“Nobre julgadora conforme liquidação de Penas no Caderno de Procedimentos Pag 242, se considerados meus dias trabalhados, me encontro enquadrado nos requisitos objetivos e subjetivos para benefício de progressão de regime para o semiaberto a título de retorno, uma vez que o lapso temporal se efetiva em outubro de 2012, sem consideração dos dias trabalhados”. Ao contrário do que se imagina, trechos como esses são de cartas escritas à mão pelos próprios presos, que além de revelarem histórias e dramas individuais, requerem às autoridades competentes os mais diversos pedidos na tentativa de verem seus clamores atendidos.

Em 2011 e 2012, quase 96 mil cartas de detentos protocoladas como relatos, manifestações, reclamações, pedidos de habeas-corpus, progressão de regime e outros temas chegaram ao Supremo Tribunal Federal (STF). Desse total, 983 tiveram como ponto de partida a correspondência de presos de Goiás. Ainda nesse universo, 69 correspondências estavam vinculadas a pedidos de liberdade. Porém, dos 57 pedidos de habeas corpus concedidos pela Corte em 2011 e 2012, nenhum foi para algum detento de Goiás.

Já na 4ª Vara Criminal de Goiânia não há estatística oficial de quantas cartas são enviadas por presidiários, mas a juíza Telma Marques não hesita em dizer que ela chega a receber de 200 a 300 correspondências por mês. Já 90% do conteúdo das cartas referem-se a pedidos de benefícios, seja progressão de regime ou remição da pena por meio do trabalho.

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Telma

Como é o caso do trecho da carta exposta no início da matéria. Nela, o presidiário remete o pedido à juíza Telma e, para embasar o conteúdo, cita ainda um artigo do Código Penal. Mas nem sempre as correspondências possuem boa escrita. De acordo com a juíza, a maioria dos detentos não possui instrução, logo, as cartas vêm com muitos erros gramaticais.

04É o exemplo de outra correspondência que a Rede Clube de Comunicação teve acesso, em que o detento pede à juíza a transferência do presídio de Goiânia para o município de Nova Veneza, onde sua família mora. “Venho por meio desta informar a Vossa Excecia (sic) que dentro dos meios legais, gostaria de pedir minha transferência de Goiânia para Nova Veneza, tendo em vista que tenho ramificação familiar na mesma localidade, de se olve (sic) a continuidade de minha remissão (sic) na mesma localidade”.

Mas nem a falta do uso correto do português ou do conhecimento jurídico é capaz de inibir a iniciativa desses detentos. Uma das razões para o envio cada vez maior de cartas às autoridades competentes seria o difícil acesso à Justiça e o reflexo de um sistema falho e moroso no país. Em Goiás, presidiários que não têm condições de pagar um advogado precisam recorrer às cartas para que seus processos sejam revisados. Tudo porque um interminável concurso para a seleção de 40 defensores públicos do Estado foi suspenso pela terceira vez em três anos.

A juíza Telma relata que no Fórum existem dois advogados, um da Agência Prisional de Goiás e um do Estado que prestam assistência jurídica às famílias mais carentes. Algumas faculdades de Direito encaminham estudantes do curso para atender os detentos, porém, raramente os casos ganham acompanhamento. Enquanto isso, Telma estimula os presidiários  a escreverem do próprio punho suas peculiaridades, revoltas e desejos vividos por trás das grades. A juíza conta que todo mês ela realiza inspeção mensal no presídio para atender os presidiários e recolher as correspondências.

“O que o Supremo recebe essas cartas como pedidos de habeas corpus, eu recebo como petição. Eu anexo ao processo e dou prosseguimento como se fosse uma peça bem feita, uma peça pedida pelo advogado. Como você pode imaginar uma pessoa encarcerada, que não tem liberdade de busca, não conhece ninguém, não tem dinheiro, a família não consegue mais dinheiro para pagar advogado, o Estado não tem advogados suficientes, não tem Defensoria Pública? Acho mais natural receber, sim, essas cartas como um pedido e colocá-las como petição e juntar ao processo do detento. Eu não deixo nenhuma fora”, disse Telma.

01Proporcionalidade carcerária
Antes as cartas enviadas ao STF eram simplesmente esquecidas nas gavetas, mas desde 2008 que os presidiários contam com a Central do Cidadão, que faz a triagem e dá encaminhamento às correspondências. Um dos coordenadores do serviço, Marcos Alegre Silva, explica que a maioria das cartas é originária do Estado de São Paulo. Ele detalha que o Estado representa quase 60% do total de correspondências enviadas ao Supremo, enquanto que Goiás representou, em 2011, apenas 0,80% e, no ano seguinte, 1,14%.
Marcos acredita que existem várias possíveis causas para o pouco volume de cartas enviadas por detentos de Goiás ao Supremo. “Nosso volume hoje de cartas é 5 mil por mês. Nós temos observado que de Goiás não é um volume muito grande. Eu não sei se isso pode estar relacionado diretamente à questão da população carcerária. Se formos comparar a população carcerária de Goiás com os estados de São Paulo, ou do Rio de Janeiro ou de Minas Gerais, talvez isso responda a questão da proporcionalidade”.

Outros motivos podem estar relacionados à restrição que as unidades penitenciárias impõem ao envio dessas cartas e à falta de costume dos próprios detentos. Marcos lembra, por exemplo, que quando o STF iniciou esse trabalho de triagem das cartas, eles recebiam de 20 a 30 correspondências por mês. “A partir do momento que começamos a responder, a fazer encaminhamento, nós sentimos que o aumento foi exponencial. Começou a acontecer nos presídios uma espécie de boca a boca”, avalia.

Uma vez transformadas em processos, as cartas são distribuídas por sorteio a um dos ministros, que pode julgar ou ainda remeter um ofício ao tribunal responsável. Como o Poder Judiciário obedece a uma ordem hierárquica de instâncias, o ministro do Supremo não pode, por exemplo, conceder pedido de liberdade se o processo não tramitou nas instâncias anteriores.

“Às vezes o próprio trâmite judicial é muito lento e como o preso pode fazer o pedido de próprio punho, ao chegar o pedido aqui, nós fazemos uma pesquisa a respeito dos processos judiciais que ele tem. Se nós encontrarmos um pedido da mesma natureza que já tem decisão do Superior Tribunal de Justiça, aí o ministro do Supremo tem condições de pedir a liberdade em razão da comprovação dos fatos alegados”, explica Marcos.

É interessante observar que das 69 correspondências protocoladas como pedidos de habeas corpus por detentos do Estado ou até por suas famílias, mais de 14 foram enviados pelo mesmo remetente. Só um relatante chegou a encaminhar 21 correspondências entre 2011 e 2012. As cartas tiveram como ponto de partida os municípios de Goiânia, Formosa, Valparaíso de Goiás, Aparecida de Goiânia, Planaltina, Luziânia, Pilar de Goiás e Rio Quente.02

Pedidos comuns
Além dos pedidos de liberdade, a juíza Telma conta que a maioria das cartas revela histórias e dramas individuais que se entrelaçam e possuem basicamente o mesmo teor. “Os problemas são muito parecidos e a ansiedade dessas pessoas é mais ou menos a mesma. Alguns querem rever a pena, outros contam que são inocentes, alguns requerem trabalho, tratamento médico, querem estudar”. Quando é pedido, por exemplo, a remição da pena pelos dias trabalhados, a juíza manda rever o processo e oficializar a frequência de trabalho do detento. “Isso surte muito efeito”, acrescenta.

Em outra carta, dessa vez escrita por uma mulher que cumpre regime fechado no Presídio Feminino do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia e que foi responsável por um crime que chocou o país, o pedido é simples. Ela solicita à juíza que intervenha junto à diretoria da Agência Prisional para que continue frequentando as dependências da Escola Estadual Lourdes Estivalete Teixeira, instalada dentro da penitenciária, após ter concluído o ensino médio. “Acredito que minha estadia na unidade escolar servirá de consolo enquanto aguardo o momento de poder retornar ao convívio social dignamente”, finaliza a detenta na carta.