Foram dois dias de trabalho, mas a faixada do Armazém Bandeirante ficou pronta. Parede verde, letreiro laranjado, com as letras grandonas sombreadas de azul clarinho. Armazém em cima, Bandeirante em baixo. Entre a faixada e a calçada o número 648, nas mesmas cores, dentro de uma circunferência amarela. Do jeitinho que o Jacy queria. Ao final da palavra Bandeirante, a assinatura: Mozart.

Ele fazia muita coisa. Ensinava tocar violão e sanfona, tocava no conjunto que animava os bailes de sábado do Campinas Tênis Clube, escrevia envelope de casamento, capa de trabalho escolar, preenchia diplomas. Sabia fazer várias letras diferentes. Apesar das múltiplas funções, vivia na pindaíba.

Os pneus da velha aranha eram cheios de manchões. Iam rasgando e ele colocando pedaços de pneus por dentro para tampar o buraco. Quando andava a aranha Philips preta ia pulando e sacudindo.

Quando o Caçula se deu por gente, lá pelos seis anos, ele já estava por lá. Vivia com as duas filhas, Mariana e Margarida. Mesmo andando com roupas muito surradas, eram bonitas. Nesta época a Margarida tinha 16 anos e a Mariana 14.

Às duas estudavam no Educandário Campinas. Ele escreveu a faixada e o professor Trajano Guimarães, diretor da escola, que também era vereador, deu bolsa para as duas. A Margarida era regateira, namorava escondido.

No sábado esperava ele sair para o Campinas Tênis Clube, para ir nas brincadeiras dançantes, com luz negra e radiola de som lá em cima. Onde ia arrumava um namorado diferente. Gostava de dançar coladinho. Já a Mariana era muito tímida, retraída, vergonhosa.

Quando a Margarida arrumou emprego na Loja do Povo, para vender tecidos, a Mariana ficou tomando conta da casa. A Mariana passou andar chique. Até sapato de salto comprou. O Mozart não era de vigiar as filhas. Estava sempre ocupado e quando tinha um tempinho enchia a cara e ia dormir.

Vivia em Buriti Alegre com a esposa e as filhas. Quando uma tinha quatro e a outra dois anos, apareceu por lá um caminhão que trouxe couro curtido para as cidades do sul do Estado. A mulher do Mozart descobriu que era de São Paulo, pegou uma carona e voltou para São José do Rio Preto, deixando o marido e as filhas pra trás.

As más línguas diziam que ela cansou de passar fome. Na cidade só tinha trabalhos braçais nas fazendas próximas e isto não era com ele. Só ensinar tocar sanfona, violão e escrever em faixadas não dava para tratar da família e ainda por cima bebia.

Sem a mulher veio para Goiânia e foi morar no barracão dos fundos da casa do seu José dos Reis. Aqui ganhava mais, mas ainda era pouco. Era amoroso com as filhas, mas descuidado com o que elas faziam. Foi a Mariana que contou para dona Maria do seu José dos Reis que a irmão estava tomando um chá amargo pra danar e que tinha falado que era para curar a gripe. Só que ela não estava gripada.

Dona Maria ouviu e disse: – “Pode ser que sentiu os sintomas e está tomando o chá para evitar que o resfriado tome conta do seu corpo” – como não costumava conversar com ninguém a Mariana ouviu e se calou. Dona Maria chamou a Margarida e deu uma bronca. Se estava grávida, tinha de ter o filho e não jogar fora da barriga como se fosse um filhote de cachorro. Tarde demais, o chá fez efeito.

Era época das lambretas envenenadas. Os playboys cortavam as carenagens delas afinando a ponta próxima ao gidão, arrancava o pedal de partida, para pegar só no tranco e tiravam o miolo do escapamento para deixar a máquina barulhenta. A turma se encontrava na porta do Grupo Damiana da Cunha, fazia ponto na vitamina do Nilson, mas andava por todas as ruas campineiras, principalmente nas horas dos alunos sair das escolas. Era hora de paquerar as colegiais.

Quando começou trabalhar, a Margarida passou estudar a noite e logo começou namorar o Sabão, playboy de lambreta, grandão e magrelo, cheio de colar no pescoço, cinturão de fivela grande e calça boca de sino. Não trabalhava e era filho do seu João e da dona Joana, que tinham um forno parecido com cupinzeiro nos fundos do quintal, onde assavam petas. As petas eram ensacadas e os saquinhos colocados em uma sacola imensa, de plástico transparente.

Seu João saia pelas construções vendendo para os pedreiros e nos dias de jogos do Atlético vendia no Estádio Antônio Aciolly. Como o Sabão conseguia dinheiro para aquela vida ninguém sabia. O Mozart descobriu o namoro.

Ficou contrariado e foi falar com a filha: – “Tanta gente pra você namorar, vai se envolver com um rapaz que não trabalha, cabeludo, que anda nesta lambreta barulhenta. Dizem que até fumar maconha ele fuma. Este rapaz vai te fazer mal e depois te chutar.” Ele não sabia que a filha não era virgem e nem do aborto feito: – “Vou te buscar na escola todos os dias. Este namoro está proibido”.

Margarida ouviu sem responder. Foi trabalhar com os olhos cheio de lágrimas. Ela adorava aquela vida de garupeira da lambreta. Mozart procurou o Sabão lá na porta do Damiana da Cunha: – “Não quero saber deste namoro seu com minha filha. Você é irresponsável e eu não gosto de playboy cabeludo. Se encontrar com ela vai se ver comigo”. O playboy ouviu e não disse uma só palavra.

A Margarida foi entristecendo, emagrecendo e as notas que já não eram boas, pioraram. Num sábado quando o pai foi trabalhar à noite, se despediu da irmã e foi para a cidade onde a mãe estava. Se chegou lá ninguém ficou sabendo. Mas fugir com o Sabão ela não fugiu.

Continuava encontrando com ele às escondidas e descobriu que o dinheiro que sustentava sua vida de playboy, vinha do Nilsinho – ele era amante do cabeleireiro. Inconformada Margarida se foi. Só quando levantou, lá pelo meio dia do domingo o Mozart soube pela Mariana que a irmã tinha ido embora.

Ainda foi na rodoviárias, em frente ao Horto. Lá soube no Real Expresso que o nome da filha estava entre os que preencheram a passagem para São Paulo, no ônibus das oito da noite do dia anterior. Já tinha 18 anos e podia viajar sem autorização. Voltou pra casa. Bebeu demais naquele dia. Chorou que inchou os olhos e a cara que já era triste ficou mais.

Mariana tinha 16 anos. Arrumou emprego na Marceria do Zé Português. Começou fazendo café e limpando o chão, mas logo já estava no caixa. Andando mais bem arrumada acabou encantando o Hélio da dona Joelma. O Mozart permitiu o namoro, que dois anos depois já era casamento. Foi quando a cirrose matou o Mozart.

Poucos dias depois a Mariana com cólica menstrual voltou pra casa mais cedo. Morava no mesmo barracão em que viveu com o pai. Enfiou a chave na porta, a que estava por dentro caiu e quando entrou Hélio tentava enfiar a perna na calça e o Betinho também. Descobriu que o marido era homossexual. Casamento acabado. Até a dona Joelma concordou com a decisão dela.

Sozinha aos 20 anos, mas empregada e com o salário vivia. Para afastar a solidão tocava violão. Aprendeu com o pai ainda na adolescência. O Caçula cresceu muito rápido. Aos 12 anos tinha tamanho de moço de 16. Tinha um monte de irmãos que tocavam violão. Todos aprenderam com o Mozart. Ele não aprendeu.

O professor morreu e os irmãos não tinham paciência para ensinar. Cantava e cantava muito bem. Músicas do Roberto Carlos, Marcos Roberto, Ronivon, Wanderley Cardoso, Jerry Adriane, Nilton Cesar e até do Miltinho Rodrigues que poucos cantavam, ele cantava em tom original. Era amigo do Toim, filho da dona Maria e do seu José dos Reis. Um dia de sábado à tarde a Mariana estava tocando violão lá no barracão. Solava Férias na Índia, do Nilton César. Foi lá e cantou a música.

A partir daí ficaram muito próximos. A moça tímida, descasada e com o fogo dos 20 anos, viu naquele meninão o parceiro ideal: – “Já ficou com mulher?” – quis saber: – “Não, só beijei a Maria Alvina na boca” – foi sincero o menino: – “O que vamos fazer vai ficar só entre nós. Ninguém, nem o Toim pode saber” – explicou Mariana. E fizeram. Ficou em segredo. Todo sábado tinha cantoria e o frege. Foi quando o Harold apareceu.

Engenheiro da cidade de Barretos veio para auxiliar no projeto do primeiro edifício de Campinas, o Everest, que pode ser visto ainda hoje, lindo como sempre, na rua Rio Verde. Nesta época a Marcenaria do Zé português, já havia se transformado na Madeireira Lisboa e o Harold foi lá ver pisos cerâmicos para os apartamentos do prédio novo.

Se encantou com a Mariana. Viúvo sem filhos, 48 anos, andando de Maverick Branco, acabou balançando a estrutura da moça. Saíram numa sexta feira à noite e em várias outras. Mas ela continuava com a amizade colorida com o Caçula.

No final de novembro, quando acabou sua parte no projeto do prédio, o Harold pediu a Mariana em casamento. Ele mesmo pagou o divórcio com o Hélio. Só próximo da mudança para Barretos, onde se casou, Mariana contou para o Caçula. Tinha 14 anos e não sabia o quanto gostava daquela mulher.

Sofreu, mas nem assim contou pra ninguém. Dormia pensando nela e acordava de madrugada pensando nela. Olhos fundos e macambúzio, teve de superar a dor do amor perdido sozinho. Levou tempo, mas superou.

Em 1997, 23 anos depois, o Caçula foi surpreendido por uma mulher que parou um Ômega ao seu lado, na Praça Joaquim Lúcio, quando saía do trabalho. O Vidro foi abaixando e a motorista perguntou: “Ainda canta Férias na Índia?”. Todo trêmulo o Caçula respondeu: “Não. Não tem quem me acompanha com o violão”. Ela estava viúva e ele casado. Mais velha do que ele seis anos e mais nova do que o ex-marido 25, ela o convidou para jantar.

Contou a felicidade que foi o casamento sem filhos, o curso superior em Administração de Empresas, reencontro com a mãe e a irmã e da saudade que sempre sentiu dele. Ele contou do sofrimento para esquecer, dos outros namoro, do casamento com duas filhas. Após o jantar voltaram para a Praça Joaquim Lúcio, onde ele subiu na sua XL 250 R e saiu. Do encontro do outro dia no Castro’s Hotel, onde ela se hospedou ninguém soube os detalhes e nem se foi a última vez que se encontraram.