Uma pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) desenvolveu uma proposta pedagógica utilizando como metodologia de ensino a chamada “Resolução de Problemas”, entrelaçando educação financeira através da prática do escambo, orçamento familiar e orçamento público. O objetivo é despertar o interesse de alunos pela aprendizagem da matemática e mostrar que a área do conhecimento permeia o cotidiano. A atividade pedagógica foi aplicada a estudantes do 6º ano do ensino fundamental de uma escola municipal em Santos (SP) e, ao final, houve maior percepção de como a matemática, além de números e operações, está envolvida com o raciocínio indutivo, principalmente para a tomada de decisões, resolução dos problemas e desafios diários.
A autora da pesquisa, a professora Débora Cardoso do Amaral, explica que a “Resolução de Problemas” é uma abordagem sistemática que promove uma postura mais ativa dos alunos em relação ao seu próprio aprendizado. Incentiva a investigação, a reflexão e o debate, levando à síntese e formalização dos conteúdos abordados. O assunto foi tema de uma dissertação de mestrado entregue no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, sob orientação do professor Júlio César Augusto do Valle, especialista em políticas públicas de educação.
Interesse social
Segundo Valle, o trabalho de Débora Amaral é importante por apontar que é possível incluir na prática pedagógica de professores de matemática do ensino fundamental temas de educação financeira conectados a questões mais sérias e relevantes, como o orçamento público municipal de Santos, assunto de interesse social e que pode ser adaptado à realidade de diferentes municípios brasileiros.
A atividade foi desenvolvida em sala de aula, durou 25 encontros ao longo do ano de 2023 e envolveu alunos de quatro classes do sexto ano da Escola Municipal Ayrton Senna da Silva, Campo Grande, Santos, SP. Sempre com a mediação da professora e em pequenos grupos de quatro a seis estudantes, foram apresentados aos alunos um dos temas elencados pela pesquisa (escambo, orçamento familiar e orçamento público), com um respectivo problema que precisava ser debatido e resolvido por eles, levando em conta suas próprias vivências, discussão com os colegas do grupo e a proposição de alternativas para a resolução do problema.
Em seguida, todos se reuniam em grupos maiores (alunos das quatro classes dos sextos anos) em plenárias, onde se encontrava um consenso sobre as diferentes resoluções levantadas e também quando a professora Débora apresentava formalmente os conteúdos trabalhados.
Metodologia “Resolução de Problemas”
Escambo – Problema I
A primeira atividade vivenciada pelos alunos foi “escambo”, em que eles foram convidados a refletir sobre uma sociedade primitiva (seus hábitos e como faziam para se alimentar e se vestir) em que eles viviam com sua família. Na comunidade, cada família tinha uma habilidade específica: uma era artesã e confeccionava vestimentas; uma outra vivia da agricultura e cultivava grãos, verduras e frutas; outra, da atividade pastoril, caçava e domesticava animais; outra vivia da pesca; e outra dominava a fundição do cobre para confecção de ferramentas. O desafio dessa atividade era saber o que os alunos propunham para se proteger do frio e da fome.
Segundo a professora Débora, na discussão dessa primeira atividade houve mais encontros que o previsto, pois os alunos tiveram dificuldades em encontrar soluções claras para a sobrevivência das famílias nessa sociedade primitiva. Débora atribuiu essa dificuldade ao modelo tradicional de ensino, que limita a autonomia, a criatividade e o pensamento crítico dos alunos. “Os alunos estão habituados a exercícios matemáticos com respostas numéricas, havendo possibilidade de acertar ou errar, como forma de fixação de aprendizagem de conteúdo. Quando eles se veem frente a um problema amplo, em uma situação em que este problema é apresentado sem qualquer aula expositiva de conteúdo prévio, permitindo debate com os colegas para apresentar uma solução em forma de texto ou explicação em que não há números, eles se sentem perdidos. Estão acostumados a seguir procedimentos e modelos, não exploram seus próprios conhecimentos de vida, recebem um exercício e resolvem de acordo com um exemplo fornecido pelo professor.”
Dentre as propostas apresentadas, a “troca de produtos” entre as famílias da comunidade foi relatada pela maioria dos grupos nas quatro turmas. A dificuldade dos alunos estava em como fazer as trocas de maneira justa. Apenas um entre os 26 das quatro turmas idealizou uma comunidade onde as famílias forneciam tudo umas às outras, sem preocupação de quantidade ou frequência; porém, a criação de uma moeda para facilitar a troca/comercialização de produtos, que a pesquisadora e o orientador julgaram que iria acontecer, não ocorreu.
Na sequência, todos se reuniram em plenária para busca de consenso sobre resoluções de problemas encontrados e apresentação formal do conteúdo, quando foram abordadas noções básicas de finanças e economia, o surgimento do dinheiro e sua função social, a relação entre dinheiro e tempo, e o Sistema Financeiro Nacional.
Orçamento familiar – Problema II
Para esse tema, os alunos foram considerados consultores financeiros e o desafio proposto foi administrar o orçamento de uma família com dois adultos (os provedores da família) e três crianças durante o mês de agosto, além de simular o planejamento para os meses subsequentes (setembro, outubro, novembro e dezembro). Em um kit distribuído aos alunos, havia os holerites dos dois adultos pagos em agosto, uma conta mensal de serviços de água e esgoto e uma conta mensal de energia elétrica, com vencimentos em agosto. Eles deveriam organizar e registrar as informações financeiras em papel, identificar o valor que restaria todo mês no orçamento da família e definir quanto dessa sobra poderia ser investido em lazer e/ou poupança e, ainda, prever outros gastos comuns às famílias de acordo com a experiência deles.
Ao longo do exercício, foram introduzidas algumas despesas extras (o que a pesquisadora chamou de cartas bombas) que não estavam planejadas no orçamento inicial, como a compra de medicação para uma das crianças que ficou doente, a prestação da aquisição de um celular para o filho mais velho e despesas extras de supermercado no cartão de crédito.
Nesta atividade, Débora conta que a maioria dos alunos demonstrou ter sido a primeira vez que eles tinham tido contato com a organização de um orçamento familiar. Como propostas de soluções, alguns consideraram o pagamento do cartão de crédito à vista e incluíram as despesas com a compra de medicamentos em um dos meses cujo orçamento tinha finalizado com saldo positivo.
Débora conta que observou debates entre os estudantes em que uns diziam que o valor a poupar deveria ser bem maior porque era importante guardar dinheiro, enquanto outros argumentavam que passeios e lazer geravam felicidade e era nisso que eles deveriam investir.
Alguns alunos também ficaram indignados com a limitação da receita da família e propuseram que um dos filhos adolescentes trabalhasse como jovem aprendiz para aumentar a renda familiar, além de sugerirem uma redução no consumo de luz, água e esgoto. Com o aumento da renda e economia do consumo das contas ordinárias, eles poderiam pensar na compra de um aparelho de celular, no pagamento de planos de internet e até em um futuro financiamento de uma viagem em família.
Segundo o estudo, nessa atividade, os alunos usaram operações matemáticas de somas e subtrações para entradas e saídas de dinheiro de um mês para outro e tiveram contato com cálculos de porcentagem dos descontos nos holerites dos provedores da família, na faixa de 12% de INSS e de 7,5% de Imposto de Renda, assuntos que eles desconheciam, além de relatarem nunca terem visto um holerite.
Na plenária final, se buscou o consenso das propostas para a resolução de problemas e apresentação formal do tema – o que são rendas e despesas fixas e variáveis, a necessidade de registro e agrupamento das despesas e o uso de planilhas para melhor organização e gestão orçamentária para facilitar a identificação do orçamento deficitário, neutro ou superavitário.
Orçamento público – Problema III
Na terceira atividade, os estudantes foram convidados a pensar sobre finanças e orçamento da cidade onde moravam, Santos, São Paulo. Antes do início das discussões, Débora conversou com os alunos sobre as incumbências das Secretarias Municipais de Serviços Públicos de Santos, de impostos federais, estaduais e municipais e gastos com alguns serviços públicos como o Sistema Único de Saúde (SUS), Polícia Militar, Guarda Municipal, Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e as escolas.
Em seguida, foi apresentado aos estudantes um gráfico de setores em caráter exemplificativo, em que a verba arrecadada pela prefeitura era distribuída por setores porcentualmente igual a todas as secretarias municipais (Desenvolvimento Social, Educação, Esporte, Cultura, Saúde e Segurança), mais um porcentual igual para alocar demais secretarias não especificadas.
O desafio dos alunos era organizar o orçamento público da cidade construindo outro gráfico em que eles deveriam redistribuir a verba pública do município de acordo com suas percepções sobre os gastos e a importância de cada secretaria.
Débora relata que, nessa terceira atividade, os alunos mostraram ter mais desenvoltura e facilidade em apresentar solução para problemas propostos, condição que ela atribui ao fato de que eles tenham se acostumado ao formato da Resolução de Problemas, avalia.
De consenso, todas as turmas entenderam que as secretarias de Saúde e de Educação eram as mais onerosas da prefeitura, o que eles julgavam que fosse justo devido aos gastos que eles acreditavam que essas secretarias pudessem ter. Um dos grupos destinou 30% da verba para a Secretaria da Saúde; 20% para a Educação; 25% para Segurança; 12% para Serviços Públicos; 5% para Esporte e demais secretarias; 2,5% para o Desenvolvimento social e 1,5% para Cultura.
Gráfico de distribuição de orçamento público
Alguns entregaram os gráficos divididos porcentualmente, mas se esqueceram de escrever quais secretarias eles escolheram para os porcentuais indicados no gráfico. Um grupo optou por uma divisão uniforme entre as secretarias simplesmente por ser mais simples e rápido para executar a tarefa ou por entender que era justo que a verba fosse dividida por igual, se esquecendo das demandas e atribuições das diferentes secretarias.
Na plenária final, foram apresentadas as porcentagens reais da previsão orçamentária da Prefeitura de Santos (2023) referente às secretarias trabalhadas na atividade, com uma tabela comparativa com as porcentagens apresentadas pelos grupos. O debate foi em torno das diferenças entre os números previstos pelo orçamento e os que foram apresentados pelos alunos, de forma que eles puderam também compreender que os gastos com serviços públicos recaem não só ao município, mas ao governo do Estado, como as despesas da polícia militar, e outros ao governo federal, como o custeio do SUS. Na formalização do conteúdo, foi apresentado aos alunos o site da Prefeitura de Santos, onde eles poderiam acessar a previsão orçamentária e os valores em moeda Real presentes na previsão de 2023.
Segundo a pesquisadora, após as atividades, os alunos não só se mostraram mais entusiasmados em aprender sobre educação financeira, como perceberam que a matemática cotidiana vai além dos números e operações do dia a dia.
Ao final da entrevista, foi perguntado à pesquisadora se houve maior interesse dos alunos pelo ensino da matemática após o desenvolvimento da atividade na escola onde ela mesma trabalha. Débora disse que não conseguiu mensurar quantitativamente esse dado. Porém, em conversa com professores de outras áreas, eles relataram que os alunos estavam mais ativos, mais interessados em sala de aula e com mais senso crítico. “Fato curioso foi que alguns deles, ao terem consciência que poderiam participar e ter acesso às informações de órgãos públicos, entraram no Portal da Transparência para saber a remuneração dos professores”.
Com informações do Jornal da USP
*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta matéria, o ODS 04 – Educação de Qualidade.
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