Do papel pra tela. Assim, as letras e palavras encontraram linhas no meio digital. Que os livros estão na internet não é novidade. Mas a pandemia tornou as bibliotecas digitais essenciais em um momento em que as estruturas físicas fecharam as portas. Tanto é que o faturamento das editoras brasileiras com conteúdo digital cresceu 36% no ano passado. São milhares de títulos pagos e gratuitos que têm feito a diferença na vida de estudantes goianos.

Leia também: Estímulo à leitura é estratégia para formar leitores críticos e reflexivos

Escolas públicas estaduais de tempo integral de Goiás começaram a usar bibliotecas virtuais para armazenar e compartilhar livros digitais, a fim de incentivar a leitura dos alunos nas aulas remotas. O Centro de Ensino em Período Integral (Cepi) Ana Maria Ferreira de Paula, em Planaltina, foi uma das unidades que investiram na leitura via plataforma digital.

“Nossos estudantes estavam em casa e não tinham acesso aos livros da escola. A gente trabalhava as aulas online ou atividades impressas e percebemos o desejo deles pelos livros, até como uma forma de estarem mais próximos da escola. A partir daí, nós fizemos um acervo do que tinha na nossa biblioteca física e selecionamos por área de conhecimento e necessidade da comunidade escolar e montamos essa plataforma. Fomos adicionando livros e até conteúdo pro Enem”, explicou a diretora do Cepi, Sirleide Alves.

São 60 livros disponibilizados para os alunos. Eles recebem o link pelo celular e conseguem fazer o download do arquivo em PDF. Depois de baixado, o estudante nem precisa de internet. A aceitação foi imediata, inclusive dos pais dos alunos. “Foi impressionante o retorno. E não ficou só na nossa escola, mas também famílias inteiras. Pais e mães também queriam ler, também se interessavam. E acabamos sendo ponte de compartilhamento para todos. Percebemos que os estudantes ressurgiram por meio da leitura e por uma diversidade de conhecimento. A plataforma fomentou a criatividade e, mesmo com o retorno das aulas presenciais, a atividade vai permanecer”, ressaltou a diretora.

E foi justamente esse o efeito provocado na vida de Jonatas Negreiros, de 17 anos, aluno do Cepi em Planaltina. Inspirado pela biblioteca virtual, ele criou o próprio livro. Um só não. Seis. São títulos em construção que tratam de ficção e vida real, redigidos a quatro mãos e que fazem parte do projeto Ghost. Ele conta com a ajuda do amigo Alaxi Muller. “São histórias reais nossas e outras criadas. Elas falam sobre depressão, solidão e outros sentimentos. E o objetivo é ajudar as pessoas a enfrentar esses problemas”, contou Jonatas.

Jonatas e Alaxi. Foto: reprodução / zoom

Além da versão digital, a dupla tem interesse em fazer em audiobook e até animação. “A gente começou isso tudo com áudios. Então, o audiobook é para aqueles que não tem tempo para parar para ler e aí, podem escutar. E queremos por também imagens nessa história pra ajudar o leitor a imaginar e entrar naquela história. Cada personagem dos livros passa por dificuldades e momentos de superação”, completou Alaxi.

Jonatas canalizou a hiperatividade da infância e a depressão da adolescência na construção de um projeto que ele veio amadurecendo ao longo do tempo. “Quando eu era criança, fui diagnosticado com hiperatividade. O médico recomendou à minha mãe que eu lesse muitos livros. Foi ali que eu me encontrei. Eu sempre gostei de ler, mas não tinha tanto acesso aos livros por falta de dinheiro. A biblioteca digital na minha escola oportunizou isso, não só pra mim, mas para todos os meus colegas. E o nosso projeto me propiciou falar da minha depressão recente e como eu superei”, pontuou Jonatas.

Os livros de Jonatas e Alaxi estão em fase final de construção. Depois de prontos, eles serão disponibilizados na internet de forma gratuita. Já a biblioteca digital do Cepi pode ser encontrada aqui:

Outra unidade de Goiás que implementou esse tipo de ferramenta porta adentro da escola foi o Cepi Aeroporto, de Uruaçu. “Nós começamos postando vídeos, audiobooks, material de apoio para professores, textos e vários livros. O objetivo foi alcançado, porque tivemos uma adesão grande entre os alunos e além disso, conseguimos auxiliar os próprios professores que também estavam taralhando de casa. Por meio da plataforma foi possível, inclusive, fazermos campeonatos de linguagem. Foi uma experiência exitosa que permanece mesmo com o retorno presencial das aulas”, relata a professora da unidade Rosângela Dias.

A aluna Allyne Vitória e a professora da unidade, Rosângela Dias, na entrega do prêmio do Desafio da Biblioteca Virtual Interativa. Foto: Reprodução / Instagram

Para a professora, esse tipo de atividade ampliou o conhecimento dos alunos. “A gente até gosta de falar que qualquer outra escola que tenha interesse em implementar o projeto, que faça. Nós percebemos um engajamento enorme mesmo com esses estudantes longe. Foi uma ferramenta a mais para fazê-los permanecer ativos no ensino e motivá-los a criar, explorar, conhecer. E além disso, envolvemos toda a comunidade escolar, porque o link da biblioteca chega pra todos”, reforçou Rosângela.

MUNDO VIRTUAL

Para além do mundo da educação, a pandemia também impulsionou o faturamento das editoras brasileiras com conteúdo digital. O crescimento foi de 36% no ano passado, somando R$ 147 milhões. O crescimento nominal da receita foi de 43%. Em 2019, o faturamento atingiu R$ 103 milhões. As informações constam da Pesquisa Conteúdo Digital do Setor Editorial Brasileiro, divulgada neste mês de agosto pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) e pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL).

O resultado registrado inclui a produção e venda de e-books, audiolivros e outras plataformas de conteúdo digital em 2020. O desempenho observado no ano passado fez o conteúdo digital passar a representar 6% do mercado editorial nacional, contra 4%, no ano anterior.

O interesse em conteúdos de bibliotecas digitais cresceu na mesma proporção, aumentando os acessos de sites como o da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, que oferece inteiramente livre e sem qualquer ônus, títulos que incluem desde os primeiros jornais criados no país – como o Correio Braziliense e a Gazeta do Rio de Janeiro, ambos fundados em 1808 – a jornais extintos no século XX, como o Diário Carioca e Correio da Manhã, ou que não circulam mais na forma impressa, caso do Jornal do Brasil.

Tem ainda o Projeto Gutenberg, que é uma biblioteca com mais de 60.000 e-Books gratuitos. Dá para baixar ou ler online títulos em inglês. O site Domínio Público, do governo federal, fornece obras autorizadas e que constituem o patrimônio cultural brasileiro e universal. É necessário ter acesso à internet.

Biblioteca Digital Mundial, desenvolvida pela UNESCO e pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, é uma tentativa pioneira de promover o entendimento intercultural e oferecer acesso ao patrimônio digital de 200 países.

Confira outros sites que oportunizam o acesso a títulos em formato digital:

TRANSIÇÃO

Esse conceito do dispositivo portátil atravessa séculos. O livro que surgiu com as tábuas de argila usadas por sumérios cerca de três mil anos antes de Cristo, passou às primeiras impressões sobre papel com a invenção de Gutenberg (em torno do ano de 1450) e chegou ao formato digital, que se populariza desde os anos 1990.

No “Manifesto para bibliotecas digitais”, a UNESCO e a Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias (International Federation of Library Associations and Institutions – IFLA) apontam que: “A missão da biblioteca digital é fornecer acesso direto aos recursos de informação […] de maneira estruturada e autorizada e, assim, vincular tecnologia da informação, educação e cultura no serviço contemporâneo de bibliotecas”.

Em um artigo, o diretor e representante da UNESCO no Butão, na Índia, nas Maldivas e no Sri Lanka, Eric Falt, fala que as bibliotecas digitais estão contribuindo para o alcance de algumas metas-chave dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). “Em particular, vamos celebrar seu poder de garantir acesso público à informação, de proteger o patrimônio cultural do mundo e fornecer ambientes de aprendizagem seguros, inclusivos e eficazes para todos”, disse no texto.

Para a professora do curso de biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Laís Pereira de Oliveira, essa transição do papel pro digital contribuiu significativamente para o acesso multiplicado dos leitores. De certa forma, o fechamento dos ambientes físicos por causa da pandemia e o direcionamento quase que total às plataformas digitais, impactaram na forma como o bibliotecários passaram a trabalhar, mas evidenciaram a importância desse profissional.

“A função do bibliotecário continua mais importante do que nunca. O digital te traz muitas coisas que precisam ser verificadas. E esse profissional faz isso. Na medida em que as bibliotecas entraram num processo de reestruturação para o meio digital, a transição também aconteceu pro profissional da biblioteconomia. A gente tem assistido profissionais tentando trabalhar outras formas de fornecimento ao usuário, investindo na base de dados, por exemplo. Temos bibliotecas que trabalham os empréstimos online e leitura online”, afirmou Laís.

Para a professora ainda existem desafios para alcançar aqueles que não têm acesso à internet com políticas públicas de inclusão. “A gente sabe da função social da biblioteca na sociedade, porque nos proporciona o acesso a informação e o estudante, que ficou mais de um ano em casa, passou a demandar essas possibilidades. Mas a gente precisa ampliar, olhar além. Existem ainda problemas de acesso, internet e até de locais de estudo. É algo que precisamos pensar enquanto política pública para garantir a aprendizagem e a leitura não só em situações de pandemia, mas em outros momentos também. Precisamos pensar a longo prazo. Precisamos investir em estruturas gratuitas e abertas”, reforçou a professora da UFG.

VANTAGENS E DESVANTAGENS

O designer e professor Marcilon Nitrocorps dedicou seu mestrado ao tema de leitura em plataformas digitais, analisando a estrutura das publicações digitais. Hoje, ele se divide no modo híbrido, parte leitura online, parte leitura em livros físicos. O professor recorda de seus primeiros contatos com a leitura.

Designer e professor Marcilon Nitrocorps. Foto: Arquivo pessoal

“Na minha infância, quando eu pensava em biblioteca, a lembrança era ir na Biblioteca Marieta Telles Machado e a Gibiteca Jorge Braga. Esses eram meus únicos locais de referencia para se fazer trabalhos escolares. Hoje, você tem a possibilidade de acessar uma biblioteca na internet. Por esse meio é mais fácil encontrar livros gratuitos e que muitas vezes nem existem mais na forma física. Apesar de ter uma biblioteca digital maior do que a física, eu ainda tenho um certo saudosismo ao livro físico”, relevou Marcilon.

Entre as vantagens elencadas por ele estão a edição e publicação menos burocrática de títulos em plataformas digitais, com lançamentos independentes, e o fator interatividade. “São livros que não precisam ter textos estáticos. Eles podem integrar som, vídeo, imagens dinâmicas e isso tudo eleva a publicação digital numa categoria a parte. Você pode pesquisar palavras, recortar trechos e fazer uma infinidade de coisas”, destacou o professor.

Não é uma substituição, mas sim uma complementação, segundo o professor. “Pesquisadores dizem que existem duas formas de pensar quando está usando uma tela digital e um livro. Quando você usa uma plataforma digital, sua capacidade de engajamento é diferente porque você tem acesso a um conjunto de recursos interativos. O livro de papel permite um modo mais lento e profundo de leitura, porque o livro só te permite manipular o objeto. Dependendo do livro, por exemplo, eu faço questão de ter a versão impressa, porque quero uma leitura mais profunda”, explicou Marcilon.

Marcilon compartilha da mesma opinião que a professora Laís. O grande problema continua sendo a acessibilidade e a falta de compreensão do meio digital. “Muitas vezes esquecemos que grande parte das pessoas tem uma conexão em desportivos precários e com pouco plano de danos para fazer transmissão desses livros. Acredito que a popularização dessas plataformas exigem também a alfabetização digital e investimentos”, afirmou.

CUIDADO COM OS OLHOS

Qualquer leitura ou utilização das plataformas digitais precisa ser feita com moderação. A oftalmologista Maria Luiza Vieira, alerta que o malefício vai depender do tempo de utilização e a proximidade com os olhos.

Oftalmologista Maria Luiza. Foto: Arquivo Pessoal

“O ideal é que a gente use mais ou menos durante uma hora e faça uma pausa olhando para longe para descansar a musculatura da visão. A radiação que esses aparelhos emitem pode causar fadiga. É preciso dosar a quantidade do tempo que destino àquela situação”, explica a médica.

Sete em cada dez médicos entrevistados em um levantamento do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO) identificaram progressão de miopia em crianças durante a pandemia. O estudo foi realizado em abril e junho deste ano. Dos profissionais ouvidos, 75,6% avaliaram que o uso de diversos dispositivos eletrônicos pode agravar o quadro de miopia. Quase todos os profissionais ouvidos (98,6%) disseram que a redução do tempo gasto em telas (como celular, televisão e videogames) pode ajudar no caso de crianças míopes.

A pandemia agravou isso, segundo a médica, já que as crianças foram colocadas nas aulas online e ainda passavam o tempo de folga brincando nos aparelhos, já que não podiam frequentar parques. A recomendação para crianças é de até os 2 anos não oferecer nenhum equipamento eletrônico. E até os 10, permitir a utilização por dois períodos de meia hora durante o dia. “E é importante verificar a proximidade do aparelho dos olhos das crianças. Não pode ficar tão perto”, ressaltou.