“Viagem à Lua”, de Georges Méilès.

(Foto: internet)


Participando de uma palestra na UEG com o Lisandro Nogueira, essa semana, ele tocou num tema importantíssimo nos dias de hoje. Obtemperando sobre quão grande o vulto de plataformas como a Netflix tomaram em nossas vidas, também alertou sobre o perigo disso. Afinal, se por um lado o acesso a filmes e séries se tornou substancialmente mais fácil depois dessas plataformas, por outro ficamos condicionados a assistir apenas o que eles escolhem incluir em seus catálogos. Quem nunca ouviu a pergunta “Tem na Netflix?” numa mesa de bar qualquer? Um processo flagrante de “domesticação do olhar”.

Veja bem, não é que tenhamos que amaldiçoar os avanços tecnológicos que nos propiciam acesso a grandes obras. Não vamos jogar pedras na Netflix, por favor (sim, há quem faça isso!). Criar um movimento social para abolir as plataformas de streaming é tão inútil quanto organizar uma passeata contra a guitarra elétrica – e a história será implacável com essas pessoas. Vai lá, assista o seu filme-pipoca sentado no seu sofá, sem peso na consciência.

Mas tenha em mente que existe vida fora da tela da sua TV. Faça um esforço um pouco maior para encontrar aquele filme festejado que te indicaram. Não se acomode no que o cardápio da TV tem a te oferecer – aliás, já percebeu o quão difícil é escolher algo para assistir no streaming? Isso já é um sinal de que você não tá acomodado. É sua exigência se sobrepondo, insistindo pra você não se render a uma comédia repetida do Adam Sandler.

Assim, chegamos à preocupação do Lisandro: a Netflix tem tornado nossos olhares mais acomodados. Menos selvagens, curiosos, criativos. Estão sendo domesticados com base em escolhas que alguém faz por nós. Consumimos o que estão querendo que a gente consuma, o que botam lá na sessão de “lançamentos”. E como numa areia movediça, quanto mais nos acostumamos a essa realidade mastigada, menos achamos disposição para contrariá-la.

O fato é que assistir a um filme pode se tornar algo muito mais profundo do que parece. Já parou para pensar como é que brasileiros e chineses podem rir da mesma forma de um filme do Jackie Chan, por exemplo? Vai lá, tenta contar uma piada para um chinês e sinta na pele a diferença cultural. Mas o Jackie Chan consegue!! Ou como é que um “Casablanca” pode trazer sentimentos nostálgicos a alemães e americanos? O que é que Glauber Rocha enxergou em Godard, que lhe inspirou a produzir sua obra?

Um filme é uma sequência de códigos – intencionais ou não. O criador do filme certamente pensou em cada ângulo, cada fala, cada ponto de iluminação, porque afinal de contas teve que criar tudo do zero. O universo dos filmes (tecnicamente chamada de “diegese”) não existe sozinho. Então alguém pensou naquilo tudo ali na tela, a posição de cada figurante, os ruídos, cortes, tempo de cada plano, com vistas a provocar no espectador um conjunto de sensações e sentimentos. E diante da grande verdade de que É TUDO INTENCIONAL, vem a pergunta fundamental para que nossos olhos não se acomodem: Qual a intenção por trás disso? O que esse código quer dizer?

Se você sai da posição de espectador passivo para curtir um filme e se coloca como um decifrador de sinais, assume automaticamente a noção de que um filme é mais do que um mero espetáculo – porque não existe só para ser observado. Um filme é uma obra de arte e precisa do espectador para ganhar o seu sentido, sua razão de ser. E para apreciar uma obra de arte, é necessário sempre observá-la com outros olhos. Com quantos olhos forem necessários. É preciso um olhar curioso, sem regras, sem tabus. Existem mil mensagens diferentes ali esperando para serem encontradas.

É preciso fugir da domesticação do olhar. Ser curioso, buscar nuances diferentes em cada filme assistido. Só assim, a experiência do cinema pode ser apreciada de maneira mais profunda. Mas isso exige treino e vontade. Ganha o filme, e ganha você, espectador.