Seu João Marques, dono da venda, era uma das figuras mais populares da cidade de Campinas. Conhecia todo mundo, justamente por ser na sua venda que as pessoas compravam ferramentas, ferragens, tecidos, armarinhos, sal, açúcar e, para sintetizar, de tudo. Até máquina de costura ele vendia.

Recebia as encomendas do Porto de Santa Rita, do Rio Paranaíba, que mais tarde se transformou na cidade de Itumbiara. Naquele começo de tarde de terça-feira, na segunda semana de setembro de 1933, chegou seu xará, João Ferrolho, que andava culiado com a turma que já cuidava do início da construção da Nova Capital.

Na entrada da venda tinha uma caçamba e, em volta dela, as estacas onde se amarravam os cavalos. João Ferrolho deixou o cavalo beber água na caçamba e só depois apeou, amarrou o animal e caminhou venda adentro. Casa vazia naquela hora do dia.

O piso de baldrame ajudou João Marques a saber quem vinha lá. Ferrolho tinha uma perna mais curta do que a outra e o repicar dos seus passos na madeira o identificava. Era um toque-toque diferente, com um intervalo intercalando um espaço maior a um menor. Foi isto que fez o vendeiro ir ao encontro do visitante.

– “Que surpresa agradável. Desde que anda metido com este povo rico do Dr. Pedro que o amigo sumiu”, adiantou simpaticamente o vendeiro.  

– “Trabalho, meu caro amigo. Tudo o que o Dr. Pedro destina aos amigos é trabalho”, respondeu o manco.

Nos fundos da venda, à esquerda do balcão, tinha uma mesa com algumas cadeiras. Foi lá que os dois João se sentaram para a conversa. O Ferrolho pediu ao Marques a indicação de um bom carapina, para construir um sobrechedeiro para o lançamento da Pedra Fundamental de Goiânia.

– “O Paraíba. Este é o homem que anda fazendo todo o madeiramento dos telhados e os baldrames das casas campineiras. Este baldrame da venda foi ele que refez. Tudo na tábua de Mandiocão. Não empena nunca”, fez a indicação com segurança o comerciante.

Menos de meia hora depois, chamado pelo Zequinha, filho mais velho do dono da venda, Joaquim Alípio da Conceição, o Paraíba, estava no estabelecimento.

Sujeito baixo, entradas grandes na cabeça chata, cabelos enrolados, cortados curtinhos, nariz esparramado pela cara, boca grande, lábio fino. Gordo, voz grave e forte, sotaque nordestino preservado. Calça de algodão comprada da Tiana Tecelã, que também foi quem tirou as medidas e costurou. Camisa do mesmo tecido, com a mesma origem. Botina do pé direito, cortada próximo ao bico, para o calo no dedinho não ser apertado. A conversa foi breve.

– “Dia 24 de outubro o Dr. Pedro vem para o batismo cultural. Não pode haver atraso. O acontecimento vai comemorar os três anos da Revolução. Vem até representante do presidente Getúlio Vargas”, falou o contratante.

O Paraíba topou na hora. Preço acertado e prazo para a próxima segunda-feira, o serviço começar. João Ferrolho se despediu, mancou até a estaca onde o cavalo estava amarrado, acertou o pelego, subiu no estribo, pulou para o lombo do alazão e saiu em marcha picada, de volta para o sítio, onde Goiânia seria construída.

Joaquim Alípio da Conceição estava em Campinas havia quatro anos. Chegou em 1929, tentando um emprego de carapina, na Igreja Nova da cidade de Trindade, que ele não conseguiu. Além de ser bom no que fazia, tocar bem a oito baixos e fazer bom repente, pouco se sabia sobre ele.

Para o João da venda, ele contou que matou um sujeito no sertão paraibano. O homem não o deixou casar com a filha e depois a moça se negou a fugir com ele. Veio para Campinas só e só vivia. Animava as festas nas fazendas das proximidades e trabalhava na cidade.

Em 1930 estava pensando em ir para Araguari – o serviço andava pouco na cidade goiana, mas o João Marques contou que o interventor Pedro Ludovico poderia decidir que a nova capital, seria construída no município de Campinas. Entendeu que, se isto acontecesse, teria muito serviço em pouco tempo e naquele dia, sua antevisão estava confirmada.

No domingo pela manhã montou a caixa de ferramenta com serrotes, formões, grosas, enxós, facões, talhadeiras, machados, machadinhas, plainas e as duas serras colocou no carroção, pôs a coalheira na mula Princesa, desceu a cela sobre seu lombo, subiu e rumou para o local da empreitada. Quase um dia de marcha. Era tanta ferramenta que a Princesa teve dificuldade para puxar o carroção na subida, depois de atravessar o Capim Puba. Era um espigão que começava na beira do córrego e ia até o lugar aonde o bailéu deveria ser levantado.

O sol já ia longe quando o Paraíba chegou, onde hoje está a Praça Cívica. Muito mato em volta, mas de moitas baixas. Várias moradias improvisadas foram vistas a partir do descampado, reservado para o aeroporto da nova cidade. Grande parte delas com carros de bois, ou carroções servindo de bases para as barracas cobertas por tecido de algodão grosso. Alguns dos embarracados já trabalhando para o governo, nos preparativos para as construções que a nova capital iria necessitar os outros esperando para trabalhar também.

Lá do outro lado, um barracão de madeira, coberto por palha de babaçu chamava a atenção. Edificação grande que abrigava os que comandavam os serviços preliminares.  Foi pra lá que o Paraíba tocou a Princesa. Como prometido, João Ferrolho esperava por sua chegada.

O local para o carroção estacar já estava demarcado. O Paraíba quedou o veículo carregado e foi soltar a princesa, no piquete da beira da mina, onde hoje está o Fórum de Goiânia. Quando a lua cheia chegou, a barraca já estava armada e a matula trazida de Campinas foi passada para a barriga. Antes das nove da noite tomou banho na bica da mina, no pasto onde a Princesa estava junto com outros animais, voltou para a barraca e foi dormir.

Na segunda-feira, dia 15 de setembro, às seis horas da manhã o Paraíba iniciou a empreitada. João Ferrolho lhe apresentou Zé Matias, Melquíades e Juvenal – os três badecos solicitados no dia do acerto, mostrou o local que já estava roçado e o sobrechedeiro começou a ser construído.

No que o Ferrolho providenciou, já havia angicos para aprumar a construção. As toras foram lapidadas e lavradas, ficando quadradas. Ao todo, nove peças: seis de oito braças de altura, três de 10. Foram fincadas passos distantes uma da outra. As maiores no meio das outras. Lá em cima, as vigotas, também de cerne de angico, travadas com ferragem um espigão ao outro. Os três do meio davam a descaída necessária para os caibros, ligados pelos tarugos.

As telhas de bica vieram da Olaria do Chico Italiano, já de Trindade, trazidas em carro de bois. Nos lados, tábuas como se coloca no curral, davam segurança para quem estava em cima, sem tirar a visibilidade. No fundo, também cercado por tábuas de curral, foi feita a escada de acesso do lado direito – Ferrolho explicou que o Dr. Pedro não gostava de nada feito pelo lado esquerdo.

A três metros do chão foram colocadas mais vigotas e sobre elas, fixadas com pregos de oito centímetros, vieram as tábuas do piso.

No dia 21 de outubro o supedâneo estava pronto. Foi o dia em que o Ferrolho apareceu por lá com o sujeito que chegou de automóvel, um certo Dr. Attilio, arquiteto e urbanista que projetou a nova capital. Homem fino que elogiou o trabalho do Paraíba.

Foi de cima do sobrechedeiro que ele mostrou para o carapina como seria a cidade. Para os fundos da edificação ficaria o Setor Sul, para o lado esquerdo o Setor Oeste, e à frente, até o descampado para a construção do Aeroporto, o Setor Central. Depois do Setor Central, no lado norte, o Bairro Popular. Cidade grande, que comportaria 50 mil habitantes.

– “Antes deste tanto de gente estar morando por aqui, a nova capital já terá emendada com Campinas e as jardineiras serão necessárias para trazer o povo de lá pra cá, e levar os daqui para lá. Bem aqui serão construídos os prédios que comporão o núcleo do poder – um Palácio que vai ocupar bem mais do que o terreno utilizado para este bailéu, o Palácio das Esmeraldas, com acabamento em pedras verdes, onde vai morar o governador. Ao fundo, teremos um prédio de 10 andares, que abrigará as secretarias do governo. No último estará o gabinete do governador. De lá será possível ver toda a extensão dos quatro setores de Goiânia. Vai se chamar Centro Administrativo, com elevadores modernos como os já vistos na Europa”, adiantou Attilio Corrêa Lima, muito entusiasmado e bem observado pelo Paraíba, Ferrolho, Zé Matias, Melquíades e Juvenal, completando:

– “Será uma cidade bem interligada por ruas grandes e avenidas estruturantes. Pontes cobrirão os rios. Há previsão de três bosques e, num deles, vamos ter um zoológico. Aqui na nossa frente, teremos uma avenida de duas pistas, com ilha no meio, homenageando o Estado, a Avenida Goiás, que estará ladeada, por outras duas grandes, sem a ilha central, abrindo em leque por mais de mil metros de distância. Estas avenidas homenagearão dois grandes rios goianos, o Araguaia e o Tocantins. Lá onde elas desembocarão, outra grande avenida vai homenagear outro Rio, o Paranaíba. Olhando de cima do Centro Administrativo, as Avenidas Goiás, Tocantins e Paranaíba vão ter a estética do véu de Nossa Senhora” – apontou o arquiteto, observado sem ser interrompido pelos outros cinco. Neste ponto, o Paraíba, com os olhos brilhando, quis saber:  

– “Nossa, mas precisa de tanta avenida grande assim?”, perguntou.

– “Sim e da maior delas nem falei ainda. Vai sair de Campinas e cortar a cidade até o Córrego da Fazenda Botafogo, podendo, no futuro, ser estendida até onde bem convier para Goiânia, a Avenida Anhanguera. Duas pistas largas, ilha com palmeiras no meio” – respondeu Attilio Corrêa Lima, que também tinha um brilho inconfundível no olhar e concluiu:

– “Nas margens de todas as ruas e avenidas de Goiânia teremos uma infinidade de Flamboyants, que florirão em amarelo e vermelho o ano todo e darão sombra e qualidade para o ar”.

Neste ponto da conversa, João Ferrolho lembrou o arquiteto do compromisso no barracão, com os responsáveis pelo roteiro do cerimonial. Os dois se despediram do carapina e seus auxiliares, e se foram.

O Paraíba foi para sua barraca, sonhando com a grandiosidade da nova capital, com 50 mil pessoas morando nela. Por lá ficou até o dia 24 de outubro, vendo gente chegar de tudo quanto era canto, de automóvel, a cavalo, em carroças e charretes, para a solenidade. Quando o dia chegou, viu o sobrechedeiro que construiu lotado de gente bem vestida. Assistiu à missa rezada pelo Padre Agostinho Foster, com a participação do Coral Santa Clara, que ele já conhecia, lá do Colégio que tinha o mesmo nome, em Campinas, e depois ouviu o discurso do interventor Pedro Ludovico Teixeira, encerrado com emoção:

– “Prevejo que dentro de cinco anos grande porção desta área destinada à futura cidade estará coberta de luxuosas e alegres vivendas”.

Dito isto, o próprio Dr. Pedro pegou a foice e começou a roçar o mato em volta. Todos os homens presentes, inclusive Joaquim Alípio da Conceição, acompanharam o interventor e em pouco mais de três horas todo o terreno aonde hoje está a Praça Cívica, Palácio das Esmeraldas e o Centro Administrativo estava pronto para receber as novas construções.

No dia seguinte, caminhões chegaram carregados de material e ferramentas. Carros de bois, carroças e carroções transitavam de um lado para o outro carregados do que era retirado para dar lugar as ruas e aos prédios. Bois puxavam equipamentos que plainavam as ruas e homens apressados iam transformando o cerrado goiano, na cidade que comportaria 50 mil habitantes.

O Paraíba ainda voltou em Campinas para buscar os outros pertences. Nem viu o sobrechedeiro que construiu ser derrubado para dar lugar ao Palácio das Esmeraldas, mas foi indicado pelo João Ferrolho para trabalhar como carapina na obra da moradia do governador. Nenhum dos dois tem o nome registrado nos relatos da construção de Goiânia. Outros tantos também não têm. Mas isto não os fazem menos importantes para a metrópole que hoje abriga bem mais que os 50 mil habitantes que o Dr. Attilio previa.

A todos os trabalhadores anônimos que ajudaram a construir Goiânia dedico esta crônica.

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