O isolamento social em decorrência da pandemia do novo coronavírus mudou a rotina de todos e no caso dos jovens, essas mudanças têm afetado a qualidade de vida e o seu desenvolvimento. Ansiedade, perda de entes queridos, ausência de vida social e dificuldades financeiras são algumas das causas das alterações de comportamento dos adolescentes durante a quarentena.

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A longo prazo, quais os possíveis danos que a pandemia e suas consequências podem causar a essa geração que estuda, trabalha e se relaciona pela tela do computador? Um estudo coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) aponta que 48,7% dos jovens brasileiros têm sentido preocupação, nervosismo ou mau humor durante a quarentena, na maioria das vezes ou sempre. Considerando apenas as meninas, o percentual sobe para 61,6%.

Elaborada pela Fiocruz em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), a ConVid Adolescentes – Pesquisa de Comportamentos, entrevistou através de um questionário online, 9.470 adolescentes de 12 a 17 anos, de todo o Brasil, entre junho e setembro de 2020.

Os resultados, revelam que além do crescimento dos sentimentos de preocupação, nervosismo ou mau humor, houve também aumento no consumo de alimentos processados e do sedentarismo. O percentual de jovens que não faziam 60 minutos de atividade física em nenhum dia da semana antes da pandemia era de 20,9%, e passou a ser de 43,4%.

A estudante Mayelle Mello Alencar, de 17 anos, que era acostumada a dividir sua rotina entre estudo e trabalho, conta que a falta de atividades presenciais a fez ganhar peso durante o isolamento social.

Mayelle Mello Alencar (Foto: Arquivo pessoal)

“Eu e minha família engordamos bastante, porque como não tínhamos nada para fazer a gente ficava comendo. E eu como sou ansiosa, não consigo ficar sem comer, quanto mais ansiosa, mais eu como. Se eu tenho uma entrevista de emprego, fico agoniada e tenho que comer para me distrair, senão eu não consigo. Com isso eu engordei e estou sofrendo as consequências dessa pandemia”.

A pesquisa ainda revelou a piora na qualidade do sono durante a pandemia em 36% dos jovens entrevistados. Sendo que 23,9% começaram a ter problemas com o sono e 12,1% relataram que tinham problemas e eles pioraram.

Para o pesquisador da Fiocruz, Paulo Roberto Borges de Souza Júnior, outro dado que chama atenção é o tempo que jovens têm passado em frente às telas do celular e/ou computador. 60% dos entrevistados relataram que passam mais de 4h nas telas, isso sem contar as aulas.

“Dentro do grupo entre 16 e 17 anos são 70%, ou seja, dois a cada três adolescentes nessa faixa etária ficam mais de 4h por dia na tela, sem contar o horário da aula, o que é bastante preocupante. Passou de 3h e 20 minutos o tempo médio, antes da pandemia, para 5h durante a pandemia. Se você juntar isso com a redução no tempo de atividade física e com esse aumento no consumo de chocolates, doces e congelados, são questões preocupantes para a saúde desses jovens no futuro”, alerta o pesquisador.   

Com 18 anos, Adriely Freitas teve que se acostumar com o ensino remoto e notou que a pandemia piorou sua qualidade de vida. A gente fica o dobro do tempo no celular. Aliado a isso, comemos um monte de besteira e não praticamos esporte nenhum. É complicado”.

Paulo Roberto Borges de Souza Júnior, pesquisador da Fiocruz (Foto: Sagres Online)

Paulo Roberto ressalta que alguns estudos mostram que nessa fase da infância e da adolescência, a exposição à tela por mais de 2h por dia pode piorar o desenvolvimento cognitivo. Esses jovens podem apresentar dificuldade de aprendizado e de concentração, segundo o pesquisador. “Essas telas limitam a vida deles a um espaço. A visão deles fica limitada a um espaço curto durante um longo tempo. Têm vários problemas que já eram estudados antes da pandemia e agora estão se agravando dado esse momento triste que estamos vivendo”, pontua.

>>Veja os resultados completos da pesquisa: convid.fiocruz.br

Isolamento que adoece

A pesquisa da Fiocruz apresenta um cenário ruim em relação à saúde mental dos adolescentes. O tédio e o estresse levam às alterações de humor e de comportamento que precisam ser observadas com atenção. “Entre os problemas, estão a depressão e o sentimento de tristeza que podem se agravar ou até se tornar crônicos, necessitando de terapia e alguma ajuda de um profissional de saúde mental”, alerta Paulo Roberto.

Júlio César Pereira (Foto: Sagres Online)

E foi nesse tipo de profissional, que jovem Júlio César Pereira encontrou forças para sair do quadro de pré depressão desenvolvido durante a quarentena. “Eu precisei de ajuda. Eu já não suportava mais minha situação, e uma escuta profissional foi muito bom”. Além disso, Júlio também ficou mais ansioso com o isolamento social. “Se me falarem que daqui um ano terá um evento ou alguma coisa, vou começar a sofrer antecipadamente. É muito complicado”.

Esse apoio o fez superar a pré depressão e se redescobrir revelando um talento que nem ele mesmo conhecia. “Descobri que eu tenho o dom de liderar, comecei liderando um trabalho voluntário e eu amo muito isso”, celebra.

Dificuldades financeiras

Além da crise do sistema de saúde, a crise financeira também se instalou na casa de muitas pessoas. Mayelle viu os pais, que trabalham há 14 anos com acabamento de confecções da Rua 44, perderem a fonte de renda.

Mayelle Mello Alencar e sua famíalia, Maria dos Anjos da Silva Melo Alencar
Douglas Martins da Silva, Jhean Pablo Melo da Silva, Mayanne Melo Alencar e
Jonas Gabriel Melo da Silva (Foto: Arquivo pessoal)

“Minha mãe até diminuiu os gastos. Passamos uma semana inteira comendo cuscuz e tapioca. A gente já estava enjoado, porque sempre comemos pão, rosca, essas coisas. No começou foi bem ruim, não tínhamos uma renda fixa”, relembra. Mas a família de Mayelle conseguiu colocar em prática um desejo antigo de ter uma marca própria e foi sucesso. “Fazemos personalização em canecas, uniformes, máscaras. Claro que não está 100% confortável, mas ainda estamos trabalhando com os acabamentos”, destaca.

Covid-19

Natália Oriza Rezende de Moraes, de 20 anos, conta que era superativa, fazia faculdade de Fisioterapia e gostava de sair com os amigos. Mas as mudanças repentinas na sua rotina trouxeram momentos de muita ansiedade. “Me senti mais ansiosa e ganhei peso. Antes, nós tínhamos uma rotina completamente diferente. Se estávamos nervosos podíamos sair para algum lugar e descansar a cabeça. Do nada, tivemos que ficar trancados dentro de casa, sem poder sair. É estressante!”, reclama.

A Natália, que estava enfrantando foi contra a Covid-19. Em meio ao isolamento social, a jovem descobriu que estava grávida e contraiu o vírus na reta final da gestação. “Foi um pouco assustador porque não era planejado. Então quando eu recebi essa notícia foi como se um mundo tivesse desmoronado, eu perdi o chão. Quando vi todas as restrições que tínhamos que ter, todas as preocupações, foi um pouco mais estressante do que é de costume”.

Por conta da gravidez, Natália trancou a faculdade e passou a se dedicar apenas ao trabalho, realizado à distância. Apesar de não ter apresentado sintomas mais graves, a Covid adiantou seu parto.

Natália Oriza Rezende de Moraes e sua filha (Foto: Arquivo pessoal)

“Eu estava com 38 semanas e cinco dias. Minha filha nasceu no dia 12 de janeiro e o parto estava programado para o dia 21 e se fosse esperar o parto normal, a gestação poderia chegar até o fim do mês de janeiro”.

Para a jovem o pior momento foi o pós-parto, quando Natália desenvolveu um quadro de depressão. A jovem não podia ficar perto da filha e o único momento de pegá-la era o da amamentação e com máscara N95, luvas e toda a proteção adequada para não haver contado com a bebê.

“Acho que entrei em depressão por ter que ficar afastada da neném, fiquei 15 dias afastada dela. Só pegava ele para amamentar e depois pegavam ela, a sensação que eu tinha era como se estivessem levando uma parte do corpo, que eu ficaria sem e não retornaria mais. Tive toda essa sensação e o desespero de que como se eu não fosse dar conta, como se aquilo não fosse normalizar, como se eu não fosse conseguir entrar em uma rotina novamente”.

Vale ressaltar que de acordo com os estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS), o aleitamento, mesmo a mãe estando com a Covid, traz mais benefícios do que riscos para a criança. Apesar de já terem sido encontradas pequenas partículas do novo coronavírus no leite materno, elas não são capazes de transmitir a doença.

Após contar com um apoio profissional, Natália superou a depressão pós-parto, mas ainda convive com algumas sequelas do vírus. “Hoje estou bem, o que eu sinto ainda de sequela do Covid, é que às vezes me dá uns esquecimentos do nada. Estou conversando no maior raciocínio, aí eu paro e fico assim: ‘o que que eu estou falando?’ Já aconteceu de eu precisar ir ao mercado e chegar lá eu esquecer completamente o que eu fui fazer, o que eu ia comprar. Eu fiquei mais nervosa, eu era bem paciente mesmo e agora parece que qualquer coisinha me dá um estresse. Sei que isso não é de mim, é uma sequela da Covid”.  

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Luto

O novo coronavírus já vitimou mais de 400 mil brasileiros, Gleidson Vieira Silva foi um deles. O policial militar não resistiu às complicações da doença e deixou a esposa e seus três filhos. “Ele tinha 54 anos e não tinha nenhum tipo de problema de saúde, era saudável, relata a caçula, Adriely.

Para superar esse momento de luto, a jovem tem contato com apoio psicológico. “É uma ajuda bem-vinda, mas é uma coisa que nem com acompanhamento a gente consegue amenizar a dor. É bem complicado, mas me ajuda bastante”.

Adriely Freitas e seus pais, Adriana de Freitas Souza Silva e Gleidson Vieira Silva (Foto: Arquivo Pessoal)

Paulo Roberto salienta que ter o apoio de um profissional de saúde mental é fundamental para que os adolescentes possam superar as dificuldades que a pandemia impõe, a curto e a médio prazo. Para o pesquisador, tal apoio deveria ser incentivado pelas escolas e pelo governo.

“É extremamente importante, talvez algo também vinculado às escolas. Um apoio psicológico para os alunos. Porque eles relataram bastante dificuldade de entender as aulas e de se concentrar, 59% deles relataram falta de concentração nas aulas online e têm toda uma questão de o quanto isso vai influenciar no aprendizado desses jovens para o futuro. Acho que essas são questões que o governo e as escolas podem sim atuar, desde que haja uma ação conjunta e compartilhada para que se dê acesso a um suporte psicológico e para atividades físicas para todos, que não se limite a alguns grupos, porque o difícil é quando as políticas só atingem um grupo”, frisou.    

Nasce

Assim como Adriely, Júlio, Natália e Mayelle, inúmeros jovens têm passado por situações semelhantes e precisam de ajuda para superar as sequelas da maior crise sanitária da história. Os quatro participam do programa Jovem Aprendiz, da Rede Nacional de Aprendizagem, Promoção Social e Integração (Renapsi) e puderam contar com o apoio que a instituição oferece gratuitamente através do Nasce.

Vanessa Peixoto, assistente social da Renapsi (Foto: Sagres Online)

O Nasce é o Núcleo de Acompanhamento e Seleção, que realiza os atendimentos multiplicadores especializados com os participantes do programa Jovem Aprendiz. Dentro do Nasce existe o AME, onde duas assistentes sociais e uma psicóloga fazem o atendimento psicossocial dos jovens.

“Nós assistentes sociais iniciamos o acompanhamento com eles e caso o jovem tenha a necessidade de um profissional da psicologia a gente encaminha para a rede, que são o CAPS, CRAS, CREAS”, explica Vanessa Peixoto, assistente social da Renapsi.

Antes da pandemia os atendimentos eram na maioria presenciais, através de visitas domiciliares. Depois da pandemia, devido á Covid eles passaram a ser 100% de forma online. A instituição criou um canal de atendimento online para os jovens aprendizes de todo Brasil. “Os jovens têm acesso a esse canal de chat online e é mesmo para atendimento psicossocial, o jovem que têm algum problema social ou psicológico nos procura, nos relata”.

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Amanda Costa, psicóloga da Renapsi, conta que com o isolamento social, a demanda do AME cresceu significativamente, hoje o AME atende mais de 200 jovens por mês.

“A partir do momento em que o jovem fica mais em casa, começam a surgir conflitos familiares, tanto os conflitos normais como também os conflitos que já não são tão normais como violência por exemplo. Além disso, o isolamento também traz, não só para o jovem, mas para o ser humano, essa sensação de ansiedade maior”, detalhou.

“Somos seres sociais, então a socialização faz parte das nossas necessidades, como seres humanos. A partir do momento em que o jovem está mais recluso, em isolamento, sem ter contato, sem ter como se socializar, principalmente os jovens, é inevitável que essas demandas aumentem”, concluiu.

Amanda Costa, psicóloga da Renapsi (Foto: Sagres Online)

Segundo a psicóloga “os jovens são muito imediatistas” e a pandemia os trouxe uma sensação de que estavam perdendo um ano de suas vidas e a ansiedade é uma das consequências desse sentimento. Amanda destaca que nesse momento o mais importante é reconhecer que não está tudo bem, não sentir vergonha ou culpa por isso e procurar ajuda.

A profissional entende que “o ser humano tem a capacidade de se reinventar” com o tempo e que os jovens são capazes de superar os problemas e “ressignificar suas relações”.

Amanda relatou ainda que o apoio oferecido pelo AME “fez total diferença na vida de muitos jovens que não têm acesso a um atendimento com psicólogo. Nós identificamos casos de violência doméstica e fizemos as intervenções necessárias, identificamos casos com ideações suicidas e fizemos as intervenções necessárias”

“Se esse jovem não tivesse alguém para escutar, para acolher e para direcionar fazendo as intervenções, a gente não sabe qual seria o desfecho dessas histórias em um momento de isolamento onde ele não tem para onde correr”, finalizou.