REINALDO JOSÉ LOPES
SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS)
– Empregando a tecnologia das vacinas mais eficazes contra a Covid-19 desenvolvidas até agora, cientistas nos Estados Unidos criaram uma imunização polivalente contra a gripe. Ela abrange todos os principais subtipos de vírus da doença – algo que nenhuma vacina disponível atualmente é capaz de fazer.

A abordagem, por enquanto, foi testada apenas em animais de laboratório e ainda há um longo caminho antes que ela possa ser aprovada para uso em seres humanos. Mesmo assim, os resultados, que acabam de sair no periódico especializado Science, sugerem que é possível contornar uma das grandes limitações das atuais vacinas contra a gripe. O grande problema dos métodos mais usados hoje é justamente a necessidade de “apostar” em um número pequeno de subtipos da doença na hora de criar a imunização, sem saber se eles serão mesmo os mais relevantes no risco que trazem para a população.

Coordenado por Claudia Arevalo e Scott Hensley, da Universidade da Pensilvânia, o trabalho tem como base as vacinas de mRNA (RNA mensageiro), molécula “prima” do DNA que também é empregada em boa parte das imunizações contra a Covid-19 que foram aplicadas no Brasil.

Nessa abordagem, os especialistas montam uma molécula de mRNA que contém a receita para a produção de uma das proteínas que compõem o vírus da doença. Ao chegar ao organismo do paciente, esse trecho de mRNA passa a ser “lido” pelas células, que se põem a produzir as proteínas virais.

Com isso, o sistema imune (de defesa) do organismo reconhece que está diante de substâncias estranhas e aprende, entre outras coisas, a produzir anticorpos, moléculas capazes de atacar tais substâncias. Assim, quando o vírus real entra em contato com a pessoa vacinada, o sistema imune já dispõe de um arsenal específico contra o inimigo, o que impede a infecção ou minimiza muito seus efeitos.

A mesma lógica se aplica às vacinas mais antigas de gripe, amplamente usadas hoje. A diferença é que, nelas, o ingrediente que ajuda a “treinar” o sistema imune não é o mRNA, mas o próprio vírus da doença, cultivado em ovos de galinha e inativado com detergente. A questão é que, com essa abordagem, as vacinas incluem na sua formulação vírus inativados de, no máximo, quatro cepas (variedades) dos causadores da gripe.

Entretanto, existe uma grande variedade de cepas da gripe, que fazem parte de nada menos que 20 linhagens diferentes dos chamados vírus influenza A e B, os mais importantes a afetar seres humanos. Em tese, uma vacina universal contra gripe poderia tentar identificar elementos comuns entre todos esses vírus para criar uma formulação que impedisse a ação de qualquer um deles. Na prática, porém, ninguém ainda conseguiu descobrir como fazer isso.

A equipe da Universidade da Pensilvânia, em seu estudo na Science, decidiu adotar uma abordagem que outros pesquisadores classificam como “força bruta”: usar moléculas de mRNA de representantes de todas as 20 linhagens de influenza A e B de uma vez só. Para isso, eles escolheram os mRNAs que correspondem à “receita” da hemaglutinina, proteína da superfície dos vírus da gripe que eles usam para se ligar à membrana das células humanas. Ou seja, trata-se de um bom alvo se a ideia é impedir os passos iniciais da infecção.

Testes de laboratório com camundongos e furões (animais muito usados em estudos sobre doenças respiratórias) mostraram que a abordagem pode funcionar. Os animais conseguiram produzir bons níveis de anticorpos contra os vírus de todas as 20 linhagens e não ficaram doentes quando foram diretamente inoculados com cepas da gripe. O efeito protetor se estendeu também a cepas cujo material genético não tinha sido incluído na formulação da vacina, embora nesses casos os animais tenham tido sintomas leves da doença.

Alyson Kelvin e Darryl Falzarano, pesquisadores da Universidade de Saskatchewan (Canadá) que comentaram o estudo a pedido da Science, afirmam que a vacina polivalente de mRNA poderia trazer resultados superiores aos das atuais imunizações contra a gripe porque parece ser capaz até de bloquear totalmente a infecção nos pulmões, conforme indicam os dados em furões.

Segundo eles, uma possível preocupação a ser analisada é o fato de que uma vacina desse tipo envolveria o uso de material genético de vírus que não estão circulando entre seres humanos no momento. De um lado, isso poderia impedir o surgimento de novas pandemias de gripe, mas também teria potencial para direcionar a evolução de novas cepas da doença.

“Mas esse cenário parece improvável, porque a vacina multivalente, nesse estudo, está associada à prevenção da infecção e da replicação dos vírus. Esses resultados sugerem que, muito provavelmente, essa vacina diminuiria o potencial de aparecimento de novas cepas virais”, escrevem eles. De qualquer modo, novos estudos são necessários para entender melhor o potencial e as limitações da abordagem, diz a dupla.

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