Chico Vermelho, Elaine e Redondo: um detalhe não esclarecido

Se existe uma coisa que o bairro teve, a partir do final de 1964, foi gente estranha. Apareciam pessoas com sotaques de todos os jeitos misturando o “uai” com o “oxente”, o “baá” com o “meu” e por aí afora. 

Por si só, Campinas já era cheia dos seus personagens diferenciados: Paula Papuda, Maria Macaca, Parrudinho, Ivaô, Saravá, Negão de Cima, Negão de Baixo, Zé Barriga, além dos alemães, japoneses, italianos e turcos (valendo para sírios, libaneses, árabes, israelitas – em Campinas todos eles eram chamados de turcos). 

Mas a partir do final de 1964 apareceram estes novos estranhos. Normalmente com muito domínio do conhecimento, com poucas palavras, poucos amigos e nomes comuns. A maioria é José alguma coisa. Mas tinham muitos João, Jorge e Francisco. Esta história é de um Francisco. 

Branco, com a cara sardenta e cabelo vermelho. Baixo, gordo e de poucas palavras, como a maioria dos que apareceram nesta fase. Trabalhou como mecânico na Oficina Nossa Senhora das Graças, do Luizão, na Rua do Comércio, quase esquina com a Ipameri, na Vila Operária. Trocava molas de caminhão, na época um serviço que poucos faziam. Terminava a tarefa do dia, nunca ia para o espetinho do Dito Frausino comer churrasquinho de gato e beber cachaça com os outros trabalhadores da oficina. Luizão não deixava ninguém levar cachaça para o interior do galpão. Quando o expediente terminava, a turma estava sequiosa para tomar a pinga do Dito e, de quebra, comer o espetinho, que enfumaçava a vizinhança. 

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Só o Chico Vermelho (foi assim que ficou conhecido) não almoçava em casa. Trazia sua marmita. Os outros moravam na Vila Abajá, Santa Helena, Irany, Isaura, Setor Bonfim, e iam almoçar com as famílias. A maioria de bicicleta, mas tinham os que possuíam vespas e lambretas. 

Na identidade apresentada, Chico Vermelho era nomeado por Francisco Moreira da Silva, natural de Bauru-SP, nascido em 1940. Lá também tinha o nome de Maria Moreira Silva como de sua mãe e constava pai desconhecido. 

O trabalho na oficina do Luizão durou mais de um ano. Saiu para trabalhar na manutenção dos vagões da Estrada de Ferro, na Estação Ferroviária da Vila Abajá. Mudou para a Rua 5, bem pertinho do local de trabalho. Lubrificava, desempenava, apertava parafusos, trocava peças desgastadas. Foi lá que ele conheceu a Eliane. Era costureira, ao lado da mãe. 

Ele levou um tricoline marron e um tergal preto para fazer uma calça e uma camisa. Dona Dorvalina, a mãe, pediu à filha para tomar as medidas do jovem e ficar responsável pela encomenda. Dois dias depois, Chico Vermelho voltou para experimentar. Quando foi buscar a roupa pronta, a moça perguntou se já tinha visto o filme “E o Vento Levou”.

– “Não”, respondeu o Chico. “Só tenho tempo aos domingos e tenho preferido descansar. Meu trabalho é muito pesado” – concluiu o Gordo.

– “Também não” – deu o toque pouco discreto a Eliane. “Mas estou louca para ver. Também só tenho tempo domingo, o que me falta é companhia” – terminou, quase implorando o convite. 

Não era bonita. Menos gorda do que ele, mais baixa, morena, olhos pequenos, boca, peitos e bunda grandes, coxas desproporcionalmente grossas e cabelos crespos. Naquele momento estava com um vestido amarelo claro de tergal, com um jaleco branco por cima, com bolsos comportando giz, fita métrica, porta agulhas e dedal. Tinha ainda um lápis enfiado no coque do cabelo. Chico entendeu o recado:

– “Sua mãe concordaria?” – quis saber o moço. “Afinal, ela quase não fala”.

– “Vai ter de pedir a ela, mas já disse que queria ver o filme e ela me disse que no domingo poderia ir. Só não toquei no assunto da companhia” – argumentou Eliane, alimentando esperança.

Após a última experimentação da roupa, a camisa continuava apertada na barriga. Na tarde de quinta-feira, quando voltou para pegar a roupa, Chico já foi recebido por Dona Dorvalina. Desta vez, a camisa ficou perfeita e quando foi pagar ele falou com a mãe sobre a intenção de ir com a filha assistir “E o Vento Levou”.

Viviam as duas. Apesar da filha de 16 anos, Dona Dorvalina tinha apenas 40. Ficou viúva quando a menina tinha sete. O marido, Eugênio Sapateiro, morreu assassinado, numa roda de carteado, lá pelas bandas da Fama. Vendeu as ferramentas de consertar sapatos e criou a filha costurando. Aos 14 anos, Eliane já tinha o diploma de corte e costura do Salão São Saloni. Passaram a costurar juntas. Eliane estudava no Colégio Pedro Gomes e cursava a quarta série ginasial matutina. 

– “Somos só nós duas. Sou viúva. Nunca quis arrumar homem para dar bom exemplo para ela. Nem tenho um menino de confiança para mandar com vocês”– explicou a mãe, preocupada.

– “Fica tranquila, Dona Dorvalina. Também fui criado apenas pela minha mãe. Sou rapaz do trabalho, que nem tempo para estudar tenho” – respondeu o Vermelho, mais vermelho do que nunca. “Não vou aproveitar a confiança para fazer nada de mal para a Eliane”. 

No domingo de agosto de 1965, Chico e Eliane foram ao Cine Eldorado assistir ao filme. Ele estreando a roupa nova. Seis meses depois, pediu a mão da moça em casamento e em maio de 1966 se casaram. Cerimônia simples, com o Ronaldão, que era da Guarda Ferroviária, e a Violeta, bilheteira na Estação, sendo os padrinhos do Chico. A Eliane convidou um casal de primos. Por pedido dele, o casamento se deu no Cartório Antônio do Prado, na Praça Joaquim Lúcio. A mãe dele não veio. Chico alegou que a carta comunicando o casamento não deveria ter chegado  – carta não chegar ao destinatário era comum na época. 

Em junho de 1967 nasceu o primogênito Eugênio Anastácio Leite Neto, nome que homenageava o pai da Eliane. Branco, sardento, cabelo vermelho como o pai e gordo como o pai e a mãe. Risonho. 

Foi para a escola com seis anos, em 1972. A idade certa para entrar no pré-primário, era sete anos, mas quem fazia aniversário até junho, podia ser matriculado ainda com seis, no ano que completasse os sete. Inteligente como o pai, o menino brilhava no Grupo Escolar Victor Coelho de Almeida. Era o xodó da professora e um dos mais queridos dos colegas. Foi ali que ele ficou conhecido como Redondo. 

Nem o nascimento do filho nem a simpatia do menino tornaram Chico Vermelho mais sociável. Vivia recluso e a vida era do trabalho para casa e vice-versa. Sua diversão era ouvir jogos no rádio Motorola de capa marrom. A única ida ao cinema com a Eliane foi no primeiro encontro. 

Sempre que ela perguntava pela mãe, ele respondia que teria de ir a Bauru saber o que houve. Ela continuava costurando para fora, mas ele nunca interagia com a clientela. Redondo, sim, era conhecido e querido por todos. 

A família vivia uma vida feliz. Nada de desavença no lar, nada de reclamação. Convivência pacífica com Dona Dorvalina, que paparicava o Redondo mais que o necessário. Até a falta de informação sobre a família do marido deixou de preocupar a Eliane:

–“Quando quiser, me conta” – pensava ela. 

Nunca contou. No final de novembro, Redondo entrou em férias escolares. Os alunos da escola se matriculavam no mês de dezembro, para assegurar a vaga. Na primeira segunda-feira de dezembro, Chico Vermelho levou o boletim do Redondo com ele para o trabalho. 

O Grupo Escolar Victor Coelho de Almeida, que continua onde sempre esteve, ainda hoje, fica a uma quadra da antiga Estação Ferroviária de Campinas. Chico disse para a esposa que faria a matrícula do filho, entre um serviço e outro. As coisas lá estavam tranquilas, como normalmente acontecia nos finais de ano. 

Comunicou ao Ninho Barros, seu chefe, que iria ao Grupo matricular o filho e saiu de macacão mesmo. Desceu pela Rua 5 para pegar a Benjamin Constant. Antes de ganhar a rua de acesso ao grupo, em um lote baldio, que a molecada transformou em campo de futebol, parou do lado dele uma Veraneio azul clara. Dona Maria Cássia, que morava em frente e notava tudo que se passava pelas redondezas, para dar notícias para a vizinhança depois, viu quando um dos dois homens de terno, que desceram do carro falou: 

– “Renatão, enfim te encontramos em rapaz” – a fofoqueira ainda contou que os dois apontavam o revólver para o Chico Vermelho, que não esboçou nenhuma reação, antes de entrar no carro, no meio dos dois no banco traseiro. No banco da frente havia outros dois, também de terno – um dirigindo e o outro no banco da direita.

Foi a última vez que Chico Vermelho foi visto. Elaine procurou e o máximo que soube foi que o nome não era Francisco Moreira da Silva, mas também não conseguiu confirmar se realmente era Renato. Também soube muito vagamente que se tratava de um gaúcho, estudante de engenharia mecânica, que se meteu com um tal movimento MR-8, que ela não conseguiu saber ao certo do que se tratava.

Eugênio Anastácio Leite Neto cresceu conhecido por redondo. Elaine voltou a morar com a mãe e, a exemplo dela, nunca mais se casou. 

Hoje quem passa na porta da Mercearia do Redondo, na Vila Santa Helena, e vê um gorducho lá, atrás do balcão, nem imagina a história de vida do proprietário que até hoje tem um detalhe que não foi esclarecido.

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