Após quatro anos sem um encontro presencial, a 9ª edição da Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia (React) na Universidade Federal de Goiás (UFG), realizada de 21 a 24 de novembro, contou com a participação de antropólogos, como a pesquisadora Ana Mumbuca, da Universidade de Brasília (UnB), e Yásnaya Elena Aguilar Gil, do Coletivo Mixe (Colmix) no México, que abordaram a crise ambiental.

A conferência de abertura concentrou-se em reflexões críticas sobre os conceitos e práticas de “ciência” e “tecnologia”, com ênfase nas crises ecológicas contemporâneas. Participaram do evento o diretor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG, Luiz Mello, a coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFG, Suzane de Alencar Vieira, e a membra da comissão organizadora do React, Indira Nahomi Viana Caballero (UFG).

Suzane Alencar Vieira, da UFG, destacou a intenção de ampliar a abrangência do evento para além dos eixos Sul-Sudeste do Brasil, visando conexões mais interiorizadas e parcerias com a América Latina. “Ficamos surpresos ao nos deparar com esse evento tão diverso, com representantes de diferentes países da América Latina e diferentes regiões do Brasil, e com uma rica diversidade étnica, racial e de gênero”, afirmou. Segundo ela, a composição tão diversa do evento contribui para o objetivo de “trazer uma nova ótica ecológica para a percepção da crise ecológica global”.

“Acreditamos que esse é o lugar para apontar e criar posicionamentos críticos e reflexivos sobre as catástrofes que são consequências da mudança climática, da mineração, da utilização inadequada dos recursos naturais. Trata-se de um alerta que se faz através da Antropologia, mas também que a ultrapassa”, afirmou.

Outros participantes

Por sua vez, o professor Luiz Mello, durante as boas-vindas, convidou os conferencistas para aproveitarem e experienciarem a UFG, “um lugar querido, público, gratuito e comprometido com a construção social” e, de forma irreverente, apresentou a dinâmica de convivência do Campus Samambaia com os macacos da região. “Cuidado ao transitar pelos espaços com comida”, brincou. “Os encontros presenciais são parte da alma do que fazemos, que é discutir a ciência e contribuir com novas alternativas para a sociedade e para o mundo”, disse.

Ana Mumbuca e Yásnaya Elena Aguilar Gil trouxeram perspectivas críticas sobre o conhecimento acadêmico, questionando os conceitos e práticas científicas e tecnológicas em um contexto global de crescentes desigualdades sociais e agravamento das crises ambientais.

A quilombola Ana Mumbuco, do Jalapão, iniciou sua contribuição com uma música de seu quilombo, explorando a história do carcará e do urubu. Através dessa expressão cultural, ela abordou a invisibilidade das culturas ancestrais no Brasil, destacando seus ricos conhecimentos sobre a coexistência social com a natureza.

“Gostaria que a minha espiritualidade e a de meu povo fosse entendida. Para falar de um tema tão importante, é preciso entender as linguagens faladas nos quilombos, terreiros e aldeias. Precisamos ser professores dos professores. Quando a gente vem para a academia, a gente se esforça muito para entender, mas a gente precisa fazer o caminho reverso. O quilombo está ecoando a voz daqueles que sempre viveram no caos. O desastre ecológico não está ocorrendo agora, começou quando nos retiraram do nosso lugar ancestral. Os quilombos conseguiram ‘confluenciar’ com os povos que aqui estão. O Cerrado também é quilombola, que reverbera a energia da resistência, com suas raízes que bebem as águas dos mananciais. E pergunto: quais são as fontes que estamos recorrendo para beber água? De onde estão saindo nossas raízes?”.

Cantiga de roda

Voltando aos dizeres da cantiga de roda de seu povo, Ana destacou: “Urubu é um pássaro que come carniça e as piores mazelas de nossa sociedade e da dele. Urubu vive tanto. Poderia não ser chamado. Mas o carcará chamou. Esse chamado de estar aqui, quando pego no microfone, sinto uma responsabilidade muito grande, pois a academia precisa se esforçar para nos entender, e não no sentido metafórico. As nossas escritas precisam ser lidas como uma escrita que traz um recado ancestral para uma sociedade em que o caos foi gerado, não por nós. Não é nosso.”

“E não queremos o peso de ter que salvar o mundo, pois nosso mundo não foi destruído e sim invadido, e com a invasão estamos dançando na festa da amiga onça. Nós, povos quilombolas, temos uma linguagem de resistência dos territórios. A Antropologia e outras áreas da ciência precisam compreender, ao entrar em qualquer terra, que é necessário pisar devagarinho, e entender que estamos construindo dia após dia, segredos, e se, com os seus métodos, descobrirem nosso segredo, não revelem se isso for destruir um povo. Cada segredo é muito caro e não podemos dar ao sistema nossas defesas construídas com muitas mãos, decididas a não morrer. Qual a ética nova que podemos construir?”, continuou.

Para exemplificar a convivência do homem com a natureza, Ana fez uma reflexão sobre a convivência da comunidade acadêmica com os macacos no campus da UFG.

“Macaco não pula em galho seco e não pula em galho que não é dele. Nunca falam de quem é o destruidor, o invasor. Quem é o responsável por essa ameaça? O que vamos fazer com a humanidade? Precisamos saber o que fizeram com os macacos. Precisamos entender porque o carcará chamou o urubu. O que fazer com o chamado? Com essa nova ética que podemos construir? Não podemos trazer para o campo da autocobrança, mas pela cobrança de viver no coletivo. Conseguimos construir outra realidade? Precisamos compreender a linguagem das pedras, do carcará, dos macacos para viver além dos títulos. Viva o povo que vive de verdade!”.

Questionamento

A linguista, escritora e pesquisadora mexicana Yásnava Elena Aguilar Gil, ao falar sobre a tecnologia que move a sociedade, recorreu de forma metafórica a uma pintura em tela com três cores mescladas e as relacionou a três sistemas de opressão: o patriarcado, o colonialismo e o capitalismo.

“A cada realidade de nossa existência nos deparamos com essa pintura, que gera sistemas de segregação. E devemos ficar atentos para como o nosso próprio ativismo pode reforçar um deles, em forma de outro. O colonialismo é um projeto profundamente patriarcal e foi a condição necessária para a acumulação do capital. Não dá para ser anticolonial e anticapitalista e à favor do patriarcado, por exemplo. Temos que pensar as nossas estratégias para não reforçar nenhum dos lados”, disse.

De acordo com a estudiosa, a “tecnologia” como a conhecemos funciona “nos três sistemas de opressão” e tem como base a divisão entre a natureza e a humanidade. Trata-se, segundo ela, da perspectiva da “tecnologia como instrumento através do qual o homem instrumentaliza a natureza” e, portanto, da tecnologia funcional aos sistemas de opressão, “como se você não fosse e não fizesse parte da natureza”. Para retratar o quão patriarcal é esse cenário, Yásnava trouxe os dados da porcentagem de aprovação de patentes internacionais que dizem respeito a inovações tecnológicas criadas por mulheres: “são apenas 16,5%, quando o número de solicitações é menor de 40%”.

“O colonialismo e o desenvolvimento tecnológico têm relações muito próximas, assim como o capitalismo e a tecnologia desenvolvimentista. O capitalismo é necessário para o desenvolvimento tecnológico? A natureza se torna um bem de consumo, e justifica-se pelo avanço tecnológico”.

Consequências

Mas as consequências, segundo a pesquisadora indígena, estão postas: “Essas ferramentas estão levando a humanidade a um sintoma, o aquecimento global, que está ameaçando a viabilidade da vida humana. O aquecimento global cresce assim como a desigualdade social, portanto, não se vislumbra a justiça social. A tecnologia não nos deu uma melhor qualidade de vida. Ela está trabalhando para a acumulação de renda. Vamos sentir cada vez mais os efeitos das ações. A emergência é um tsunami. Qualquer tema estará atravessado por esses três grandes sistemas de opressão”.

Para pensar em outras formas possíveis de existência e organização social, Yásnava fez uma introdução sobre o significado do que é ser “indígena”, que, segundo ela, é um conceito muito mais estratégico e que, portanto, deve ser questionado enquanto categoria cultural, uma vez que existem “indígenas” em diversas partes do mundo, com culturas absolutamente diversas. “Certamente não é uma categoria cultural, então é um conceito político e ligado à formação dos estados-nação. É necessário desculturalizar o conceito. Os povos indígenas são nações sem Estado que sofreram algum tipo de colonialismo. Portanto, é uma categoria política, não cultural e parcialmente identitária”.

Nesse sentido, segundo a pesquisadora indígena, apesar de existirem muitas opções de organização da vida em comum, como “república, estado-nação, estrutura tribal, comunalidade, estrutura clânica, entre outras”, existe na atualidade uma “monocultura sócio-política”, que é o estado-nação. “Estado-nação enquanto monocultura global, como um projeto não das mulheres, e sim um projeto patriarcal, vinculado ao colonialismo e à proteção da propriedade privada, e funcional aos três sistemas de opressão. Matam toda outra manifestação ou possibilidade de existir. Tem o controle das fronteiras, o direito espacial, que se projeta no espaço”.

Entre outras opções, segundo Yásnava, há a comunalidade, uma dinâmica anticolonialista formada por indígenas de Oaxaca, no México, e descrita pelos antropólogos Floriberto Díaz e Jaime Marinez Luna. “Trata-se de um sistema que os povos indígenas da Mesoamérica desenvolveram durante o colonialismo para resistir à opressão. Para resistir, foram criadas comunidades mais ou menos autônomas, que funcionam sem partido político e todos devem fazer parte do governo local, de quatro em quatro anos.

Tem como base, entre outras, a tecnologia da reciprocidade, a reciprocidade entre famílias e o trabalho em conjunto”. Para a pesquisadora indígena, outras tradições tecnológicas precisam ser iluminadas. “A natureza e a humanidade não estão separadas. É necessário questionar as definições de progresso e desenvolvimento atuais”.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 13 – Ação Global Contra a Mudança Climática

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