de moer gente e a carne predileta continua sendo a negra!” abordou o tema do encarceramento em massa da população negra, o genocídio negro e o sistema de justiça. Defendida em 2023 na USP, a pesquisa de Alessandra analisou desde os aspectos históricos e sociais até os processos judiciais envolvidos.

Alessandra destacou a relação entre a origem e a condição social dos negros e o encarceramento, observando que a maioria da população negra reside em áreas periféricas, onde a circulação de drogas é mais expressiva. “A periferia já é naturalmente vista como um lugar central de tráfico. Então, para a polícia, significa que todo negro, se abordado nesse lugar com droga, ainda que com uma quantidade mínima, já é traficante. Muitas das vezes, o jovem não está cometendo o ato do tráfico, mas o policial não vai olhar para isso”, aponta Alessandra.

Por outro lado, a abordagem e o julgamento policial mudam em um bairro afastado de áreas pobres: “Em um bairro nobre, se um indivíduo é pego com droga, é considerado apenas como usuário e não como traficante”, relata a advogada. A diferença de tratamento e de termos usados pelos policiais são cruciais para o julgamento desses indivíduos dentro dos tribunais.

“Se o jovem negro é detido pela polícia, ao chegar ao sistema de justiça, o que é validado para os juízes é o testemunho do policial. Se o policial falou que ele foi forjado com x quantidade de droga, é isso que vai valer. Mas, para uma pessoa branca, é concedido o direito de explicação, de defesa e de advogado. Além de ser um sistema estruturalmente racista, o Sistema Judiciário também é injusto. A aplicação da lei para brancos e negros não é igual.”

Lei de Drogas

A Lei de Drogas, promulgada em 2006, visa combater o uso e o tráfico de substâncias ilícitas, mas, conforme ressalta a pesquisadora, sua aplicação não efetivamente reduz o consumo de drogas, focando-se, ao invés disso, na criminalização dos corpos negros. Um aspecto problemático identificado pela pesquisadora é a ausência de critérios claros na legislação que estabeleçam uma quantidade mínima de drogas necessária para a prisão de um indivíduo.

Adicionalmente, Alessandra aponta para a falta de uma análise individualizada nos casos que envolvem pessoas negras, ressaltando a necessidade de uma abordagem mais justa e equitativa por parte do sistema de justiça. “Sem essa regulamentação, a decisão de condenar ou não o indivíduo fica a cargo do juiz. Ele não vai analisar a questão social do indivíduo, apenas a lei e o testemunho do policial.”

Além da falta de regulamentação, a pesquisadora aponta também para a falta da análise individual de casos negros. “Numa custódia, a questão social do branco é analisada, mas a do negro não. Quando temos um juiz e ele não quer analisar algo que parece óbvio, que é a questão social, não é porque isso não é importante, é simplesmente porque ele tem uma visão racista. ‘Você é negro e cresceu na periferia, é óbvio que você é um criminoso’.” 

Tempo de condenação

Além da classificação de traficante, o tempo de condenação para pessoas negras é maior. “No mínimo, são seis anos de prisão. Se o jovem não estava cometendo o ato do tráfico, mas vai encarcerado injustamente, você comete um genocídio não só com ele, mas também com sua família”, afirma a advogada.

A pesquisadora defende não apenas um julgamento imparcial, mas também uma atenção para a questão social de cada indivíduo e um amparo jurídico por parte das autoridades. “Na maioria das vezes, essas pessoas não terão um advogado. Elas vão precisar de um defensor e nem sempre esse defensor irá poder fazer tanto por ela em comparação com aquela pessoa branca que tem um advogado particular.”

Para que isso aconteça, Alessandra prevê a necessidade de mais pessoas negras adentrarem o Judiciário. “Hoje, temos umsistema de justiça quantitativamente maior de pessoas brancas, que fazem essas leis e as aplicam. Para que o contexto social do negro seja, de fato, levado em conta, é preciso que pessoas negras façam parte também desse sistema.”

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 10 – Redução das Desigualdades

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