Por muito tempo, eu tive. E pelo que me lembro, esse temor começou no segundo ano do Ensino Médio, no auge dos meus quinze anos de idade. Eu que até ali não me assustava com tarefa de escrever um texto, passei a me assombrar diante da ideia de sentar e ordenar os meus argumentos, até porque agora seria era preciso escrever de um jeito que no final, após uma temida banca ler o que quer que saltasse da minha mente, teria uma nota que talvez seria o meu passaporte rumo à sonhada Universidade, ou o contrário.

Não me entenda mal, eu sei que a aprovação no SISU (Sistema Único de Seleção Unificada) não depende inteiramente da nota da Redação, existem mais 180 questões a sua espera. Mas, desde ali, prestes a chegar no último ano do Ensino Médio, eu sabia que redação era onde eu deveria “me garantir”.

O problema é que o que antes era segurança, à medida que eu percebia tudo ligado a um “modelo ideal” de texto, a confiança foi findando, até virar um pensamento insistente que me dizia: você sabe mesmo escrever? Assim, o espaço para o medo já estava consolidado. E se eu não era boa em contas, agora mesmo que eu tinha um grande problema. E desse problema, a Fórmula de Bhaskara ou uma regra de três não poderiam me salvar.

Tempo passou, e eu fui pegando o jeito. No segundo ano, decidi fazer o Enem “para teste”, prática comum e realizada por praticamente todos os meus colegas de turma. Ultrapassei os 900. O tema era “A persistência da violência contra a mulher”.

No ano seguinte, me peguei preocupada. Eu tive excelentes professores de Redação, porém, confesso que ao olhar para trás, vejo que perdi tempo com coisas que no final, de nada tinham a ver com demonstrar um “senso crítico” diante das problemáticas do mundo. Não é isso que, resumidamente, a banca busca analisar?

Lembro que passei a achar um horror escrever “Atualmente” e, no lugar, aprendi a apresentar um pomposo “hodiernamente”. Para que começar um parágrafo de conclusão com “Do mesmo modo”, se posso escrever “Outrossim”? Falar difícil, ou melhor, escrever difícil, parecia ser sinônimo da capacidade de “pensar difícil”, o que eu julgava ser um bom sinal no final das contas. Não dá para resolver problemas complexos escrevendo com as palavras “normais”, certo…? Acho que, errado.

É claro, mandar para os ares a norma culta da Língua Portuguesa não é a melhor via. Não é isso que estou querendo dizer. O problema é quando passamos mais tempo decorando listas de advérbios que nunca beiraram uma só conversa ou leitura em um dia normal, do que realmente pensando nos problemas e desafios que nos cercam. E como, não importa o quão distante pareça ser determinada realidade — se é um problema para o mundo, passa a ser meu também.

“Será que vou usar a frase ‘O homem é o lobo do homem?’ Ou seria melhor usar Foucaut”, lembro de pensar, com mãos e pés tremendo, no pátio da escola, assim que passei pelo portão do lugar que praticamente ditaria o meu futuro ou ao menos, era o que pensava na época.

No meu “dia D”, ou seja, quando fiz a prova de redação para valer, já no último ano do Ensino Médio, com 16 anos, e uma carga de pelo menos 4 redações semanais depois de um ano todo, abri a folha e vi: “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”.

Lembro de sorrir quando lembrei que havia poucos dias, esse foi o tema da aula de Redação e, naturalmente, pensei sim no que eu achava que a banca esperava de mim, mas me lembro de fazer o exercício: para começar, por que eu acho que isso é um problema? Por que é importante pensar em caminhos?

Rabisquei umas ideias na folha e pedi para tomar água, e eu nem tinha planejado tomar água no começo da redação. Não parecia inteligente. Ali, cada minuto era cronometrado. Mas foi aqueles passos que deram um ar à minha mente acelerada e me vi mais calma e no fim, nem Foucaut, nem Hobbes apareceram na minha redação, pois usar Nelson Mandela acabou fazendo mais sentido.

Não foi só Mandela, mas no fim, tudo o que fiz no Enem me levou ao Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e ter sido levada ao jornalismo me fez ser essa pessoa que olha e guarda os dados com carinho e curiosidade. E um dado que chamou a atenção nessa semana, mostra que entre as 3,18 milhões de pessoas que fizeram o Enem em 2024, somente 12 alcançaram a nota máxima: 1000.

Não consigo evitar e começo a pensar nos primeiros dias de aula das turmas preparatórias para a próxima edição do exame. Por certo, essas 12 provas vão ser esmiuçadas, analisadas e quase dissecadas por alunos, e professores, que buscam entender a forma quase perfeita de pensar e apresentar argumentos. Estou longe de ser a pessoa certa e mais gabaritada para dizer se isso é ou não o modelo ideal de Educação, mas posso dizer que é no mínimo preocupante.

E saber, por exemplo, que apenas 1 dessas 12 notas 1000 veio do ensino público, também me faz questionar se estamos apenas formando gente boa em fazer bons retalhos de argumentos, ótimos em decorar palavras como hodiernamente, e excelentes em repetir propostas de intervenção alterando os sujeitos da frase.

Ano passado, pela primeira vez o número de não leitores (53%) passou o de leitores (47%) no Brasil, segundo a pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”. Por outro lado, há pesquisas que indicam que passamos cerca de 9 horas por dia com telas de smartphones.

É seguro dizer que esse não é o único elemento para não nos sentimos tão motivados a pensar criticamente sobre o que nos cerca, mas certamente eu poderia arriscar concluir que enquanto só nos vermos engajados no que pode ser apresentado em 1 minuto de vídeo ou quem sabe, 1 parágrafo de texto, passa a ser difícil até reconhecer que um problema é mesmo um problema. Quem dirá, pensar sobre ele.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 04 – Educação de Qualidade

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