Quando a fome encontra com o alimento não há como evitar a degustação. Valtinho Sabino foi um dos mais bonitos jovens campineiros daqueles anos de 1960. Nem o Vicente Ferreira era tão belo quanto ele. Olhos verdes, grandões, cabelos loiros mantidos abaixo dos ombros e tratados toda noite na toca de meia, que os mantinham lisos sem um fio espetado. Media 1,85 m de altura, com musculatura bem distribuída, graças à ginástica que fazia todos os dias com o Tarzan, na sua academia, na galeria das arquibancadas do Estádio Antônio Accioly. Boca carnuda, nariz fino pontiagudo, rosto arredondado, barba ruiva bem cuidada. Era o que as moças chamavam de pão… Poderia inclusive ser pão de ló que não haveria exagero.

O Vicente Ferreira era um rapaz belo, mas não fazia ginástica, embora tivesse corpo bonito naturalmente. Cabelo pretinho, cheio, sempre mantido cortado meia cabeleira. Também bocudo, lábios grossos, nariz meio achatado, rosto arredondado e pele morena quase mulata.

Ambos andavam de Vespa e isto era um detalhe fundamental. Moços de Vespa ou lambreta àquela época eram vistos com outros olhos pelas moças campineiras. Se fossem bonitos então, pronto! Era meio caminho andado para a derrocada feminina.

Sandra era bela, mas nada muito diferente de outras beldades vistas no vai e vem dos finais de semana pela Praça Joaquim Lúcio ou no dia a dia do Colégio Pedro Gomes. O pai israelense, Elias Tuffic, que veio para o Brasil apenas com o pai, Tuffic Abrahão, morreu cedo, aos 27 anos e deixou a Marilísia, com 22. Sandra tinha três anos. Até que a Marilísia soube tocar o Armarinhos Belém, que ficava na Avenida 24 de Outubro e dele viveu até alugar o imóvel para uma grande joalheria. Nunca se casou de novo, embora sempre mantivesse um namorado.

Sandra cresceu solta e namoradeira. Aos 12 anos já era vista pelas esquinas com jovens com pouco mais idade do que ela e aos finais de semana também era presença certa na Praça Joaquim Lúcio, pelo vai e vem. As mães faladeiras de Campinas previam que aquela moça não teria bom futuro. Marailísia nunca se incomodou com a falação.

Da Praça, era levada para casa por rapazes diferentes em cada final de sábado e domingo. Loira, olhos azuis como os do pai, cabelos longos, unhas pintadas, nariz e lábios finos, penas grossas, ancas largas e seios fartos. Alta, quase 1,70 m. Se não era um espanto em beleza, jamais poderia ser chamada de feia. Aliás, mulher feia em Campinas, desde aquela época, era raridade.

Quando o Vicente apareceu de Vespa, na Praça, num sábado, não perdeu tempo. Logo já saíram para uma voltinha. Não voltaram e domingo ela voltou na garupa da Vespa dele:

–  “Agora é namoro. Namoro sério. Moço bonito, educado, conversa boa, ainda toca violão e canta como poucos” – disse ela para a Glória, colega de aula, na segunda-feira.

Namoro sério que durou três meses. Descobriu que o Vicente tinha outras três namoradas e decidiu se vingar. Brigaram no sábado. Ele aproveitou para deixá-la na Praça e ir se encontrar com a Ana, irmã do Sancley, com quem cantava com frequência. No domingo, quando chegou à Praça, no início da tarde, logo ela chegou na garupa da Vespa do Valtinho Sabino, velho conhecido do Vicente:

– “Juntou a fome com o alimento” – pensou consigo mesmo o Vicente, que pedalou a partida da Vespa, acelerou e foi buscar a Ana para não ficar por baixo. O namoro do Vicente com a Ana durou pouco e não teve consequência. O da Sandra com o Valtinho dá uma história. Ficaram juntos por quase um ano, período com muitos términos e voltas. Numa destas vezes ele soube que ela andava com o Vicente às escondidas. Não procurou o conhecido para tirar satisfação, mas se afastou definitivamente. Começou o namoro com a Marines e em pouco mais de um ano estavam casados. Vieram os dois filhos, Valter Jr. e Vanderlei.

Marines era recatada. Criada pela Maria da Cruz e seu Geraldo para se casar. Esta sim era linda. Morena alta, pernas grossas, cabelos grandes, peitos grandes, boca que parecia ter sido pintada no rosto. Falava pouco. Era a melhor aluna do terceiro ano normal do Colégio Santa Clara, onde cantava no coral. Aonde ia estava acompanhada pelo irmão mais novo, o Serginho.

O namoro teve de ser pedido pelo Valtinho, que já ouviu o sermão que a moça era para casamento. Deu certo e no mês de maio, quando completou um ano e dois meses de namoro, aconteceu o casório, que agradou tanto aos pais, que o Geraldo comprou uma casa recém construída na rua Rio Grande do Sul e presenteou os dois.

Casado com a moça bonita de boa família, o Valtinho Sabino sumiu dos embalos campineiros. Vendeu a Vespa e comprou um DKV. Abriu a Tipografia Decolores e passou a viver a vida de chefe de família. Além da Tipografia, era envolvido com um povo do MDB e, graças a isto, boa parte dos impressos da prefeitura era feita na sua gráfica, a mando do prefeito Iris Rezende. Valtinho era amigo de um certo Iram, que foi vereador, deputado, senador e se tornou um dos mais respeitados políticos goianos, o Iram Saraiva.

Parecida tudo certo, só que as más línguas campineiras, que normalmente sabiam de tudo, diziam que o homem que continuava bonito, continuava custoso:

– “Coisa dessa gente faladeira” – dizia, quando apertado pelo sogro ou pela esposa.  

Quando a Sandra apareceu grávida as primeiras suspeitas recaíram sobre o Vicente. Embora não negasse que deu suas escapulidelas com a moça, ele garantia que a gravidez não lhe pertencia, pois a última saída já passava de seis meses:

– “Esse Vicente é esperto. O filho deve ser mesmo dele” – era o que diziam as línguas faladeiras do bairro. Sandra salvou o rapaz:  

– “Ele está falando a verdade, o filho não é dele” – afirmou, sem contar quem era o pai. O menino nasceu loiro, de olhos claros – características que a mãe tinha. Mas de tanto a Marilísia apertar, Sandra contou que o pai era o Valtinho Sabino.

Foi o maior bafafá! Campinas inteira não falava noutra coisa. Nem a eleição que se aproximava era assunto tão quente quanto o filho da Sandra. O Geraldo quis até matar o genro, mas a própria filha o acalmou:

– “Não vou deixar meu marido por causa disto. Ela arrumou um bucho com um homem casado e vai criar o filho sozinha. Meu marido é meu. Meus filhos têm o sobrenome dele, eu tenho o sobrenome dele e é na minha cama que ele dorme. O problema não é meu, é dela” – falou contundentemente ao pai.

Geraldo ficou convencido, mas só a palavra da esposa Maria da Cruz colocou uma pá de cal no assunto:

– “Os tempos são outros. Ele não deixa faltar nada para nossa filha e nem para os nossos netos, não maltrata nenhum deles, é carinhoso com a família. Vai muito bem nos negócios. Não há dúvida que o Iram vai ganhar para vereador e vai continuar dando suporte para os bons negócios com a prefeitura. Acabar com o casamento da nossa filha por isto é bobagem. Além do mais, ela gosta demais dele e não pensa na separação” – concluiu a esposa, acalmando de vez o Geraldo.

A vida de mãe não agradou Sandra e, no primeiro momento, Marilísia não aceitou ficar olhando o neto para a filha voltar a sair e circular aos finais de semana. Já não bastava sustentar os dois. O menino, batizado de Elias Tuffic Neto, já estava com seis meses quando Sandra apareceu com ele em um carrinho de bebê, na porta da casa da Marines:

– “Vim te entregar o filho do seu marido. Não sou obrigada a cuidar dele sozinha” – foi o que disse ao ser recebida no portão.  

O que ela não contava era com a mão da Marines no meio da cara, seguida de outros tantos sopapos. Sorte da Sandra que o Serginho estava visitando os sobrinhos, o mais velho, seu afilhado, e apareceu ao sentir lá de dentro da casa o movimento do lado de fora. Serginho segurou a irmã, que ainda falou:

– “Crio os meus dois filhos, que meu marido também ter certeza que são dele. Quem disse que quero criar o seu? Filho de puta não tem pai. Abriu as pernas para o homem errado, agora acha que vou cuidar do seu filho para você ficar livre e solta na vida outra vez? Vai ter de cuidar deste e de quantos mais arrumar. Do meu marido você não tira um centavo. Caia fora daqui”, disse.

Foi o que Sandra fez, com a cara inchada e o cabelo despenteado. Saiu empurrando o carrinho, aos prantos, de volta para a casa.

A única consequência foi que Sandra passou a falar mal do candidato Iram Saraiva, mas isto não afetou em nada a candidatura. Ele foi eleito vereador e Valtinho continuou tendo bom volume de impressos da prefeitura, na Tipografia Decolores, até a cassação do mandato do prefeito Iris Rezende.

Marilísia acabou criando o neto melhor do que criou a filha. Depois de adulto e advogado, ele abriu um processo e teve a paternidade reconhecida pelo Valtinho.

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