As bacias hidrográficas do Cerrado experimentaram uma diminuição significativa em sua capacidade de abastecer importantes rios brasileiros, incluindo o Madeira, Paraná, Araguaia, Tocantins, Xingu e São Francisco. Este fenômeno é resultado de uma interação complexa de fatores, relacionados à redução no volume de chuvas e ao aumento nas perdas de água no solo devido à evaporação e transpiração das plantas, fenômeno conhecido como evapotranspiração.
Essa conclusão foi apresentada em um artigo publicado no início de novembro por pesquisadores brasileiros na revista científica Regional Environmental Change. O objetivo era calcular a quantidade de água que entra nessas regiões através das chuvas e a quantidade que é perdida devido à evapotranspiração.
Sob a coordenação do engenheiro agrônomo Rodrigo Lilla Manzione, professor da Faculdade de Ciências, Tecnologia e Educação da Unesp, campus de Ourinhos, a equipe de estudiosos analisou dados de satélites coletados ao longo das últimas duas décadas, focando nos padrões de chuvas, perdas de água devido à evapotranspiração e variações na temperatura do solo nas 13 bacias hidrográficas do bioma Cerrado.
Além disso, os autores examinaram dados do Projeto de Mapeamento Anual do Uso e Cobertura da Terra no Brasil (MapBiomas), que monitora as mudanças na cobertura vegetal nativa e no uso da terra no país, e do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes), coordenado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que fornece informações sobre as taxas anuais de desmatamento no bioma.
Redução nas precipitações
As análises revelaram uma redução nas precipitações em todas as regiões do Cerrado ao longo das últimas duas décadas. Esta queda foi significativa, sendo que o acumulado médio de chuva em 2001 foi de aproximadamente 1.400 milímetros (mm), enquanto em 2019 esse índice havia diminuído para cerca de 1.000 mm.
Por sua vez, o índice médio de evapotranspiração, que até 2001 era de pouco mais de 600 mm por ano, subiu para quase 1.000 mm em 2019. “Ou seja, cada vez mais está saindo mais água e entrando menos no Cerrado”, destaca Manzione, um dos autores do artigo publicado na Regional Environmental Change, em entrevista a Rodrigo de Oliveira Andrade, do Jornal da Unesp.
O problema começou a aparecer no bioma entre os anos de 2005 e 2008, e só tem se intensificado. “Em algumas regiões, a diferença entre a quantidade de água que entra com as chuvas e a que sai por meio da evapotranspiração já é negativa”, afirma o pesquisador, referindo-se às bacias situadas na porção centro-norte do Cerrado, próxima à fronteira com o semiárido.
Em paralelo, o bioma já enfrenta os impactos das mudanças climáticas. Hoje, a temperatura média do Cerrado durante os meses de estiagem está entre 2,2 oC e 4 oC mais quente do que nos anos 1960 — o que facilita a ocorrência de incêndios devastadores.
Segundo maior bioma
Segundo maior bioma brasileiro, com uma área de 2 milhões de km2 que abrange quase 24% do território nacional, o Cerrado funciona como um grande coletor de água. A predominância de paisagens abertas, que ocupam quase 40% de seu território, permite que as águas das chuvas sejam absorvidas pelo solo com mais facilidade, abastecendo o lençol freático, as bacias hidrográficas e os rios. Essas águas depois se espalham por diversas regiões do país.
Estima-se, por exemplo, que o Cerrado forneça cerca de 70% da água do rio São Francisco, que percorre o sudeste e o nordeste e 47% da do rio Paraná, que percorre o estado de mesmo nome e abastece a usina hidrelétrica de Itaipu. Também é possível que o avanço das pastagens e das lavouras em detrimento da vegetação original tenha alguma influência na redução das chuvas.
Parte dessa água que vem com as chuvas é devolvida para a atmosfera por meio da evapotranspiração, ajudando a produzir mais pluviosidade na região. Essa interação gera um ciclo perene muito eficiente de reaproveitamento da água. “Nossos resultados, nesse sentido, são preocupantes, pois indicam que esse ciclo está desequilibrado”, afirma o engenheiro ambiental César de Oliveira Ferreira Silva, primeiro autor do artigo.
A diminuição de chuva pode estar relacionada a eventos climáticos. Estudo recente, publicado em julho por pesquisadores brasileiros na revista científica Scientific Reports encontrou evidências de que a expansão e a intensificação do Anticiclone Subtropical do Atlântico Sul sobre áreas do Cerrado parecem ser um mecanismo relevante que tem levado à diminuição das precipitações — esse anticiclone desloca o ar do alto para altitudes mais baixas e torna a atmosfera mais quente e seca, dificultando a formação de nuvens e da chuva.
Nos últimos 36 anos, o Cerrado perdeu quase 20% do que restava de sua vegetação original. De 1985 a 2020, cerca de 26,5 milhões de hectares contendo os três principais tipos de formação nativa — campos, savanas e florestas — deram lugar a novas áreas de criação de gado e produção em larga escala de algumas das principais commodities agrícolas brasileiras, segundo dados de 2021 do MapBiomas. A área de campos, savanas e florestas perdida nesse período equivale quase ao território do Equador e é maior do que a de outros 120 países.
Área de lavoura cresceu mais de 120% em 20 anos
No estudo publicado na Regional Environmental Change, Manzione e seus colaboradores, entre eles o economista Marcellus Caldas, da Universidade Estadual do Kansas, nos Estados Unidos, verificaram que a área convertida em lavoura no Cerrado saiu de 10,27 milhões de hectares em 2000 para 22,7 milhões de hectares em 2019, um crescimento de mais de 120%.
“A cultura de soja foi a que mais cresceu, saltando de 5,7 milhões para 16,8 milhões de hectares, mas outras, como a de cana-de-açúcar e café, também expandiram”, destaca Silva, que se formou em engenharia ambiental no campus de Sorocaba da Unesp e atualmente desenvolve seu doutorado em engenharia agrícola na Faculdade de Engenharia Agrícola da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A transformação da vegetação nativa em amplos pastos e grandes áreas de monocultura tende a contribuir para o aumento dos índices de evapotranspiração. Manzione explica que as plantas dessas culturas são de crescimento rápido, de modo que seu metabolismo é mais acelerado do que o das florestas nativas. “Isso significa que elas consomem mais água armazenada no subsolo, impactando a quantidade de água que chega aos rios por meio do escoamento superficial ou infiltração”, explica o pesquisador.
Recuperar pastagens é possibilidade para mitigar problema
A combinação desse fenômeno com a diminuição das precipitações tende a criar um ciclo vicioso: com menos chuvas, os agricultores precisam aumentar a irrigação de suas lavouras, usando para isso justamente a água subterrânea e dos rios.
“No caso das bacias no Cerrado, a combinação de mudanças no uso da terra, na cobertura vegetal e na demanda por água levou a uma redução global na segurança hídrica na região”, escrevem os autores no artigo. O conceito de segurança hídrica diz respeito ao acesso sustentável à água em quantidade suficiente para atender às necessidades de uma comunidade
Na avaliação de Silva, uma forma de mitigar o problema seria investir na recuperação de pastagens degradadas para expansão das lavouras, em vez de abrir novas áreas com o desmatamento de florestas, e ampliar práticas sustentáveis, como a Integração Lavoura Pecuária Floresta (ILPF). “Essas práticas tendem a beneficiar a produtividade agrícola em comparação com as monoculturas, além de manter o solo com melhor qualidade ambiental e equilibrar o uso de água de forma mais sustentável a longo prazo”, diz o pesquisador.
*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 13 – Ação Global Contra a Mudança Climática
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