Michael Jackson e Wade Robson: ídolo e fã. (foto: internet/divulgação)

Um dos filmes mais polêmicos desse ano foi uma das mais recentes produções do canal HBO, “Leaving Neverland”. O filme dirigido por Dan Reed, dividido em duas partes de duas horas cada, traz o relato de Wade Robson e Jimmy Safechuck, que quando crianças estiveram envolvidos nas acusações de abuso sexual contra o astro Michael Jackson.

E aí está a grande questão do filme: Michael Jackson. O maior astro pop de todos os tempos. O cara que revolucionou a indústria da música, do cinema, da publicidade, e elevou o conceito de “fã” a níveis estratosféricos. Dizem que foi o único cara que conseguiu superar os Beatles – John Lennon teria demonstrado especial preocupação quando a fama do quarteto de Liverpool se viu ameaçada pelo pequeno garotinho negro da Motown.

Enfim, Michael esteve na infância de praticamente todo mundo, e é objeto de verdadeira veneração por seus fãs. O que torna a tarefa de assistir, julgar e acreditar nos relatos que vemos na tela extremamente doloroso.

Veja bem, o filme é extremamente pobre. Esteticamente limitado, adota a fórmula repetitiva de intercalar depoimentos das vítimas, seus correlatos (mães, irmãos, cônjuges) imagens de arquivo e do rancho Neverland e outros imóveis de Michael, repetidos à exaustão. Absolutamente mais nada.

Essa pobreza estética revela também a pobreza em conteúdo. Porque a missão do filme é dar voz a Robson e Safechuck, mostrar a versão deles dos fatos, contar o que supostamente passaram entre quatro paredes com um dos maiores artistas da História. Mas não há absolutamente mais nada além dos relatos deles, o que aproxima muito a produção de uma entrevista bem produzida. Não um documentário.

Não é que estou dando pouco valor à palavra das vítimas. Não é isso. Vamos chegar lá. Por enquanto, é cabível uma análise da obra apenas, porque a partir daí é possível valorar um pouco melhor o que os rapazes estão dizendo – ou sob qual intenção. E como obra autônoma, o filme fica no limbo e não se define bem. Apesar da tonelada de artifícios usados para dar peso à narrativa dos protagonistas, se tirarmos a maquiagem, temos nas mãos apenas as palavras deles.

 

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Wade Robson e James Safechuck: relatos dolorosos. 

Os documentários de Eduardo Coutinho também tinham muito de entrevistas. Edifício Master, por exemplo, se passa inteiramente dentro das unidades residenciais, com a câmera escrutinando a vida daqueles moradores. Mas a intenção de Coutinho era o ser humano. Ele era apaixonado nas motivações, contradições, comportamentos, medos, paixões e tudo o mais que tivesse a ver com a pessoa colocada no mundo ou em determinado contexto. Pouco importa se o que dizem aquelas pessoas é verdade – se é real ou realidade. E é simplesmente delicioso observar e aprender com aqueles personagens.

Dan Reed, por sua vez, não está preocupado com Wade e James. Ele quer montar uma narrativa, reconstruir um fato. Em determinados momentos, mais do que isso, parece querer ostensivamente queimar Michael Jackson em praça pública.

Semana passada, Mike Smallcombe, um dos inúmeros biógrafos de Michael, revelou que as datas contadas no filme não batem com a realidade. James, por exemplo, teria dito que foi abusado na estação de trem de Neverland, em 1992. O lugar só teria sido construído no ano seguinte, e inaugurado em 1994 – dois anos após a data em que, supostamente, os abusos contra James já teriam cessado. Tais datas foram confirmadas pelo diretor do longa, escancarando a dissonância entre filme e realidade.

Também o depoimento de Wade Robson deixa dúvidas, já que no filme ele conta que o primeiro abuso teria ocorrido quando a família fez uma viagem ao Grand Canyon em 1993, quando foi deixado sozinho com Michael em Neverland. Em inúmeros depoimentos anteriores recuperados pelo biógrafo, entretanto, a família e o garoto dizem que viajaram juntos ao Gran Canyon. Detalhes conflitantes arranham a credibilidade do filme.

De todo modo, o filme deixa um gosto amargo. Porque ainda que fraco e pobre, traz relatos que soam bastante honestos, emocionais, profundos. Principalmente porque não soam como tentativa de arrancar dinheiro.

James e Wade surgem como (ainda?) apaixonados por Michael, como qualquer fã. São hoje adultos, com mais de 30 anos de idade, e sentem agora – muito mais do que quando crianças – os efeitos dos abusos sofridos. Viram suas vidas serem maravilhosamente invadidas por um semideus, e tiveram que lidar com os cacos que sobraram quando ele se foi. Ainda que admitamos a inexistência de abuso, a simples passagem apaixonada de Michael por suas vidas deixou marcas indeléveis, irrefutáveis, destruidoras. E quando crianças, eles foram incapazes de enxergar isso sozinhos. Pelo suposto assédio de Michael, mas ainda mais pelo assédio sofrido ainda hoje pela mídia e grandes empresas de entretenimento é que se pode cravar: Wade Robson e James Safechuck efetivamente mergulharam no mundo de MJ e perderam suas inocências nesse processo.

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Pôster de “Leaving Neverland”, de Dan Reed.

Fato é que o filme cumpre mal sua função, já que fragilmente alicerçado, e por isso não deve ser encarado pelo espectador como prova, como tribunal. Está mais para um convite à reflexão. “Leaving Neverland” deve ser assistido com muita parcimônia, sabendo-se que essas entrevistas de 4 horas podem não macular o legado de Michael Jackson, mas certamente trazem uma série de questionamentos fundamentais. Como, por exemplo, com quem você está deixando seu filho andar.