Laila Melo
Laila Melo
Mestra em Comunicação pela UnB, e jornalista pela UFG. Investiga discurso, política, estudos culturais, educação e teorias feministas e de gênero.

Para quê serve o Dia da Mulher?

Nasci, me tornei, sou mulher”. Este é um trecho de uma música que evoca a célebre frase de Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se”. Apesar de esta abordagem ser problematizada pelas teóricas feministas contemporâneas, é interessante observar que, em março, esse “ser mulher” é reavivado por discursos que nos batem à porta (e no bolso) através do Dia Internacional da Mulher (DIM). No dia oito, somos aquelas a quem são destinadas flores e bombons e um “Feliz Dia”. Mas, para quê serve este o oito de março?

Das várias versões existentes para justificar a data, a mais convencionada é de que ela é referente ao incêndio que vitimou 125 mulheres trabalhadoras (maioria imigrante), em uma fábrica de roupas, em 1911, em Nova Iork (EUA). Porém, para além da versão A ou B dos porquês deste oito de março, ou do papel do capitalismo neste marco, o que trago é a importância de compreender cenários sociais e reforçar a busca por novos caminhos mais equânimes. Por isso, o que te proponho é repensar esta data e te trago alguns dados e reflexões para esta ancoragem.

Trabalho e renda

O uso do tempo de vida é essencial para pensarmos esta construção de cenário. A distribuição dele, a valorização e desvalorização de como o usamos, promove desigualdades. Historicamente, a sociedade tem atribuído o trabalho do ambiente privado às mulheres. Quando alguém fica doente, quem geralmente cuida deste alguém? Te veio uma imagem a cabeça? Estes cuidados (de crianças, idosos e doentes) são destinados às mulheres. É o que se espera de nós. O espaço da casa e o que ele demanda em termos de manutenção também nos é atribuído. Isto tem sido conhecido como Divisão Sexual do Trabalho e afeta também em nossas saúdes mentais (você já ouviu falar em carga mental?). Mas como esta Divisão Sexual do Trabalho impacta a vida de mulheres?

Este destino começa a ser traçado logo na infância, e afeta, por exemplo, a educação de meninas. Nós dedicamos mais horas aos afazeres domésticos e cuidados de pessoas, mesmo em situações ocupacionais iguais a dos homens. Dedicamos mais de 21 horas semanais aos trabalhos de casa, enquanto a deles é de 11 horas. Esta é a dupla (às vezes tripla) jornada de trabalho e revela o trabalho invisível que precisa ser feito, mas não é remunerado. Ele retira tempo de mulheres para terem outras conquistas para além do lar e, isto também se reflete no mercado de trabalho.

Quantas histórias de mulheres você já ouviu (ou viveu) de entrevistas de emprego em que foram questionadas se tem ou pretendem ter filhos, por exemplo? Estas histórias estão nas narrativas, mas também nas estatísticas. A ocupação do mercado de trabalho de mulheres que vivem em lares com crianças de até três anos de idade é bem menor (54,6%) do que a de homens (89,2%). Além disto, apenas 37,4% dos cargos gerenciais são ocupados por mulheres no país. Se adicionarmos o recorte de raça aos dados, o cenário nos espanta ainda mais. A média salarial de um homem branco é de R$ 3,471 e de uma mulher negra é de R$ 1.617. Em cargos de direção e gerência, apenas 2% são mulheres negras.

Locais de poder e tomadas de decisão

Cenários como estes influenciam também na ocupação de mulheres em espaços políticos de poder e tomada de decisão. Apesar de sermos 52% da população brasileira e 52% do eleitorado atual, ocupamos apenas 17% das cadeiras na Câmara Federal e 14% no Senado. Em 26 estados e o Distrito Federal, apenas duas mulheres são governadoras. Como explicar estes números? Em entrevista ao podcast Ambiente, da Sagres, a secretária municipal da Mulher de Goiânia, Tatiana Lemos, apontou caminhos: “A mulher às vezes não entra na política porquê ela tem que trabalhar fora, ela tem que chegar em casa, lavar roupa, passar, cuidar de meninos”.

A baixa representatividade de mulheres na política também é relacionada à questão do tempo, como Tatiana Lemos exemplifica. Outro fator que nos ajuda a compreender este contexto é o que a sociedade espera de nós em termos de posicionamentos sociais. Ainda somos associadas a um padrão de “bela, recatada e do lar” que também contribui com essa limitação de espaços, em que o desejado socialmente é que sejamos as “primeira-damas” e não as “presidentas”. Indo mais além, se estamos nestes locais, somos questionadas dos motivos de estarmos lá, como, se vamos ou não exercer nossas maternidades, e até mesmo, somos alvos de violência política de gênero.

Não significa que mais mulheres na política garantam direitos voltados para nós. Mas, a maior representatividade de mulheres possibilita outras formas de ver e estar no mundo (que não sejam de homens, brancos, cisgênero e heterossexuais). Mais mulheres na política asseguram a efetividade da democracia, na qual uma parcela significativa da sociedade também passaria a integrar os espaços de poder e tomadas de decisão. Te questiono: se não estamos nestes locais em que o destino do público (e até do privado) é estabelecido, quem garante que leis que nos contemplem especificamente, como o da dignidade menstrual, de fato serão observadas, projetas, votadas e aprovadas?

Dia Internacional da Mulher é em oito de março
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil.

Corpos e violência

Não há como não associar a importância do Dia Internacional da Mulher com como ainda somos vítimas de diversas violências. Não significa que homens também não sejam vítimas de violência. Porém, há uma diferença da que nos é direcionada, é por sermos mulheres. No Brasil, uma menina ou mulher é estuprada a cada 10 minutos, três mulheres são vítimas de feminicídio a cada dia, uma travesti ou mulher trans é assassinada a cada dois dias e 26 mulheres sofrem agressão física por hora.

Essa violência está dentro e fora de casa. A violência doméstica já vitimou 36% das brasileiras.  Quantas mulheres têm medo de sair andar na rua sozinha ou até mesmo pegar um transporte coletivo ou um de aplicativo? Nossos corpos ainda são lidos como bens públicos, e, por isso, quase metade das mulheres afirma ter sido tocada sem consentimento num espaço coletivo.

Presente e futuro

Apesar dos inúmeros desafios que nós mulheres ainda enfrentamos por sermos quem somos em nossa sociedade desigual, os avanços relacionados aos nossos direitos tem ocorrido. Cada vez mais ocupamos outros espaços para além do lar, como o da ciência. No Brasil, leis têm sido desenhadas para tipificar crimes direcionados às mulheres, como a da Maria da Penha e a da Carolina Dickeman. Organismos internacionais também se voltam para isto. Não é por acaso que a Igualdade de Gênero é um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da União das Nações Unidas (ONU), documento que apresenta caminhos a serem seguidos para a garantia de um mundo melhor em todos os termos, inclusive para mulheres e meninas.

Volto para minha pergunta título deste artigo: Para quê serve o Dia da Mulher? Ele é momento de luta, simboliza a busca por equidade social entre homens e mulheres. É para marcar que diferenças biológicas não devem determinar diferenças sociais. Mas ela é só um símbolo, um lembrete. Problematizar estes cenários e buscar modificá-los é algo que se faz constantemente, não só em março.

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