Lá por 1953, Das Dores apareceu na Vila Santa Helena. Pouca escolaridade e muita formosura, apesar do jeito rústico. Veio de Olho D’Água, hoje Americano do
Brasil, pra trabalhar na casa da família Weberhan, alemães que possuíam uma chácara imensa nas margens do córrego Anicuns.
Já contava 16 anos, moça pronta, mesmo assim dona Weberhan a matriculou na terceira série primária, no Grupo Escolar Dr. Victor Coelho de Almeida. Humilde, não se incomodava com a diferença de idade e de altura em relação aos colegas. Não tinha facilidade para aprender, mas dona Vitória, a professora, tinha paciência, entendendo que estava lidando com uma pessoa diferenciada. De uniforme ficou linda. Blusa branca, saia plissada azul, que mostrava as coxas grossas.
O Grupo Escolar Dr. Victor Coelho de Almeida está lá funcionando até hoje. Tem um pátio amplo, rebaixado, em relação aos corredores de acesso às salas. No recreio a molecada ficava lá embaixo para ver a calcinha da Das Dores, enquanto ela esperava na fila, para encher seu copo de leite em pó dissolvido na água quente.
Todo aluno tinha de levar seu copo. Era um leite grosso e excessivamente doce. Quando Das Dores começou a frequentar as aulas os meninos mais velhos, da quarta série, dispensaram o leite, para ver os fundos dela. Ingênua nem percebia. Foi a Mirtes que contou pra dona Maura o que se passava. A diretora chamou o grupo na sala dela e entregou a suspensão de três dias, exigindo a companhia das mães no retorno.
Naquele tempo em que tia era a irmã do pai ou da mãe, professora era professora e dar educação não era considerado repressão, mas formação de cidadão, o coro comia nos lombos de moleques que saíssem da linha. Não teve nenhum dos 11 suspensos que não tenha levado um corretivo à moda da época.
Dona Weberhan também foi chamada na escola. Foi pedido a ela que descesse a bainha da saia da Das Dores. A alemã atendeu e ainda orientou a criada.
De manhã à escola, chegando em casa, tirar o uniforme, almoçar, lavar as louças, arrumar a casa. Nas segundas e quartas-feiras lavava as roupas. Nas terças e quintas-feiras passava. Cisterna de sari e ferro de brasa. Puxar a água e movimentar o ferro de um lado para o outro para manter as brasas acesas era um custo. Na hora de repor o carvão, um litro sem fundos era colocado sobre o ferro, com a parte superior aberta, para o fogo transformar o carvão em brasa.
Tirar água na cisterna e movimentar o ferro no reaquecimento deixou Das Dores com braços musculosos. Era a ingenuidade em pessoa, nunca se queixava de nada.
No começo da noite, quando terminava o serviço da casa, se recolhia no quartinho ao lado do paiol, onde não tinha luz elétrica, fazia os deveres de casa e ficava ouvindo o rádio ligado lá dentro da casa grande.
A chácara dos alemães tinha uma área plantada de milho, algumas moitas de cana e um pequeno pasto, onde ficavam 13 cabeças de gado, 12 vacas e um boi. O leite tirado era vendido para o Josias leiteiro, que pegava os latões pela manhã, colocava na carroça e saía pelas ruas das redondezas com uma buzina de mão, anunciando que o leite estava passando na porta.
O litro de tirar o leite do latão, tinha uma asa alta, passava muito da boca. Assim, só o litro ia lá dentro do latão e os dedos do leiteiro não tocavam no leite. Era coado em um pano de saco de sal e quem comprava, fervia. Alguns leiteiros aumentavam o volume do leite adicionando água.
O Josias não fazia isto, por isso não sobrava uma gota do leite que pegava nos alemães. Era lá que ele deixava a carroça e o Xerife – cavalo vermelho com uma estrela branca na testa – daí o nome. O barracão onde morava ficava quase em frente à entrada da chácara. No acerto mensal pagava o leite e o aluguel do pasto para o Xerife.
Além do gado os alemães criavam porcos, tratados com o milho que plantavam e tinham uma horta, que produzia tomate, repolho, couve-flor, alface, couve manteiga e chuchu.
Só na casa grande tinha energia.
Lá no fundo, na margem do córrego, ao lado do valo onde o gado bebia água, ficava o rancho do Valeriano, o peão que tirava o leite. O alemão Webber e seus filhos cuidavam da entrega do leite, colheita das hortaliças e entrega das mesmas para os feirantes ao final do dia. Apartar os bezerros das vacas, curar pequenas bicheiras, esparramar óleo queimado com BHC sobre bernes e carrapatos, tirar o leite e tratar dos porcos era com o Valeriano.
Valeriano tinha 32 anos. Solteirão. Tão branco quanto os alemães. Sardas no rosto, cabelo vermelho e enrolado. Alto e magro. Nariz esparramado pela cara, boca grande de lábio fino. Vestia a mesma roupa a semana inteira. No domingo lavava a calça cinza e a camisa branca. Era no domingo que após tirar o leite e tratar dos porcos, se vestia de tergal e tricoline para ir à missa, na matriz de Campinas.
Dava umas olhadas na Das Dores mas não a desrespeitava. Num sábado ela pediu pra ir na missa de domingo com ele. Foi. Na saída ele comprou pipoca pra ela. Soube do aniversário dela no mês de agosto. Deu um rádio à pilha de presente. Foi a gota d’água. Moça sozinha, de 17 anos, com os hormônios agitados e o coração vazio, que ganha um rádio de presente!!! Apaixonou.
O rádio só era desligado quando ia pra escola. Trabalhava o dia inteiro ouvindo música e a novela O Direito de Nascer.
Numa noite não suportou a tentação. Saiu do quartinho ao lado do paiol e foi parar no rancho do Valeriano. Ele acolheu, trocaram carícias e se dependesse dela teria acontecido tudo, ali mesmo, após o primeiro beijo da sua vida.
Ele se conteve: “Somos empregados dos alemães que não me perdoariam. Sou homem de postura. Vou conversar com dona Weberhan e com seu Webber. Se consentirem a gente se casa.
Seu Webber nunca sorria, mas gargalhou ao ouvir o pedido: “Não somos os pais dela. A trouxemos para trabalhar e em troca darmos o estudo pra ela. Tem de ir lá no Olho D’Água e pedir aos pais este consentimento. No domingo levo vocês lá, no Jeep” – foi o que ficou combinado.
Depois da visita aos pais, foi só esperar a data marcada pelo Padre Maurílio Correia de Faria e casar, numa cerimônia simples, na Matriz de Campinas.
O casal alemão, o leiteiro Josias com a esposa foram testemunhas. Os pais e dois irmãos dela vieram. Os alemães ofereceram um almoço em comemoração.
Foi assim que Valeriano e Das Dores se casaram, sem terem sido namorados.
O rancho na beira do córrego ganhou mais dois cômodos – um quarto e uma cozinha. Das Dores parou de estudar, teve cinco filhos e junto com a família viveu na chácara dos alemães até 1968, quando os pais já haviam morrido e os filhos lotearam a propriedade, dando ao casal o lote onde o rancho estava erguido.