JÉSSICA DIAS E PALLOMA RABELLO. Desde a infância, pessoas que têm cabelo cacheado e crespo costumam ouvir piadinhas e comentários maldosos. Feio, sujo, duro, por que você não penteou o cabelo? Essas são algumas das falas mais comuns, que, ao longo de anos, vem ferindo a autoestima de pessoas negras. O que dificulta ainda mais essa questão é que em diversas vezes esses comentários vêm de dentro da nossa própria casa, das famílias e até por meio de comparações.

A população brasileira é bastante miscigenada e isso faz com que dentro da mesma família tenham pessoas com traços muitos diferentes. Trazendo características únicas, como olhos, boca, nariz, cor da pele e cabelo também. Ao invés de exaltar essa singularidade, começam as ofensas que surgem do racismo. É preciso romper com o preconceito usando a educação e a visão que as diferenças existem e que elas enriquecem nosso povo e cultura.

“Eu não me recordo de sofrer bullying na escola, mas dentro da casa de alguns familiares acontecia bastante. O meu é crespo e algumas pessoas da família tinham o cabelo liso, eu lembro de receber piadinhas até quando fazia alguns penteados no cabelo. Mas muita coisa eu só identifiquei depois de todo o processo da minha transição”, contou a jornalista Ingrid Raquel.

Cabelo e relação de amor

Mas diferente dos comentários que recebia na casa de familiares, a relação que ela tinha com o cabelo dentro de casa era de muito amor e respeito. A mãe da jovem fez com que ela tivesse boas lembranças e essa característica virou, também, símbolo de muito amor.

“Dentro de casa, com minha mãe era uma relação de muito amor. Ela sempre fazia penteados no meu cabelo e eu me sentia linda. Além de ser um momento que aproximava a gente, que estreitar laços. Tinha muita entrega ali, doação e ela fazia as tranças com muito carinho, com calma era o nosso momento” disse a jovem.

Ingrid Raquel Ferreira, jornalista (Foto:Caio Eduardo Pedroso)

Com o passar do tempo, sem perceber, a jovem começou a se pressionar para abaixar o volume dos seus cabelos.

“Já na adolescência eu pensava que precisava deixar o cabelo sem volume, baixo. É sobre sair da sala para manter o cabelo molhado e assim controlá-lo. Algo que comecei a fazer inocentemente, em uma tentativa de seguir um padrão imposto pela sociedade”, lembra.

O desejo de mudar o cabelo tem relação ao racismo de marca, que segundo os históricos, explica-se da seguinte forma: quanto mais o indivíduo possuir características negras em seu corpo, mais vítima do racismo ele será. Portanto, quanto menos se aproximar das características de pessoas negras, mais leve será o racismo.

Por isso, os primeiros esforços de transformação do corpo negro começam ainda na infância e adolescência, com o desejo de mudar uma parte específica do corpo: o cabelo crespo, através do alisamento capilar.

Como tudo começou

A atitude discriminatória começou ainda na colonização e, infelizmente, é propagada até os dias de hoje. O pensamento que o cabelo crespo é inferior é usado como uma forma de negação da beleza negra. Por isso é comum encontrar mulheres que alisam os cabelos durante toda a vida, para se sentir mais aceitas e bonitas.

“O cabelo crespo é parte de um corpo negro, por isso as pessoas têm a visão de que ele é um tipo de cabelo inferior, feio e sujo”, explica Sara França Eugênia, doutoranda em direitos humanos e pesquisadora em transição capilar e identidade negra.

A especialista destaca que essas questões vêm do histórico que o Brasil tem. Um país racista com um passado de escravidão. “Para manter essa massa de pessoas que foram escravizadas no lugar de subalternidade você tinha que acabar com a autoestima e com a identidade delas”.

De acordo com a pesquisadora, a desconstrução da identidade negra é feita de várias maneiras. Depreciar, inferiorizar o corpo e as características físicas é uma forma efetiva, pois ataca a autoestima e identidade da pessoa. Assim, o indivíduo fica em lugar em que se acha inferior aos outros. Essa situação foi determinante na formação de uma identidade distorcida dos negros acerca de si próprios.

Construção de sentidos e identidade

Quando iniciou a transição capilar, a tricologista e cabeleireira Karla Queiroz, enfrentava também a depressão. “Eu era o patinho feio. Todas as minhas amizades tinham os cabelos lisos ou alisados. Eu não via motivos para me sentir bonita, porque o meio em que eu estava não me fazia pertencer àquele lugar”, relata.

Hoje, muitas mulheres têm encontrado na transição capilar um caminho de reconexão. É como se elas descobrissem a sua negritude a partir da libertação de seus cabelos.  “Eu queria uma mudança. Então, eu externalizei o que estava dentro de mim através do meu cabelo. A transição capilar não é moda. É uma transformação que vem de dentro”.

A doutoranda em direitos humanos, Sara Eugênia, em sua pesquisa de mestrado “Transição Capilar: Um olhar sobre o cabelo crespo e a identidade negra”, conversou com mulheres negras que alisam os cabelos e com mulheres que usam o cabelo natural. A conclusão do estudo mostra que a transição capilar contribuiu para a ressignificação da identidade de mulheres negras.

“As mulheres que passaram pela transição capilar se perceberam negras em um processo de ressignificação de identidade. A pessoa negra começa a ver seu corpo e seu cabelo como algo positivo e começa a questionar os motivos para que no passado não se enxergasse dessa forma”, explica Sara Eugênia.

De acordo com a pesquisadora, quando as mulheres se tornam confiantes com relação a sua figura estética, ela consegue construir uma auto imagem positiva, capaz de influenciar a autoestima e na criação de um significado positivo de sua identidade.

Aceitação

Para a Ingrid Raquel o processo de aceitação e empoderamento do seu cabelo crespo foi uma das coisas mais lindas que já aconteceu em sua vida. A jovem ressalta que não foi fácil, e por diversas vezes pensou em desistir, mas tudo isso serviu para ela crescer como mulher.

“Eu fiquei um ano e meio em transição capilar e esse processo não inclui mudar apenas o cabelo. Eu acredito que essa mudança é para a vida, é algo que vem de dentro e assim que o surge o empoderamento. A transição capilar é sobre você se aceitar e aceitar seu tempo”, ressalta.

Big chop

Depois do momento da transição vem o temido e libertador big chop, um corte que tira a parte alisada dos fios. É nesse momento que as mulheres preferem tirar o cabelo liso de química para não ficarem com fios com texturas diferentes.

“Eu fiz o Big chop sozinha em casa e nesse momento chorei muito. É uma emoção que toma conta, enquanto eu tirava as partes alisadas via ele criando forma, criando vida. Quando finalmente finalizei o corte e o black power surgiu percebi que meu cabelo era sinônimo de resistência. Desde então, eu sou completamente apaixonada pelo meu cabelo”, disse emocionada.

Mercado de trabalho

O preconceito e o racismo estão presentes em todas as esferas da sociedade e no mercado de trabalho não é diferente. Pessoas negras perdem oportunidades de emprego ou sofrem discriminação por causa do cabelo.

Um estudo publicado em 2021 na revista Social Psychological and Personality Science mostrou que candidatas negras aos mais diversos cargos de emprego com penteados naturais ou usando tranças afro, são percebidas como menos profissionais do que negras com cabelos alisados.

“Na minha pesquisa eu colhi vários depoimentos de mulheres que alisaram o cabelo para irem numa entrevista de emprego. Mulheres que alisaram o cabelo ou prendê-lo para conseguirem uma promoção. Quanto mais crespo é o cabelo, mais insidioso é o pedido de alisamento. A pessoa fica tolhida e alisa porque precisa do dinheiro”, afirma Sara Eugênia.

De acordo com Sara, a discriminação do cabelo crespo acontece com o disfarce da boa aparência. “Muitos anúncios de emprego usam a expressão ‘o candidato deve ter boa aparência’. Essa ‘boa aparência’ é entendida com a aparência de uma pessoa branca. E a boa aparência para as mulheres é o cabelo liso”, explica.

Ingrid Raquel conta que já passou por experiências onde ela sentiu a necessidade de alisar o cabelo para se sentir aceita no mercado de trabalho. Além disso, ela já presenciou isso acontecendo com outras pessoas também, como amigos que só foram contratados depois que cortaram os cabelos.

“A gente sabe que se eu for para uma entrevista com meu black power e aparecer outra menina com o cabelo liso, as chances dela ser a escolhida, por questões estéticas são bem maiores. Eu fico com essa preocupação quando vou ser entrevistada para um local novo, pode ser uma questão estrutural, mas o fato é que isso acontece com grande frequência”, pontua.

Legislação

Através da pesquisa de mestrado da Sara, foi proposto o projeto de lei nº 1345/20, que tramita na Assembleia Legislativa de Goiás, prevendo punição para as empresas públicas, privadas e escolas que discriminarem funcionários ou estudantes por causa do cabelo.

Por lei, não há nenhum impeditivo de uma empresa solicitar ao empregado adequações na aparência, desde que não seja de forma discriminatória. Ou seja, o limite na interferência na aparência dos funcionários esbarra na discriminação e no preconceito.

Segundo o texto da proposta, são atos discriminatórios ao direito ao cabelo natural da pessoa negra: praticar qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória; proibir ou impor constrangimento ao ingresso ou permanência em ambiente ou estabelecimento aberto ao público; recusar, retardar, impedir ou onerar a utilização de serviços, meios de transporte ou de comunicação; negar emprego, demitir, impedir ou dificultar a ascensão em empresa pública ou privada, assim como impedir ou obstar o acesso a cargo ou função pública ou certame licitatório; dentre outros.

“Não adianta nada falarmos de empoderamento, se ainda hoje, as pessoas são discriminadas no mercado de trabalho por causa do cabelo. É algo que impacta a subsistência da pessoa, pois envolve uma questão alimentar de sobrevivência”, analisa Sara.

Preconceito também dentro de casa

A decisão de passar pela transição capilar significa tocar em dores. Durante a fase em que esteve com o cabelo curto, Karla conta que também tinha que lidar com o preconceito e piadas dentro do ambiente familiar.

“O meu pai fazia brincadeiras do tipo: o que você passou no cabelo? Shampoo de cana ou de laranja? Porque hoje seu cabelo está um bagaço. Ele me chamou de ‘capacete’ por anos”.

Karla conta que seu processo de transição aconteceu de dentro para fora, o que ajudou a superar o pensamento de desistência diante das “brincadeiras” e “piadas”.

“A minha transição foi algo tão transformador, pois  se fosse em outros tempos, eu teria voltado a alisar meu cabelo. Porém, eu estava tão decidida em assumir meu cabelo natural, que isso não me atingia. Hoje, meu cabelo traz segurança”.

Atualmente, Karla é proprietária de um salão de beleza que se especializou em cabelos crespos e cacheados. Além de tratar dos cabelos de suas clientes, ela ajuda mulheres a se enxergarem e se aceitarem como são.

“Eu não cobro das minhas clientes que passaram pela transição e voltaram a alisar o cabelo. Isso é um processo. Precisamos entender que nunca foi só um cabelo. São histórias, fatos e acontecimentos. Nunca é só o cabelo. Ele só externaliza a mudança que vem de dentro”, finaliza. 

A proposta do salão de beleza de Karla é proporcionar para as clientes uma experiência de aceitação que vai além do corte de cabelo.
Foto: @karlaqueirozdecachos

Indústria dos cachos

Karla passou pela transição capilar há dezesseis anos. Era uma época em que nem sequer falava-se o termo “transição capilar”. Nesse período, a empresária teve que lidar com a falta de prática dos profissionais de beleza com os fios crespos.

“Eu vim de um processo em que eu não tinha ninguém. Eu não tive salão, não tive uma cabeleireira que entendesse meu cabelo. Não existiam produtos que se adequassem ao cabelo”.

Por muitos anos as marcas de cosméticos para cabelos ignoraram o público com cabelo crespo. Era comum as propagandas que evidenciavam o cabelo liso como algo sedoso, bonito e aceitável. Já o  cabelo cacheado e crespo representava a ideia de desleixo, de um cabelo ressecado, quebradiço, descuidado e volumoso.

Doutaranda em direitos humanos, Sara Eugênia, passou pelo processo de transição capilar em 2019. Foto: Reprodução/Redes Socias @eugeniasara

“A primeira vez que vi um produto para cabelo crespo, a garota propaganda tinha uma cabelo cacheado feito com babyliss (aparelho de calor que modela o cabelo, criando cachos e ondas). Aquilo já me deixava triste, porque se até produto para cabelo cacheado não deixava meu cabelo bonito, me fazia pensar que meu cabelo não tinha jeito mesmo”, conta Sara Eugênia que também passou pela transição capilar.

Ditadura do cacho perfeito

Nos dias atuais, quando se trata de produtos específicos para cabelos crespos, inúmeras opções são lembradas com a proposta de potencializar os cachos: shampoos, óleos restauradores, máscaras de hidratação, cremes para pentear, finalizadores anti frizz, entre outros.

São diversas opções no mercado que prometem deixar o cabelo “impecável” e absolutamente definido. Com isso, apesar dos avanços, um novo padrão surgiu: o cacho perfeito. Se o cabelo tem frizz, não é considerado um cacheado bonito.

“Não podemos sair de uma ditadura do cabelo alisado para cair na ditadura do cabelo natural. A mulher negra, como qualquer outra mulher, tem liberdade sobre seu corpo e de se expressar como ela quiser. Antes de mais nada, isso é uma nova forma de racismo, porque prende a mulher negra de novo por não ter o cacho perfeito”, avalia a pesquisadora, Sara Eugênia.

Mulheres negras que alisam o cabelo

Hoje em dia, as discussões sobre racismo, identidade negra e  reconexão com a ancestralidade, ampliaram a aceitação dos cabelos naturais, mas, mesmo assim, há mulheres negras que preferem continuar alisando os fios.

A pesquisadora em transição capilar, Sara Eugênia, pondera que o importante é que a pessoa negra se expresse sem opressão.

“Passamos a vida inteira alisando por uma pressão estética e racista sobre nosso corpo. Se a pessoa não vive mais isso, mas quer alisar o cabelo, devemos deixar a mulher negra se expressar de forma livre”.

Alisar o cabelo não indica, necessariamente, uma adaptação ao padrão capilar imposto. O problema é quando a mulher faz isso achando que ser negra é negativo e por isso alisa.

“Alisar cabelo não significa que a mulher negra é alienada a respeito da sua identidade. Alisar os fios não faz uma mulher menos negra. Isso não é uma negação da negritude”, finaliza.

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