“A minha pele tem sentido próprio. Tem sentido. Minha pele alvo dos soldados, capitães do mato, subordinados à pele alva. Tem sentido?”. Imagine um lugar onde a arte se torna uma ferramenta poderosa de resistência e expressão, que promove a visibilidade da cultura afro-brasileira. Assim é o Orum Aiyê Quilombo Cultural, localizado em Goiânia, e fundados pelo artistas Marcelo Marques e Raquel Rocha.

Assista a seguir à reportagem de Johann Germano e André Martins, com produção de Rodrigo Fumaça e edição de Gilberto Toledo

“O Orum Aiyê surge de um sonho nosso, meu e da Raquel, de construir e de ter um espaço que fosse afrocentrado, no Centro-Oeste, no centro do Brasil, e criar protagonismo para a negritude”, afirma Marcelo.

“O Orum Aiyê surge dessa junção da minha caminhada enquanto artista visual e, na verdade multiartista, com a de Marcelo Marques, como artista circense, ator, também nessa caminhada extensa. Nós nos juntamos e idealizamos juntos um local onde a gente tivesse um território de aquilombamento, de protagonismo preto”, complementa Raquel.

Expressão da religião Iorubá Orum significa “sagrado”, e Aiyê, “terreno”. “Diferente dessa ideia cristã de que o céu está lá em cima e a terra está aqui embaixo, são só dimensões diferentes. Então o sagrado e o terreno estão aqui, cada um na sua dimensão, e nós convivemos com isso o tempo inteiro. Por isso esse espaço de aquilombamento se chama Orum Aiyê, porque nós acreditamos que aqui nós temos o sagrado e o terreno contribuindo no mesmo local”, explica Marcelo.

Com uma programação diversa e abrangente, o Orum Aiyê é, nas palavras da Raquel, uma grande e encruzilhada, regada no dendê e afiada por Exu. “Hoje a gente tem o bloco que é só de pessoas negras, onde a gente leva a cultura preta, a afrorreligiosidade para a rua, e isso é uma forma de territorializar não só aqui dentro, mas também a rua nos pertence. E a rua é um local onde acontece muitas das violências. Então a gente tem essas atividades que hoje se expandem para além das nossas paredes, o que nos deixa muito feliz”, diz Raquel.

Transformação

Matheus Alcântara á aluno bolsista do Orum Aiyê Quilombo Cultural (Foto: Sagres TV)

A caminhada do Orum Aiyê Quilombo Cultural começou em 2020. Em plena pandemia, o Marcelo e a Raquel uniram forças para erguer esse espaço. É um processo inspirador de aquilombamento, que transformou a vida do estudante Matheus Alcântara, mestrando e formado em Ciências Sociais.

“Eu me interesse porque eu precisava sair desse meio acadêmico também e tentar fazer essa procura dessa ligação com a arte. E então eu encontrei o circo, vim para o Orum Aiyê e desde então pratico todas as modalidades aéreas que têm aqui no espaço”, afirma Matheus, que já integra o Quilombo Cultural há dois anos.

“O Matheus é essa concretização do sonho do Orum Aiyê, de cada vez mais pessoas negras acessarem a arte, acessem locais de protagonismo preto e que possam construir, novos mundos pautados em diversas resistências, resiliências e alegrias”, afirma Raquel. “Ele veio conhecer o circo através do Orum Aiyê”, acrescenta Marcelo Marques.

E foi no Orum Aiyê que o Matheus encontrou apoio para o seu projeto: o “Sobre a Pele”. “Ele vai trazer um pouco dessa perspectiva sobre um homem negro, que possui diversas vivências, passa por diversas coisas, e a gente vai tentar trazer isso de uma forma um pouco mais artística, levando para o circo”, explica.

Modalidades aéreas com tecido são especialidade do Matheus, que aprendeu a técnica com o professor Marcelo Marques (Foto: Sagres TV)

Lugar de fazer cultura preta em todos os lugares

Peças de teatro como “Contos de Cativeiro”, exposições de arte como “As Matriarcas”, e blocos de carnaval, integram as atividades do Orum Aiyê. O local ganhou, no início de agosto, um novo espaço de aquilombamento, com a exposição “Aláfia no Trançar da Ancestralidade”, com esculturas têxteis da artista Rafaela Rocha.

“É uma ação do Orum Aiyê para repensar uma outra forma de artes visuais, de circuito de artes, que se paute em um afroafeto, que se paute no carinho, numa forma não violenta para uma pessoa negra poder se inserir. Hoje a gente sabe que é sintomático, o circuito de artes visuais é elitista, majoritariamente predominante de pessoas brancas, e aí a gente tem de pensar outras formas, e essas outras formas não podem percorrer locais de violências e silenciamentos”, pontua.

As cores do Candomblé estampam os orixás, como Oxalá, Iansã, Nanã e Iemanjá, divindades da religião Iorubá representadas pela natureza que, por sua vez, é afrocentrada, bem como o Orum Aiyê Quilombo Cultural, que possui raízes na cultura e na educação.

“O que nos diferencia enquanto seres humanos de outros animais é que somos capazes de produzir e reproduzir cultura. Então educação é um processo cultural. Tudo que a gente faz aqui dentro como arte e como cultura é um processo educacional, porque não estamos só produzindo uma forma de educação, mas estamos, a partir da cultura, transformando a educação e reafirmando-a para que possa reproduzida. Como eu disse no início, é isso nos torna seres humanos”, conclui Marcelo Marques.

“É nosso sangue nobre que a pele cobre. Tapa na cara para mostrar quem é que manda. Minha pele tem sentido, de geração em geração.”

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta matéria, o ODS 10 – Redução das Desigualdades.

Leia mais

Direito à educação: os desafios e o papel da educação nas políticas públicas no Brasil

Banco Mundial pretende levantar US$ 225 milhões para promover reflorestamento da Amazônia

Cientistas Brilhantes: estudante da USP resgata histórias de mulheres que contribuíram na ciência