A cafeicultura brasileira, um dos pilares do agronegócio nacional, também carrega uma face sombria: é um dos setores econômicos com maior número de trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão. Dados da ONG Conectas indicam que, na última década, 80 cafeicultores entraram na chamada “lista suja” do trabalho escravo. Essa realidade foi o ponto de partida para a pesquisa de Poliana Dallabrida Wisentainer, aluna de pós-graduação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, que dedicou sua dissertação de mestrado ao tema.
Segundo Poliana, o conceito de condições análogas à escravidão no Brasil é abrangente e inclui elementos como trabalho forçado, servidão por dívida, jornadas exaustivas e condições degradantes, conforme previsto no artigo 149 do Código Penal. No caso da cafeicultura, predominam as jornadas exaustivas e as condições degradantes. “Trabalhadores migrantes vão para as regiões produtoras de café e ficam alojados para fazer essa colheita. Eles são chamados de safristas por isso, porque eles trabalham por safra, e nesse momento é que as condições degradantes são identificadas: um alojamento que não tem água potável, energia elétrica, a comida é de má qualidade. São características como essas que os fiscais do Ministério do Trabalho costumam identificar na colheita de café e aí realizam o resgate”, explica.
A pesquisa da Conectas também destacou estratégias utilizadas por empresas para se distanciar da responsabilidade por violações na base da cadeia produtiva. Poliana observa que, apesar das fragilidades no combate à escravidão moderna, o Brasil possui um dos marcos legais mais avançados do mundo, indo além do conceito de trabalho forçado adotado por muitos países. “O Brasil tem um conceito bastante avançado, eu diria que estamos na vanguarda do combate ao trabalho escravo no mundo. Na maioria dos países, o conceito usado não inclui a violação da dignidade do trabalhador no crime.”
Pesquisa
Um ponto relevante abordado na pesquisa da pós-graduanda foi a diversidade do perfil dos empregadores flagrados entre abril de 2018 e abril de 2024. Entre os 80 cafeicultores analisados, mais da metade não tinha como única fonte de renda a fazenda onde ocorreu o flagrante de trabalho escravo, com mais de uma propriedade, enquanto dez produtores também eram sócios de empresas da cadeia produtiva do café, além de produtores com certificados por boas práticas socioambientais ou que faziam parte de cooperativas — incluindo dois casos de presidentes de cooperativas de produtores de café no momento do flagrante. “Ou seja, é um grupo bastante diverso e não são produtores isolados da cadeia produtiva. Eles estão inseridos, têm conhecimento e têm acesso, se quiserem, a informações sobre a lei trabalhista e como fazer corretamente a contratação durante a colheita e manter esses trabalhadores de forma digna durante a safra de café”, afirma.
Instrumentos como a “lista suja” continuam sendo fundamentais no combate ao trabalho escravo. Esse cadastro, gerido pelo Ministério do Trabalho, impede empregadores flagrados de acessar crédito rural e estimula a exclusão dessas empresas de relações comerciais por parte de bancos e grandes corporações. “É um instrumento superimportante que tem impactos econômicos no bolso do empregador que comete esse crime”, pontua Poliana.
Ainda assim, a pesquisadora destaca três lacunas que devem ser enfrentadas com o Estado. “Primeiro, a defasagem de auditores fiscais. Diminuiu muito o número de auditores fiscais em relação a dez anos, e são os responsáveis por fazer a verificação de denúncias. Também existe um problema de como a terceirização foi feita. Muitos cafeicultores contratam uma empresa ou um intermediador de mão de obra para terceirizar para ele o serviço de contratação de pessoal. E, às vezes, o produtor não se dispõe a fiscalizar e acompanhar o serviço desse terceirizado, e aí acontecem bastantes problemas. O terceiro que eu destacaria é o descompasso da justiça, porque trabalho escravo no Brasil é um crime, tipificado no Código Penal, só que o número de condenações para o trabalho escravo é ínfimo. A justiça precisa olhar de uma forma diferente para esse tipo de problema”, conclui.
*Com informações do Jornal da USP
*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 10 – Redução das Desigualdades
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