Campinas é um bairro político. Tradicionalmente de contestadores. A professora Inês Antunieta dizia que isto nasceu com fundação de Goiânia – embora se julgando contemplada com a vizinhança com a nova Capital, os moradores não gostaram de ver a cidade transformada em bairro. A maioria não acreditava que um dia desaparecessem as fazendas, sítios e chácaras que ficavam entre o local escolhido para abrigar o Palácio das Esmeraldas e o Centro Administrativo, com o núcleo nervoso campineiro, que ia da Praça Coronel Joaquim Lúcio à Praça da Matriz.

Em 1935, Campinas basicamente se concentrava numa faixa com menos de mil metros de largura, da Rua José Hermano, ao Ribeirão Anicuns, por três quilômetros de comprimento, da Avenida Anhanguera à estrada que dava acesso ao Morro do Além. Antes da Anhanguera existiam chácaras e fazendas, o mesmo ocorrendo após o Anicuns, depois da estrada que levava ao Morro e antes da Rua José Hermano.

Neste espaço ficavam o Centro, Vila Regina e Bairro Bonfim. Foi após a fundação de Goiânia que apareceram as Vilas Coimbra, São José, São Paulo, Operária, Abajá, Santa Helena, Capuava, Setor Perim, Gentil Meirelles, Vila Fama e o Setor dos Funcionários Públicos. Do outro lado do Capim Puba nasceu o Setor Aeroporto. Passado o Setor Aeroporto, já vinha o Centro de Goiânia.

À medida em que estes novos bairros foram surgindo à antiga cidade, foi emendando com a nova Capital. Mas até hoje o campineiro autêntico, quando tem de atravessar o Capim Puba para ir ao Centro de Goiânia, nunca diz: “Vou ao Centro”, ele fala: “Vou lá em Goiânia” – até hoje Goiânia é outra cidade para o campineiro raiz.

A Praça Joaquim Lúcio, Praça da Matriz e Cemitério do Bonfim, que ficavam na sequencia da José Hermano em direção à estrada para o Morro do Além, eram os marcos da velha cidade. Tudo o que foi construído em Campinas foi erguido em volta destes marcos. “Convencer os velhos sobrenomes campineiros que um dia Campinas emendaria com Goiânia, com uma casa atrás da outra não era tarefa fácil” – dizia rindo, a simpática professora.

Era uma negra, alta, nem gorda e nem magra, de uns 40 anos. Usava os cabelos alisados, sempre presos, com um coque no alto da cabeça. Boca grande, voz grave e doce – era linda. Dona de sabedoria rara. Também nunca mais vi ninguém com a capacidade para ensinar que aquela negra bela tinha.

Quando a conheci, dava aulas em dois grupos: Damiana da Cunha, no período matutino, e São João Batista de La Salles, no período vespertino. As duas escolas, na Rua 504, da Vila Operária, estavam separadas por uma quadra. O Damiana da Cunha, um grupo escolar municipal, continua lá, na rua Monselhor Confúcio (trocaram o nome da rua), o São João Batista de La Salles, que funcionava no prédio do Centro Espírita Eurípedes Barsanulfo, deixou de existir em 1973. A casa religiosa preferiu revogar o convênio com a prefeitura, para ter maior espaço para a realização das suas tarefas de assistência social e espiritual.

No Damiana da Cunha, dona Inês dava aula para a terceira série e no São João Batista de Las Salles, para a quarta. Foi minha professora no São João Batista de Las Salles.

Além do nascedouro da contestação campineira, aprendi com ela que “não cabem sonhos na cabeça cheia de medo”. Foi quando me orientou para participar de um concurso nacional de redação, promovido pela Receita Federal, sobre o imposto de renda. Foi distribuída uma cartilha, com linguagem lúdica, mostrando, da forma como convinha para o governo militar, o que era o imposto de renda. Uma formiguinha narrava a estória, passada na saúva, onde quem tinha grande quantidade de bens pagava uma parcela média, para a direção do formigueiro, quem tinha patrimônio médio (nem grande e nem pequeno), pagava uma parcela pequena e quem tinha pequeno patrimônio não pagava nada:

– “Você deve participar. Será bom ter nossa escola representada neste concurso” – me estimulou a professora querida.

– “Tenho medo. Entro nisto, minha mãe descobre e vai contar para o bairro inteiro. Vou concorrer com alunos das escolas primárias de todo o Brasil, a chance de ganhar é mínima e arrumo um problema com a minha mãe” – respondi.

É que minha mãe era excessivamente coruja. Filho caçula de uma manada de 11, nascido quando ela já tinha 43 anos, era excessivamente valorizado nos dons que tinha e escrever era um deles. Se não ganhasse o concurso ela arrumaria algumas desculpas para dizer que foi o resultado foi injusto. Já meu pai entendia melhor que meus dons não eram nada além de dons e que não me faziam diferentes de ninguém.

– “Não conta para sua mãe antes do anúncio do resultado. Se ganhar ela vai poder desfrutar da alegria da sua conquista, se perder ela não fica sabendo e não sofre com isto” – propôs a professora, completando: “Não cabe sonhos numa cabeça ocupada pelo medo”. Nunca mais me esqueci disto.

A escola me inscreveu no concurso. Como bom campineiro, da Vila Operária, escrevi uma redação contestando porque alguém tem de pagar imposto sobre o que ganha, uma vez que já trabalha para ganhar. Levando em consideração que estávamos em plena vigência do regime militar, instaurado em 31 de março de 1964, meu texto não tinha o perfil do que queriam os idealizadores do concurso. Pelo menos é o que penso até hoje.

Não sei por que carga d’água fui contemplado com o primeiro lugar. Mas uma coisa eu sei: Por causa da dona Inês, sou jornalista. Aquele concurso matou meu medo de me inscrever nos outros 31 que participei, com contos, poemas, crônicas e redação, ganhando todos. Foi por isto que acabei contratado pela Jornalista Maria José e Silva, colunista social, a mais expressiva entre todos que exerceram esta função em Goiás, para redigir a página que assinava no jornal O Popular.

No dia que a escola recebeu o comunicado do resultado do concurso, dona Inês me esperou no corredor de acesso à classe. Me deu um abraço bem apertado. Com os olhos cheios de lágrimas e o orgulho brilhando no sorriso me brindou com outro ensinamento:

“Mesmo que o vento esteja soprando contra, a vida vai estar sempre a favor de quem se atreve” – falou com a voz grave e aveludada, sem me contar o que se passava. O resultado foi anunciado no pátio, com a diretora Vitória me chamando à frente e contando o que havia acontecido. Recebi aplausos, abraços. Ganhei como premiação, uma coleção da Enciclopédia Barsa, com a estante onde ficavam os muitos livros e passaporte para frequentar por um ano, com dois acompanhantes, o zoológico.

Mas minhas maiores premiações, foi saber que “não cabem sonhos numa cabeça cheia de medo” e que “mesmo que o vento sopre contra, a vida vai estar sempre a favor de quem se atreve”. Confesso que não sou um sonhador, mas não ocupo minha cabeça com medos e não tem como negar o quanto sou atrevido.

Mas voltando à vocação política campineira, ainda hoje o lugar se transforma em época de eleição. Sempre com índole contestadora. Naquela época os muros ficavam cheios de nomes de candidatos, os postes, árvores e coqueiros repletos de cartaz com a foto dos que estavam disputando a eleição. Todo carro tinha o nome dos candidatos preferidos pelo proprietário. Muitos do MDB, pouquíssimos da ARENA.

Nomes de oposição ao governo militar, como Iris Rezende, Iran Saraiva, Tobias Alves, João Divino Dornelles, João Silva Neto, Daniel Antônio moravam lá e de lá, antes de alguns terem os direitos políticos cassados, já saíam eleitos, nos pleitos. Três arenistas também moravam lá e de lá sempre saíram eleitos: Trajano Guimarães, Bráulio Moraes e José Luciano.

Foi num dia de eleição que se passou a história com a Lili, cachorrinha da Margarida Sasinhora com o cão do Verdugo.

Margarida era um solteirona chique, que morava na Rua Rio Grande do Sul. O Verdugo era um pinguço que andava pelas ruas, com um cachorrinho vira-latas preto, que ele chamava de Parceirinho. Todos no bairro conheciam o Verdugo. Já Margarida não era tão conhecida, mas tinha suas amigas e quando encontrava com estas, era uma falação interminável. Andava cheirosa, elegante e levava a Lili, uma Pequenez branca, com manchas marrons nos quartos traseiros, pela coleira, aonde ia. Quando encontrava água na trajetória, Margarida pegava a Lili no colo – Lili nunca colocou as patinhas na água de rua.

Dia de eleição. Margarida votava no Colégio Pedro Gomes, onde estacionou na calçada, o Verdugo, acompanhado pelo Parceirinho, para ver se ganhava algum dinheiro dos votantes e ganhou.

Fila grande. Margarida chegou logo após a Brigite, que havia casado há pouco com o Filomeno Pignário. Brigite virada de costas para o início da fila, lá na frente, travava um bate papo animado com Margarida. Quando Margarida deu por conta, viu o que jamais imaginou. Lili estava engatada ao Companheirinho, como um vagão no outro. Puxou e nada de separar. Pegou a Lili no colo e o Companheirinho foi pendurado. Os dois animais gritando de dor. Passos largo até chegar ao Verdugo:

– “Desmancha isto aqui agora” – ordenou a madame.

– “Está Maluca dona. Isto aí é confusão pra mais de uma hora – respondeu Verdugo, com bafo de cachaça.

Brigite que veio atrás deu a ideia de deixar a Lili sobre a responsabilidade do Verdugo, enquanto votavam. Como a fila estava grande era possível que a cachorrada do Parceirinho com a Lili terminasse nesse tempo. Assim foi feito. Quando conseguiram votar as duas saíram e o verdugo estava lá fora segurando a correntinha que prendia Lili à coleira. Margaria pegou a cadelinha no colo, iniciou um pranto incontido e saiu a passos largos, pela Rua Benjamim Constant, rumo a Rio Grande do Sul.

Foi vista várias vezes com a Lili, barrigudinha, andando pelas ruas campineiras. Os dois cachorrinhos nascidos, foram doados para a Laura e a Elza, ex-colegas de aula.