ANA BOTTALLO – SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A bióloga Letícia Rocha da Silva, 31, pesquisa atualmente modelagem de tumores do sistema nervoso central e suas implicações no organismo.

Ela não tem como se deslocar de sua casa, no bairro de Guaianases, extremo leste de São Paulo, até o laboratório de biologia genética, no Instituto de Biociências da USP, zona oeste da capital, sem o dinheiro que recebe da bolsa de doutorado da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

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O trajeto de mais de 50 quilômetros é feito diariamente para dar continuidade aos experimentos em cultivos celulares, que não podem parar nem um dia sequer.

Mas a sua pesquisa está ameaçada após o Ministério da Economia congelar a verba do Ministério da Educação, há uma semana, afetando o pagamento de mais de 200 mil bolsistas da Capes.

As bolsas de pós-graduação, destinadas a alunos de mestrado e doutorado, são a única fonte de renda da maioria dos estudantes. Como Letícia, milhares acordaram da noite para o dia sem dinheiro para comprar comida, pagar aluguel e bancar outras despesas básicas.

Leia abaixo o relato da bolsista à Folha de S. Paulo

Sou aluna de doutorado no programa de biologia genética no Instituto de Biociências da USP e recebo a bolsa da Capes desde 2020, quando ingressei no doutorado. Moro em Guaianases, no extremo leste de São Paulo, então isso já mostra as dificuldades em me manter no programa.

Eu não tenho ajuda dos meu pais, e o fato de depender exclusivamente da bolsa gera algumas complicações importantes para minha subsistência. Uma das prerrogativas da Capes quando você assina um contrato de bolsa é que nós temos direitos e deveres a serem cumpridos, dentre eles não podemos ter nenhum outro tipo de atividade remunerada com regime de exclusividade e que se estenda por mais de oito horas. O descumprimento pode acarretar a suspensão da bolsa.

O tipo de pesquisa que eu faço demanda uma disponibilidade quase que exclusiva, porque são muitos experimentos que levam muitas horas. Eu dedico boa parte dos meus dias de segunda a domingo e também feriados para a realização da minha pesquisa.

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Todos os custos da minha sobrevivência, incluindo os gastos para ir para a universidade e de alimentação, vêm da bolsa. E mesmo o valor da bolsa [R$ 2.200] é muito pouco, porque não tem reajuste há quase dez anos.

Muitos alunos, como eu, não fazem uma reserva de dinheiro, porque nosso dinheiro é usado exclusivamente para a sobrevivência, e isso faz com que a gente parcele muita coisa.

O ambiente acadêmico é também muito hostil e pode causar uma forte pressão. Eu, no desenvolvimento do meu projeto, passei por alguns problemas de saúde, entre eles crises renais muito fortes. Dei entrada em um hospital particular para tratar a dor que era muito alta –não conseguia o atendimento no hospital público e não tenho convênio médico. As dívidas do meu atendimento hospitalar ainda estão em aberto.

Quando eles não pagam a bolsa no dia, a gente não consegue honrar com nossos compromissos, pagar nossos boletos, e por isso adquire dívidas. Conheço pessoas que já estão pensando em conseguir um empréstimo para conseguir pagar o que devem ou para conseguirem se manter em dezembro.

Estou extremamente preocupada porque, se não tiver o pagamento [das bolsas], além de não conseguir pagar minhas dívidas, não vou conseguir arcar com a minha manutenção.

Eu vejo que o governo trata os pós-graduandos e residentes com bastante descaso. Se a gente for parar para pensar em países desenvolvidos, a grande força-motriz é a pesquisa, grandes potências como os Estados Unidos investem pesado em educação, tecnologia e pesquisa de base.

Os pesquisadores são valorizados, são contratados, eles têm direitos. A remuneração é mais plausível. Aqui no Brasil, não, há um grande descaso, não há respeito pelo pesquisador, a gente recebe uma bolsa, sem nenhum outro benefício.

Então se há algum imprevisto, seja por algum motivo de saúde ou contração de dívidas, temos que retirar todo o recurso da nossa bolsa. Não dá para nada.

É bastante lamentável a forma com o governo trata os pesquisadores. Um bom governo deve olhar para a pesquisa com maior cuidado, maior carinho, porque somos a base da pesquisa.

Até o momento, alguns programas de pós-graduação estaduais se manifestaram. Deve haver uma comoção maior, ou alguma atividade mais intensa para haver a liberação dessa verba.

Internamente, se esse valor existir, a Capes precisa avaliar redistribuir para os estudantes que dependem unicamente das bolsas para sobreviver.

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