O mês de março é marcado por textos, reflexões e homenagens em redes sociais mobilizados pelo 8 de março, data oficializada em 1975 pela Organização Mundial das Nações Unidas (ONU) como Dia Internacional da Mulher.

A comemoração envolve a valorização das transformações, conquistas de direitos e papeis ocupados pelas mulheres em diferentes setores da sociedade. Uma data menos conhecida é a de 11 de outubro, também instituída pela ONU, a do Dia Internacional da Menina, que procura fortalecer as demandas e necessidades de meninas em diferentes países.

Em documento divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), dados mostram que meninas são maioria em casos de violência psicológica, física e negligência.

Segundo o mesmo relatório, os principais marcos presentes na história dos direitos de crianças e adolescentes, como a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança (1924) e na Lei que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a questão do gênero não ganha protagonismo nas análises.

Infâncias desiguais

“A desigualdade de gênero ainda é um grave problema social no Brasil e no mundo. As meninas e os meninos são tratados de formas diferentes desde a infância devido à construção social de papéis considerados a serem exercidos por mulheres e por homens”, afirma Caroline Miranda, técnico de Relações Institucionais e Governamentais da Fundação Abrinq, que atua na defesa dos direitos da criança e do adolescente.

Segundo Caroline, a construção do entendimento sobre gênero e seus significados é expressada nas relações familiares, assim como nas escolas, comunidades e nos outros espaços de convivência ocupados pela criança.

A diferença de discursos em que meninos e meninas são submetidos é normalizada à medida que essa distinção é pouco questionada. Um exemplo comum é a construção do estereótipo ligado às atividades domésticas, como arrumar a cama, cozinhar e passar roupas.

“A concepção de ‘sexo frágil’, somada à inocência da infância, aumenta o entendimento social de que meninas e adolescentes são indefesas e, por sua vez, se tornam alvos mais vulneráveis em casos de casamento infantil, abuso, exploração sexual e estupro”, declara a representante da Fundação Abrinq. Para a instituição, o reparo histórico entre meninos e meninas é urgente e as discussões devem levar em conta o processo de desigualdade de gênero como um fator presente desde a primeira infância.

Além de diferenças presentes nas expectativas em relação ao que meninos e meninas devem fazer, também é possível observar diferenças referentes ao agir e sentir.

“Como por exemplo quando a gente escuta que meninos devem ser menos sentimentais que as meninas, ou que meninas não podem ou devem praticar determinados esportes ou seguir determinadas profissões”, pontua a especialista em gênero e inclusão na Plan International Brasil, Ana Nery Lima.

Avanços históricos

Assim como no processo de consolidação dos direitos assegurados à mulher, a busca por medidas efetivas pela garantia dos direitos das meninas também envolve um processo histórico marcado por legislações e programas de proteção.
O Estatuto da Criança e do Adolescente em 2020 completou 30 anos de existência. O documento foi um marco importante na execução de medidas que assegurem os direitos dos meninos e meninas no país.

Entre as Leis que envolvem questões específicas da faixa etária, é possível destacar a Lei da Escuta, que em 2017 determinou a integração dos serviços para prevenir novas formas de violência contra crianças e adolescentes, a partir de um sistema de proteção e apoio à vítima ou testemunha de violência durante o seu depoimento às autoridades policiais.


Um exemplo mais recente, de 2019, é a Lei do Casamento Infantil, responsável por estabelecer a proibição do casamento com menores de 16 anos em qualquer circunstância.


Para Ana Nery Lima, da Plan International Brasil, um outro marco relevante na legislação é a promulgação da Lei que viabilizou a criação do Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, que determina a necessidade de estudantes do ensino fundamental e médio, populações vulneráveis e detentas recebam absorventes de maneira gratuita. A discussão faz parte das medidas que visam a garantia da dignidade menstrual.

A proteção aos direitos da menina também podem ser integrados com programas que promovem uma rede de apoio às mulheres no país.
“O programa Casa da Mulher Brasileira revela excelente iniciativa, mas que carece de uma implementação mais ágil e capilaridade, para que possa ter impacto positivo na proteção de mulheres e meninas no país”, afirma Caroline Miranda.

Desafios persistentes

Apesar das conquistas verificadas, ainda persistem formas de desrespeito e violação contra à menina que despertam a atenção de pesquisadores e instituições defensoras da causa. Segundo pesquisa divulgada pelo projeto Por Ser Menina, da Plan International, ao ouvir 2.589 meninas em 2021, cerca de 94,2% já haviam sofrido ao menos um tipo de violência ou presenciado com pessoas próximas.


“Também na pesquisa constatou-se que 69,4% das meninas sentem seus direitos desrespeitados apenas por serem meninas/mulheres. Esses dados se refletem quando olhamos para os marcadores sociais de raça e sexualidade, por exemplo, quando a pesquisa evidencia que 64,3% das meninas pretas já sofreram racismo na rua e 58,9% na escola”, destaca Ana Nery Lima, que faz parte da instituição responsável pelo relatório.

Nesse mesmo sentido, mulheres e meninas ainda são as vítimas principais de outras formas de agressões como violência sexual, o que abrange estupro, assédio e pornografia infantil. Além disso, outro desafio é a própria educação sexual, que esbarra em preconceitos e tabus presentes na própria sociedade.


“É necessário que o Brasil incorpore a educação em sexualidade efetivamente na formação do estudante, para além do conteúdo sobre reprodução humana. Para isso, é importante reforçar o arcabouço legal para garantir que o tema esteja na Base Curricular. É importante preparar os professores para trabalhar o tema junto aos educandos e instrumentalizá-los com conhecimentos que lhes possibilitem conhecer o próprio corpo e seus direitos sobre ele, para que possam se prevenir contra violência, infecções e gravidez não intencional”, destaca a representante da Fundação Abrinq, Caroline Miranda.

Meninas com um futuro

Para além da necessidade de políticas públicas interligadas e que considerem as especificidades do ser menina no país e no mundo, é importante pensar nas ferramentas que assegurem a emancipação e a qualidade de vida no presente, como para o futuro.


“Pensar a educação como uma das principais vias para acabar com a desigualdade é um fator fundamental em nossa realidade”, afirma Ana Lery Lima, da Plan International, que lidera projetos ligados à liderança e empoderamento de meninas.


Segundo a especialista em gênero, a educação é uma ferramenta essencial para equidade e justiça social, e quando aliada à perspectiva de igualdade de direitos, proporciona para crianças, adolescentes e jovens, a possibilidade de projetarem o seu futuro com mais autonomia.
A noção de liderança ultrapassa a concepção que costuma atribuir esse papel aos ligados à chefia política ou posições de destaque em empresas. Assim, também envolve o reconhecimento das próprias habilidades, a consciência da trajetória de vida e a capacidade de mediar conflitos.


“Reforçar a autoestima das meninas, sobre meninas negras, pensar espaços que não sejam capacitistas e livre de discriminações garante que as meninas possam desenvolver com plenitude suas habilidades de liderança e empoderamento, tanto individual quanto coletivamente”, reforça Ana Lery Lima.


As meninas de hoje serão as adolescentes e jovens de um amanhã que se aproxima. De acordo com Caroline Miranda, da Fundação Abrinq, é preciso garantir que adolescentes possam construir seus projetos de vida considerando várias possibilidades de futuro.


“É importante lembrar que a Constituição Federal coloca a família, a sociedade e o Estado, lado a lado, como responsáveis por garantir à criança e ao adolescente o exercício de todos os seus direitos, bem como a crescer e se desenvolver livre de violências”, declara Miranda.

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