A Mata Atlântica, com apenas um quarto de sua área original preservada, é protegida pela lei federal 11.428/2006, que estabelece restrições ao uso da floresta nativa com base nos estágios sucessionais. No entanto, pesquisadores afirmam que essa legislação é insuficiente para garantir a preservação efetiva da Mata Atlântica.

Angélica Resende - Foto: ResearchGate
Angélica Resende – Foto: ResearchGate

Segundo um estudo publicado na revista “Perspectives in Ecology and Conservation”, os critérios subjetivos e imprecisos para definir os estágios sucessionais, que são determinados a nível estadual, prejudicam a aplicação uniforme da lei, especialmente no Estado de São Paulo.

“Eu li a legislação e falei ‘não tem como: não tem como eu fazer um inventário, não tem como eu classificar as florestas usando isso’”, relata a engenheira ambiental Angélica Resende, líder de estudo sobre a legislação do Estado de São Paulo para a Mata Atlântica, que contou com pesquisadores do Instituto de Biociências (IB) USP, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) USP, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e de algumas Organizações Não Governamentais com experiência em inventários florestais. O diagnóstico é que a legislação paulista sobre a proteção é limitadora e insuficiente.

“No nível estadual, a Lei da Mata Atlântica deve ser aplicada pelos proprietários de terras no bioma de acordo com as orientações estabelecidas pelo Conama, Conselho Nacional do Meio Ambiente. Mas no caso de São Paulo, ela também foi publicada paralelamente ao que foi escrito pelo Conama. Basicamente a mesma lei, na mesma resolução publicada pela Subsecretaria de Meio Ambiente em conjunto com o Ibama”, detalha ela, em entrevista a Pedro Morani do Jornal da USP.

Falta de padronização

São Paulo enfrenta dificuldades na implementação da lei devido à falta de estudos de campo padronizados e à dependência de dados de sensoriamento remoto. Durante a tentativa de classificação dos estágios sucessionais, os pesquisadores perceberam que os parâmetros atuais são inadequados para criar um padrão replicável, essencial para pesquisas científicas e políticas de conservação consistentes.

“Da forma como estava a legislação, se eu classificar os estágios seguindo o que eu interpretei ali, e você classificar, vão sair coisas completamente diferentes. O texto não tinha clareza, não tinha parâmetros de referência, não tinha tamanhos mínimos, que são coisas básicas para quem é da área”, aponta Angélica Resende.

Estágios sucessionais, determinados pelas alturas das árvores, estabelecidos pela resolução do Estado de São Paulo para implementação da Lei de Proteção da Mata Atlântica – Fonte: Artigo in press

Complexidade da Sucessão Ecológica

A sucessão ecológica é um conceito complexo, com uma literatura extensa de quase 100 anos. A legislação atual foca principalmente na composição de plantas, mas os cientistas reconhecem que a sucessão envolve também o clima, os animais e a interação humana. Em áreas urbanizadas como São Paulo, prever a sucessão ecológica é ainda mais desafiador.

“Um desmatamento removeu toda a vegetação que tinha ali, e ela pode espontaneamente retornar às mesmas espécies que havia ali. Então, se você for numa floresta hoje que está conservada, você vai fazer um inventário e vai ver que tem espécies que são do final da sucessão, espécies arbóreas, ou não só arbóreas mas espécies de todos os tipos, que chegaram ali depois porque passaram pela sucessão”, explica Angélica.

Historicamente, florestas não impactadas pelo homem moderno eram consideradas “matas virgens”. No entanto, reconhece-se hoje que até mesmo populações indígenas manejavam essas áreas sem devastação significativa. Por isso, as florestas são agora classificadas como de “estágio inicial”, intermediário e avançado, uma terminologia considerada adequada pela legislação. “Da forma como está não causa muita confusão”.

Falta de tamanhos de referência e padronização

Os pesquisadores apontam a ausência de tamanhos de referência na lei. A falta de definição de áreas de amostragem mínima e tamanhos mínimos das árvores dificulta um inventário florestal preciso. Divergências entre técnicos ao avaliar áreas próximas, mas distintas, resultam em definições inconsistentes dos estados sucessionais.

Em 2009, o Pacto da Mata Atlântica estabeleceu o Protocolo de Monitoramento da Restauração, que aborda pontos como amostragem e valores mínimos ausentes na lei do Conama. Os pesquisadores criticam a interferência política no Conama, criada em 1994, antes da promulgação da Lei da Mata Atlântica, e sugerem que decisões técnicas devem prevalecer na elaboração da legislação.

A vegetação em São Paulo não é uniforme, e a legislação atual do Conama não considera as especificidades locais, aplicando os mesmos valores de referência para diferentes tipos de floresta. Isso favorece algumas florestas em detrimento de outras, comprometendo a preservação geral.

Levantamento florístico detalhado

A lei exige um levantamento florístico detalhado, que deve ser realizado por especialistas em taxonomia. No entanto, esses profissionais são raros, até mesmo na academia.

“Imagina um produtor rural lá numa cidade do interior de São Paulo, onde ele vai encontrar uma pessoa qualificada para reconhecer uma das floras mais biodiversas do mundo? Não tem condições, e a gente não acha que é adequado deixar na mão de qualquer pessoa fazer um relatório.”

Outro parâmetro básico que não consta na legislação paulista é a área basal, medida pela qual, a partir do diâmetro das árvores, calcula-se a área que essa árvore está ocupando no solo, e então a soma da área basal na parcela ou no hectare. Para propósitos científicos esse parâmetro é muito importante, permitindo comparação com a literatura – e é importante que existam essas métricas comparáveis em uma lei ambiental.

Sugestões

O grupo de cientistas reúne especialistas no bioma e com bastante prática em campo. A partir desse embasamento, foi feita uma lista de sugestões a serem implementadas numa possível reformulação da lei. Isso inclui separar os tipos de florestas, para reconhecer as diferenças naturais das formações, e também estabelecer uma amostragem mínima para apontar o estágio da floresta e área de loteamento, dando instruções sobre como alocar lotes.

A outra sugestão é dar um valor mínimo para a área basal para inclusão de árvores em inventários florestais. Mas o principal seria revisar os parâmetros do Conama. Por exemplo, a avaliação pode ser feita em etapas, primeiro pelo proprietário da terra, e em seguida pelo órgão ambiental estadual. Este poderia verificar o histórico de uso e cobertura do solo das últimas décadas naquela área usando fotos e ferramentas como o MapBiomas e Google Earth. Com a proposta aprovada na primeira etapa, o órgão ambiental a encaminha para uma segunda avaliação, em que técnicos indicados pelo governo verificam o grau de biodiversidade e se há espécies ameaçadas no local.

Além disso, devem ser considerados aspectos sociais, usando serviços ambientais prestados pela floresta como indicadores, como, por exemplo, recursos hídricos, bem-estar e controle do clima. Assim, o foco se ampliaria para abarcar não só a população urbana como um todo, mas as necessidades dos povos locais, ainda mais afetados pela destruição da floresta.

“A Mata Atlântica estava devastada há 30, 40 anos e hoje a gente conseguiu recuperar um pouco, muito pelo esforço da criação dessa lei. Mas na hora de aplicá-la isso é delegado aos Estados, e aí a gente chega a essas resoluções que não têm informações claras, o que ameaça a boa aplicação da lei. Por isso, para mim é muito importante que essas demandas cheguem a instâncias mais altas para a gente conseguir, quem sabe, pelo menos iniciar a discussão sobre as mudanças que precisam ser feitas”, aponta Angélica Resende.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS 13 – Ação Global Contra a Mudança Climática

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