Tanta coisa acontecendo no futebol e hoje me recuso a falar sobre isto. Hoje tenho um assunto mais importante para abordar. Quero abordar a história de vida de um dos maiores homens que conheci, Geraldo Machado, sepultado na nesta manhã.

Vivi a infância e adolescência ao lado dele. A casa dos meus pais era separada por um muro da casa da família dele. Meus irmãos mais velhos e os filhos mais velhos dele acabaram por derrubar este muro e virou tudo uma casa só. Os imóveis ainda estão lá na viela da Rua 3, na Vila Abajá, mas as famílias mudaram. Só soube o que era a vida naquele espaço de Goiânia, quem viveu lá.

Estranho pedaço de cidade onde as casas não eram trancadas, pois a qualquer momento alguém poderia sentir fome e comer na casa mais próxima a qualquer hora e dia. As famílias eram todas muito amigas e os filhos destas famílias viraram irmãos. Era muita gente. Na minha casa, 11 filhos, na do seu Geraldo seis, mas ele ainda trouxe dois sobrinhos, o Daniel e o Beto para viver na sua casa, elevando o número para oito: Hamilton, Mírian, Paulo, Pópulo, Maria Cecília, Mauro (médico e vice presidente do Goiás), Beto e Daniel.

A esposa, dona Cecília, era brava (mas extremamente carinhosa com os filhos do seu ventre e os que aquela viela puseram dentro da sua casa, através da irmandade da vizinhança), seu Geraldo era um poço de calma. Nunca ouvi um grito dele e acredito que ninguém jamais tenha ouvido. Homem bonito: alto, loiro, pele clara e voz suave… doce e carregada de calma e ternura.

Este temperamento nobre, digno dos seres mais evoluídos, não tirava dele o comando. Quando falava alguma coisa, sem levantar a voz, era respeitado por todos nós. Eu e o Mauro éramos os caçulas, bem paparicados por sinal e os outros já da adolescência pra frente. Onde um ia, iam todos e não há um só registro de desentendimento.

Seu Geraldo era bem humorado, sorridente e atencioso. Era época em que os jovens ocupavam seus tempos entre o estudo, trabalho e a diversão: festas caseiras com dança, animada pelo disco na radiola aos finais de semana e cantoria em todos os momentos possíveis. A maioria tocava algum tipo de instrumento e nos finais das tardes se reunia para cantar.

Seu Geraldo gostava de ouvir Chalana. Quis saber o que era e ele me disse que era um navio pequeno, que andava nos grandes rios, levando as pessoas. Perguntei se ele já tinha andado numa: “Já e é uma das coisas mais gostosas da vida. Ela vai deslizando pelas águas e o vento vai batendo na cara da gente” – explicou.

A viagem na chalana foi de um lado para o outro do Araguaia. Ele era motorista de caminhão (naquela época profissão muito valorizada). Trabalhava no armazém Irmãos Machado e Cia Ltda. Contou que atravessou o rio na chalana quando o caminhão foi levado do lado goiano, para o lado mato-grossense numa balsa – ele e as outras pessoas que tinham veículos na balsa foram na chalana. Naquela época não tinha ponte entre os dois Estados.

Tenho muitos momentos deste grande e querido amigo, guardado na memória. Um deles ocorreu quando era muito criança. Anos de 1960, já quase no final da década, os Beatles comandavam a moda no mundo e a turma do Roberto Carlos aqui no Brasil. Pópulo e o Paulo, a exemplo dos meus irmãos Zezé e Pedruca, deixaram a cabeleira crescer. Estavam todos com os cabelos abaixo dos ombros. Abafavam com a mulherada.

Todos cantavam bem, dançavam bem e ainda tinham cabelos nos ombros. Seu Geraldo chegou de viagem e não gostou daquele estilo. Chamou os dois filhos e mandou cortar os cabelos. Saiu e voltou e os cabelos estavam lá brilhando ao vento: “Já falei que é pra cortar estes cabelos. Aceitaram ser homens e não podem parecer mulher deste jeito”.

No outro dia saiu novamente, quando voltou e viu os cabelos grandes, saiu imediatamente. Quando voltou, estava acompanhado pelo João Barbeiro, que tinha uma valise na mão. Seu Geraldo trouxe uma cadeira chamou o Paulo e o Pópulo e disse ao barbeiro: “corta o cabelo destas duas raparigas aí”. João obedeceu e os filhos bem educados não resistiram.

Primeiro o Pópulo. Máquina daquelas de encaixar o dedo polegar de um lado e puxar o outro com o resto da mão, tesoura fina, pente flamengo marrom e cabelo loiro só caindo. Quando estava uma meia cabeleira baixinha, seu Geraldo disse: “Está bom”. O processo foi repetido na cabeça do Paulo.

Seu Geraldo pagou o barbeiro e disse: “Não pensem que porque estão crescendo, engrossando a voz, que vão passar por cima das minhas determinações. Sabem que sou teimoso, vou viver até cansar da vida e quando eu falar, façam logo. Vocês têm nome de homens, vestem roupas de homens e aceitaram ser homem. Então terão jeito de homem, honestidade de homem e serão trabalhadores como convém aos homens”. E assim foi com todos os Machado, todos honrados como exigiu seu Geraldo.

O Paulo e o Pópulo contaram para os amigos o que tinha acontecido com alegria. Riam da postura firme do pai, que embora fosse dócil, era determinado e o que ele falava, ele fazia. O reflexo foi tão forte que o Pedruca e o Zezé também cortaram os cabelos.

Seu Geraldo nunca deixou de participar ativa e carinhosamente das vidas de filhos e netos e recebeu em troca muito amor e respeito da família e de quem teve a honra de ser seu amigo.

Como disse no dia do corte dos cabelos dos filhos, o que ele falava ele cumpria. Naquele dia disse que viveria até cansar da vida. Neste domingo, dia 2 de agosto, após o almoço, pediu um copo de refrigerante parava Mírian. Ela o atendeu e quando voltou para pegar o copo, ele havia partido. Cansou da vida aos 103 anos e morreu bonito, lúcido, tranquilo e iluminado como viveu. Está lá do outro lado, com toda certeza, bonito, lúcido, tranquilo e iluminado.

Ao Hamilton, Mírian, Paulo, Pópulo, Maria Cecília, Mauro, sobrinhos, noras, genros e netos consolo dizendo que foram privilegiados por ter um alicerce tão nobre como chefe do clã. E ao seu Geraldo meu obrigado por ter feito parte da minha vida com exemplos tão bonitos.