Alfabetizar crianças ainda é um desafio para o Brasil. E para Cláudia Costin, presidente do Instituto Singularidades e uma das educadoras mais importantes do país, nós não estamos no caminho certo. “Dentro da estratégia que foi batizada de alfabetização na idade certa existem uma série de coisas que precisam ser enfrentadas. Uma delas é olhar para evidências científicas de que tipo de alfabetização funciona. E o Brasil está quase solitário, só acompanhado pela Argentina, numa estratégia de alfabetização que as pesquisas deixaram muito claro que não funciona”.

A estratégia é alfabetizar as crianças até o final do segundo ano do Ensino Fundamental. Mas o país está falhando no objetivo. Um exemplo é o estado de Goiás, que  mesmo com um projeto voltado para cumprir a meta,  fechou o ano de 2022 com quase 45% das crianças não alfabetizadas na idade certa.

A alfabetização começa com a percepção das letras que representam os sons. Costin ressalta a importância de ensinar essa consciência fonológica para as crianças desde a pré-escola de forma lúdica. “Precisa ensinar o nome e o som das letras. Com essa ideia de que a criança vai adivinhar o que está escrito como ela adivinha ao falar, porque a fala é inata no ser humano e a leitura não é, vamos continuar com uma alfabetização que não funciona”, diz.

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E o que funciona?

A alfabetização é uma das principais agendas da educação brasileira em 2024. No ano passado, o governo organizou um Seminário Nacional pela Alfabetização em Brasília, dando ênfase à necessidade de solucionar as baixas na estratégia de alfabetizar na idade certa.

escola
Escola (Foto: Prefeitura de Itabirito)

Para a especialista, a alfabetização na idade certa em regime de colaboração com os estados é uma pauta muito importante para este ano. Mas, aponta, o papel mais importante nessa agenda será o da educação infantil, a primeira infância, porque é onde ela diz que o problema da estratégia pode achar uma solução.

“Não adianta começar só aos seis ou sete anos com as crianças porque muito da desigualdade educacional e da desigualdade de condições de vida começa cada vez mais cedo. Então, trabalhar de forma integrada educação, saúde e assistência social na primeira infância vai ser extremamente importante em 2024”, afirma.

Assim, então, a educadora apontou os dois caminhos para o Brasil, em que o primeiro é observar as evidências das pesquisas que estão apontando que a estratégia não funciona. “O outro é começar mais cedo o processo de alfabetização deixando a criança imersa em ambiente letrado, mas ao mesmo tempo se preocupando em ensinar o código letrado. Esses dois temas precisam aparecer com mais força no processo de alfabetização”, argumenta. 

Desigualdade nas condições de vida

Cláudia Costin associa a desigualdade das condições de vida existentes no Brasil ao caminho trilhado pelas crianças. Ela aponta que as creches e as pré-escolas precisam ter muitos livrinhos para ensinar desde cedo a “função social da leitura”. “É importante que a professora da educação infantil leia o livro em voz alta e não só conte a história de cabeça”, argumenta. 

Matrículas na pré-escola representam um direito fundamental (Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil)
Matrículas na pré-escola representam um direito fundamental (Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil)

O ato, segundo a educadora, mostra para a criança o que é leitura e insere o processo na vida dela, principalmente das crianças mais vulneráveis. “Nas famílias de classe média e classe média alta isso acontece normalmente, pois a mãe lê para a criança antes de dormir. Mas em famílias mais vulneráveis ou em famílias de classe média em que os pais não dão tanta importância para a leitura, isso não vem acontecendo”, destaca.

Portanto, o foco da alfabetização não deve estar na idade certa no ensino fundamental. Mas na inclusão da criança num ambiente de aprendizagem já na primeira infância. “Tem que olhar para a alfabetização não como uma coisa que acontece no ensino fundamental, mas algo que já começa ser trabalhado desde bebê”, diz.

A importância do professor

As políticas educacionais foram intensamente discutidas em 2023, ainda que não tenha decisão efetiva sobre o Novo Ensino Médio e que os estados e municípios caminhem lentamente na abertura de matrículas em tempo integral. Cláudia ressalta que houve um “freio de arrumação” importante para a educação no ano passado. “Voltamos a discutir políticas educacionais e não mais brigas ideológicas, o que é um ponto positivo”, afirma.

Mesmo que o país aprove as mudanças para o sistema de ensino, antes da sala de aula, elas atingem primeiro os professores. Costin não vê movimento de formação dos professores simultâneo às mudanças propostas para a educação brasileira.

Para a educadora, a formação dos professores brasileiros tem dois problemas: a formação na faculdade e a distância da formação com a aplicação prática.

“A aberração do EAD”

“Sete em cada 10 professores são formados em EAD, 100% em EAD”, critica a especialista. Ela questiona por que a formação dos médicos é proibida no Ensino a Distância e responde que os médicos têm formação prática desde o primeiro ano da faculdade no hospital universitário. Assim, eles acompanham procedimentos, observam e depois já participam aos poucos. “Eles aprendem a teoria em diálogo com a prática”. 

Para melhorar a educação brasileira, Cláudia Costin sugere que se melhore primeiro a formação dos professores. Nesse sentido, ela critica a formação das faculdades EAD. “Primeiro nós temos que acabar com essa aberração”, enfatiza. 

“A outra aberração é que a formação que eles recebem, mesmo nas universidades federais e estaduais, que é presencial em sua grande maioria, não dialoga com a prática [do exercício da profissão]”, conta. A educadora destaca a formação de um professor de matemática, que depois irá ensinar outras pessoas, seja no ensino básico ou na formação dos demais docentes.  

“Se eu for estudar três anos e meio de matemática para virar professora, são três anos e meio com seis meses de um semestre acadêmico de história da educação; filosofia da educação; sociologia da educação; psicologia da educação; e mais um estágio de quatro meses que pode ser ritualístico, como se fosse o suficiente para formar para a mais complexa das profissões”, critica.

Valorização do profissional

Professora Thaiza incluiu o jogo Kerbal Space na área Ciências da Natureza. (Foto: Ananda Leonel)
Professora Thaiza incluiu o jogo Kerbal Space na área Ciências da Natureza. (Foto: Ananda Leonel)

A mais complexa das profissões forma todos os profissionais das outras profissões. Portanto, Costin defende a valorização dos professores profissionalmente. Segundo ela, valorizar um docente não é apenas adequar o ganho salarial, mas olhar para o que está acontecendo no mercado de trabalho desta área tão importante para a formação básica das crianças e adolescentes.

“É importante olhar para a fragmentação dos contratos, ou seja, o professor hoje, especialmente do Fundamental 2 e do Ensino Médio, tem que dar aula em três ou quatro escolas para completar carga horária. Isso é um terço do tempo de atividades extraclasse que ele tem e é usado para se transportar de uma escola para a outra”, conta.

A solução da educação é o novo PNE

A cada dez anos o Brasil lança um Plano Nacional de Educação (PNE) com metas e estratégias para melhorar o ensino no país. O plano vigente, 2014 – 2024, vencerá em 25 de junho deste ano. A redação do novo PNE começa com a Conferência Nacional de Educação (Conae) que será realizada entre 28 e 30 de janeiro, em Brasília.

O tema central da conferência será: “Política de Estado para garantia da educação como direito humano com justiça social e desenvolvimento socioambiental sustentável”. Mas ela tem sete eixos que irão nortear as discussões sobre a construção do Documento Referência do PNE 2024-2034, documento que será produzido pelo Fórum Nacional da Educação (FNE).

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Os sete eixos tem assuntos como ações integradas e interfederativas; permanência e conclusão; justiça social; educação de qualidade; valorização de profissionais da educação; financiamento da educação e desenvolvimento socioambiental sustentável.

Claudia Costin avalia que as metas construídas por interesse de grupos são o risco do novo PNE. “O grande risco do PNE é que ele tem um lobby das faculdades privadas por uma meta, a turma do ensino técnico põe outra, mas a gente tem que fazer uma transformação coerente, discutida com todas, mas com coerência interna”, conta.

Pensar o futuro da educação

Cláudia explica que o grande legado da educação brasileira nos últimos dez anos é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) implantada em 2017. O Brasil era um dos pouquíssimos países do mundo, com o mesmo nível de desenvolvimento, que não tinham um currículo nacional para a educação básica.

O desafio agora é construir uma educação coerente, que favoreça a formação dos professores e a qualidade do ensino. “Eu acho que um desafio muito importante é parar de olhar para metas fragmentadas. A gente quer ter um plano que seja discutido com a sociedade, o que faz todo sentido, mas tem que ter organicidade. Ou seja, não é amontoando cento e poucas metas que a gente vai ter um plano de qualidade”, argumenta.

EEMTI Joaquim Bastos Gonçalves, no Ceará (Foto: Instagram/@eemti.jbg)
EEMTI Joaquim Bastos Gonçalves, no Ceará (Foto: Instagram/@eemti.jbg)

Expectativa para 2024

2024 será um ano para fazer acontecer o que começou no ano passado, mas não deve incluir as mudanças aprovadas no Congresso Nacional. Pois o ciclo letivo já está fechado para este ano. Logo, novas mudanças só valerão para 2025. Para Cláudia, é um ano de boas expectativas, desde que haja colaboração dos entes federativos e que o foco seja a qualidade equitativa da educação.

“Será importante um diálogo aberto com estados e municípios e uma ação coordenadora do MEC, que não seja capturada nem por visões retrógradas nem pelo corporativismo, porque a finalidade da educação é sim valorizar o professor, mas para impactar o aluno. É preciso assegurar uma educação de qualidade para todas as crianças, o que quer dizer que vamos ter que trabalhar com uma agenda em 2024 muito mais forte olhando para a aprendizagem e olhando para a equidade na aprendizagem”, finaliza.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta matéria, o ODS 4 – Educação de Qualidade.

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