Quando o Elsinho, o Empaminondas, Osmir e o Zé Gordinho resolveram capinar os lotes da última quadra à direita da Rua Três, na Vila Abajá, pertinho do Colégio Pedro Gomes, para fazer o campo, ele passou por debaixo da cerca de ripas da casa do Ninha e ficou lá. Era um tereno úmido e cada enxadada era uma minhoca que saía e ele ia só enchendo o papo. A molecada não se incomodou, pelo contrário, gostou muito da docilidade do penoso.

Era um crista chata, vermelho, com penugem amarela cobrindo o sobre e rabo com penas pretas e vermelhas. Não era exatamente um galo bonito, mas era diferente. Grandão e de canto curto. Não gostava de cachorro e todos os que apareciam por lá ele ia pra cima e como sempre enfrentou vira latas pequenos, espantava a cachorrada sempre.

Com gente era muito afetuoso. O Ninha o criou como “cuti”. O Otaviano deu o pinto de presente para desocupar a galinha. Havia chocado 12 ovos e 11 agouraram. Só aquele saiu da casca com vida, o Otaviano tinha duas opções, dar de presente para alguém, ou entregar para o galo capão criar.

Naquela época era comum os criadores de galo de briga terem um galo capão para criar os pintos. A raça escolhida era os nanicos, pois as pernas eram curtinhas, o corpo largo é muito emplumado, protegia melhor os pintos do frio.

Não eram muitos os que sabiam capar galo. O Otaviano sabia e capou a maioria dos que haviam naquela região. Espera o frango começar cantar, despena quatro dedos logo abaixo do fiofó do penoso, faz o corte, enfia os dedos indicador e anular, acha os baguinhos dele, que ficam grudados no encontro das duas costelas, no lado de dentro do sobre e arrancava – um de cada vez.

Nada de anestesia e, curiosamente o galo fica quietinho, não sei se de dor, ou resignação. Galo capão briga com a galinha para tomar os pintos. Criam grandes quantidades por vez. São gordos e não cantam, nem brigam com outros galos. Quando a ninhada que ele criou já está crescida, é preciso separar dele: se deixar por eles a separação não acontece nunca.

O do Otaviano era belo. Cinza, com penachos prateados sobre as costas. Quando o crista chata saiu do ovo, o capão estava criando uma ninhada de 15 galinholas, que já estavam com quase dois meses e colocar o pinto novo no meio dos outros era condená-lo a morte.

O Ninha saiu do carteado da Zuleica e passou na casa do Otaviano para tomar da cachaça com murici que ele tinha, viu o pinto dentro do rebojo, sozinho: -“Porque este pintinho está aqui abandonado?” – quis saber: – “A crista chata agourou os ovos e de 12 só nasceu este. Não posso por no cercado com o capão porque os galinhola já estão crescidos e não vou deixar a galinha criando apenas este indês” – respondeu o galista.

Ninha vivia sozinho, do lado de baixo dos lotes vazios. Era funcionário da estação do trem de ferro, trabalhava vendendo bilhetes para os trens das cinco e das nove e das dez. Chegava às quatro e meia da manhã e saía às onze. Almoçava, tirava um cochilo e ia para o carteado da Zuleica, onde ficava até o final da tarde, jogando caixeta e fumando.

Era lei, antes de ir pegar a comida no restaurante da estação, para jantar, passava no Otaviano para beber a cachaça. Era Mulato, baixo, gordo e careca, nunca foi visto com mulher. O povo falava mal dele, mas não era afeminado e ninguém também nunca o viu com homem. Na verdade aquele povo dava a vida pra falar da vida dos outros.

Quando ouviu a história do pintinho, disse ao Otaviano: – “Me dá ele que crio de cute”. Ganhou na hora. Levou pra casa, criou na quirela, comendo na sua mão. Até na cama o Cuti subia e quando viu a molecada carpindo o terreno para fazer o campo foi pra lá comer minhoca.

Depois que o campo ficou pronto, o lugar se tornou ponto de encontro da molecada. Quem estudava à tarde ia pra lá de manhã, quem estudava de manhã ia à tarde. E o crista chata sempre lá.

Sábados e domingos tinham os jogos. Time do negão, do Nenê, Vasquinho do Emival, Botafogo do Osmir, Santa Rita do Deco, Serraria do Lélé e o Rubronegrinho, do Neron. Tinham outros mas não lembro os nomes. Eram de lugares diferentes: Vila Abajá, Fama, Santa Helena, Bairro Bonfim, Perim, São José, Dergo e até da Capuava. Tinha os campeonatos organizados pelo Elsinho e era tudo muito pacificado. Raramente tinha briga. O Pecão apitava a maioria dos jogos.

Era muito movimentado. O Zé Rudia levava o carrinho de suco dele. Tinha uma manivela, ele girava pra trás e quando voltava o suco saía pelo caninho retorcido e caía no copo. Três caninhos e três sabores diferentes: uva, groselha e abacaxi. Depois do suco no copo, ele raspava na barra de gelo e colocava por cima – ficava geladinho.

Os copos eram de plástico duro e lavados sem sabão, numa bacia com a mesma água o dia inteiro, mas ninguém se incomodava com aquilo e o suco era todo vendido. O Maciel levava o carrinho de pipoca e o Vanderlei pastéis que a mãe dele fritava, numa bacia de alumínio.

Muita gente ia assistir os jogos. E, naturalmente, o galo lá, trançando entre as pernas dos presentes. Ganhava um pipoca de uns, carne moída do pastel de outros e às vezes se metia a entrar em campo durante o jogo. Aí alguém chamava: – “Cuti… Cuti… Cuti” e ele ia onde quem chamava estava.

O Ninha não se importava com o carinho dos moleques pelo galo, mas quando chegava com a comida para jantar já o chamava pra casa e aí ele não voltava mais. Dormia dentro de casa e cantava às quatro horas pontualmente para acordar o dono.

O Gileno não era muito querido. Metido a brabo, vivia procurando confusão e adorava ir atrás dos menores depois, quando estavam sozinhos para bater. Chegava no Campo do Galo e se tivesse só meninos menores até roubar a bola roubava. Morava abaixo da linha de ferro e tinha uma Monark amarela. O pai era o Sergipano, pouco querido também. Era valentão e gostava de falar que veio pra Goiânia porque matou três sujeitos num bar lá no seu Estado, por causa de jogo de sinuca e para não matar o resto da família, veio pra Goiânia.

Andava sempre com uma peixeira atravessada no cinto, acima da bunda. O Gileno tinha o mesmo temperamento. Um dia deu uns cascudos no João Furreca, quando ele ia para a escola. O Marco Antônio, primo mais velho do Fureca, filho do Sargento Dito, vingou.

Pegou este Gileno lá no Campo do Galo e deu uma surra. Saiu de lá com nariz sangrando e olho roxo. Os maiores deixaram porque o Gileno era mesmo terrível. O pai quis saber quem era o moleque que bateu no filho: – “Foi o Marco Antônio, filho do Sargento Dito” – informou o seu Roque. Como o Sergipano já conhecia a fama do Dito, murchou. Por umas três semanas o Gileno andou sumido. Depois que o roxo do olho desapareceu, ele reapareceu… estava mais manso.

No sábado da aleluia, após a meia-noite de sexta feira da Paixão, alguns moleques saíam à noite para roubar galinha para fazer farofa, comida durante a malhação do Judas. Ninguém se metia a roubar frangos ou galinhas dos galistas que criavam raças de briga. Mas as galinhas que circulavam pelos lotes vagos e empoleiravam nos galhos das goiabeiras próximas às casas dos donos, tinham de ser vigiadas senão virava farofa.

Na sexta-feira da Paixão ninguém jogava bola lá no Campo do Galo e o carteado da Zuleica não abria. O Ninha ficava em casa, ouvindo missa no rádio. Era missa o dia inteiro e ele ouvia todas. Como o restaurante da estação não abria, ele tinha de fazer a comida. Já comprava o peixe na feira da Perimetral na quinta e deixava salgando.

Lá pelas seis foi esquentar o arroz feito no almoço e fritar os bagres. Terminou e foi chamar o Cuti, para se recolher. O crista chata não apareceu. O Ninha ficou doido. Pegou a bicicleta, andou pelas redondezas, vasculhou as moitas em volta do campo e nada. Foi nas casas perguntando pelo galo, ninguém sabia e todos ficaram preocupados.

A redondeza inteira passou o final da sexta-feira da Paixão procurando o Cuti e nada de achar o galo. A procura foi tão intensa que os moleques nem saíram para roubar galinha pra farofa de sábado. Todos tristonhos.

Seu Jairo fez o Judas com a cabeça de cabaça e cheio de bombinhas de São João. Levou lá para o Campo do Galo, ascendeu pela barra da calça e ele foi explodindo. Mas não teve graça. O Cuti não havia aparecido e o campo estava sem o galo.

O Deni, do time do Negão achou as penas do Cuti, dentro do rego d’água que passava debaixo dos trilhos da estrada de ferro. Todos desconfiaram que o Gileno roubou o galo na sexta-feira da Paixão, durante o dia, cometendo um pecado sem perdão e fez farofa dele no sábado da Aleluia.

Mas ficou só na desconfiança. Mesmo depois que o Sergipano mudou para Bela Vista o povo falava isto. O Ninha procurou pelo galo incansavelmente, até que o Deni o levou lá para ver as penas vermelhas, algumas maiores pretas e penugens amareladas jogadas no rego d’água. Chorou como menino. Foi pra casa do Otaviano contar e bebeu toda cachaça do estoque. Quanto mais bebia mais chorava.

O Otaviano tentou consolar o amigo prometendo outro pinto, mas depois que passou a fogueira, a tristeza diminuiu, ele não quis. O Cuti era insubstituível. Foi o Otaviano quem o fez desistir da ideia de matar o Gileno e o Sergipano: – “Ninguém viu, não temos certeza, não há nenhum indício que foi o moleque que roubou o galo. Você pode ir pra cadeia por ter matado dois inocentes” – palavreou o galista.

O Ninha resolveu ficar quieto. O curioso é que o Gileno sumiu um bom tempo lá do campo. Tudo isto aconteceu no começo da década de 1950. No início da década de 1970 o campo foi diminuindo à medida que os donos dos lotes levantaram as casas no local. Os campeonatos acabaram e as peladas diárias continuavam, com menos jogadores nos times.

Em 1979 o último lote virou casa. Acabou o campo que durou quase trinta anos e por causa do Cuti, nunca deixou de ser chamado de Campo do Galo.