(Foto: internet/divulgação)

Olha, nada combina mais com cinema do que música e quadrinhos. As três coisas têm um tórrido relacionamento entre si. Já imaginou cinema sem música? Pois com quadrinhos é a mesma coisa, só que de forma menos ostensiva. Deixa que eu explico.

Durante a fase de pré-produção de um filme, os realizadores planejam absolutamente todo o necessário para rodar a obra. Escrita do roteiro, contratação do elenco, definição de cenários, locações, orçamento, tempo de filmagem, enfim. A parte de ligar a câmera e gritar “ação” é só a ponta de um longo processo, que ainda vai durar mais algum tempo depois, na fase de pós-produção (que engloba, dentre outras coisas, editar as imagens, montá-las na linha cronológica do filme, mixar o som, colocar os efeitos especiais, etc.).

Por mais que a sensação de quando assistimos a um filme é a de que ele está acontecendo ali, na frente dos nossos olhos, é necessária racionalidade antes disso tudo, para pensar em cada ângulo de câmera, cada elemento que compõe o que a gente vai ver ali na janela da tela, criando a ilusão perfeita. E é aí que entra o storyboard.

Storyboard é um esquema gráfico que a equipe – encabeçada pelo diretor, e o diretor de fotografia – criam para se guiar quando vão filmar. É o roteiro esboçado em figuras, com exatamente o que o diretor quer que apareça na tela. Quadradinhos com desenhos. Quadrinhos.

Ou seja, grosso modo, praticamente todo filme tem por base uma história em quadrinhos, porque foi pensado graficamente antes no papel.

Quando você pega para ler a HQ (História em Quadrinhos) “Tungstênio”, do carioca Marcello Quintanilha, tem a nítida impressão de que está vendo um filme. É genial a forma como ele cria os diálogos, representa a ação, coloca no papel os conflitos internos dos personagens. A história se desenrola de uma forma extremamente dinâmica, e a gente termina de ler exausto, sem saber se foi a história ou o tempo seco de agosto que deixou a garganta da gente seca. Não há quem não solte a exclamação: isso tinha que virar filme!

E virou. Quintanilha fechou o acordo, e o diretor recifense Heitor Dhalia (famoso por “Serra Pelada” de 2009 e “O Cheiro do Ralo” de 2003) assumiu a empreitada de construir aquele storyboard praticamente pronto. Projeto incomum, aliás, já que pouco se tem notícia de filmes brasileiros adaptados de quadrinhos (talvez “O Judoca”, de 1973, ou mais recentemente “O doutrinador”, adaptado da HQ de Luciano Cunha e prestes a estrear).

Essa semana, o filme “Tungstênio” (2018) foi liberado na maioria das  plataformas de streaming, depois de um circuito de cinema apagado e pouco valorizado. Infelizmente, a falta de público continua a ser uma das mazelas do cinema nacional. Mas não perca mais tempo: corra para assistir.

A adaptação é genial. Absolutamente fiel à obra original, desde ângulos de câmera, figurinos, locações, diálogos e um José Dumont vivendo de forma fantástica o personagem Seu Ney. Tá tudo lá!

O meandro de situações criadas por Quintanilha é tão rico e intrincado que é difícil resumir. Mas vamos tentar: Depois de presenciar pescadores utilizando técnicas ilegais para pescar, o ex-sargento Ney decide intervir. Esse é o estopim de tudo. Porque o Seu Ney não vai se conformar com as tentativas frustradas que faz para resolver a questão, e isso resvala em outras figuras da Cidade Baixa, em Salvador, como o jovem traficante Caju (Wesley Guimarães), o policial civil Richard (Fabrício Boliveira) e sua esposa Keira (Samira Carvalho).

É um verdadeiro retrato do Brasil – e, ainda mais, da Bahia. Com seus micro universos, as relações de poder, a ambiguidade de personalidades. Não há heróis, não há vilões, há apenas o corriqueiro da vida que insiste em transcorrer mesmo após uma surra pesada. Dhalia chegou a compará-lo com as obras do Cinema Novo, lá das décadas de 60 e 70 – o que não seria injustiça para nenhuma das partes.

E nesse panorama, o mais importante da estória está na motivação dos personagens. A forma de pensar, única do brasileiro. Assim como vemos ação na tela mas sentimos uma tensão de explosão iminente muito maior, também é possível notar as condutas dos personagens, mas sentir que o que os move é muito maior, muito mais profundo e complicado. Richard não atira só porque foi treinado para isso. Seu Ney não perde a paciência só porque a situação o irritou. Keira não perdoa só porque ama. Há muito, mas muito mais. E a voz de Milhem Cortaz, como narrador, é que vai guiando a gente por esses outros meandros psicológicos que o filme mostra sem revelar.

Enfim, assistir o filme é querer instantaneamente reler a HQ. Da mesma forma que, ao fechar a última página dos quadrinhos, o pensamento é: “Caramba! Queria assistir isso aqui num filme!”. Agora pode!