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Como todo jovem de sua idade, Rafael Melo, 22 anos, tinha uma vida movimentada. Durante a semana, acordava cedo, percorria um longo caminho da Vila Jaiara, bairro onde mora em Anápolis, até chegar ao seu local de trabalho, no Distrito Agroindustrial da cidade. Ainda à noite, encontrava disposição para ir à academia, à igreja ou ainda para andar de moto com os amigos. Depois do dia 5 de janeiro, sua rotina mudou drasticamente.

Ele deixou de ser Rafael e virou o principal suspeito pela Polícia Civil de ter atirado um artefato explosivo contra o casal de namorados Thays Mendes, 19, e Guilherme Almeida, 20. O crime chocou o país e teve grande repercussão na mídia, que colocou Rafael como o único suspeito por ter tido um rápido relacionamento de três meses com Thays. A jovem teve 42% do corpo queimado e Guilherme, 32%. Eles sofreram queimaduras de segundo e terceiro graus no tronco, nas costas, nos braços, mãos e rostos.

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Rafael perdeu o emprego, abandonou a academia, foi esquecido pelos amigos e parou até de frequentar a igreja, lugar onde teoricamente poderia encontrar uma palavra de conforto.

Com medo de ser reconhecido na rua, após o julgamento açodado da mídia e de ameaças de populares, Rafael passou mais de 30 dias recluso em casa. A comida já não tinha o mesmo sabor, as noites de sono foram interrompidas por pesadelos, as enxaquecas voltaram em sua potência máxima.

Quando Rafael precisava sair de casa, nunca era sozinho. “Algumas vezes eu só saia porque ia de carro, mas se fosse pra ir sozinho, eu não ia por medo. Eu tinha que sair com alguém, com duas ou três pessoas no mínimo”, diz Rafael. E, ainda assim, o jovem relata que o medo de ser ameaçado na rua o fez desenvolver o hábito de olhar sempre para os lados e atrás. Um receio justificável; na rua ele era constantemente insultado e ameaçado. As pessoas chegavam a dizer que iam queimá-lo vivo.

Foram praticamente 30 dias de pesadelo que parecerem uma eternidade para Rafael. E, embora a Polícia Civil esteja perto de concluir o inquérito e indiciar Uingles Queiroz da Costa, 30 anos, pelo atentado contra o casal de namorados, ainda é difícil para o jovem superar os últimos acontecimentos. “Foi muito difícil ser acusado de um crime que eu não cometi. Fico tentando seguir a vida, os que me conhecem sabem que não fiz uma barbaridade dessa. É muito complicado estar relatando, é até chato, não gosto de falar muito. Às vezes nem dormia, fica com isso na cabeça: passar 30 anos na cadeia por um crime que nem cometi”, conta.

A rotina familiar também foi alterada e a falsa acusação não atingiu apenas Rafael. Ele conta que sua mãe ficou desesperada. “Ela sofreu demais, tinha dor de cabeça, chorava o dia todo, não dormia. A minha irmã também”. O rapaz afirma que seus dois irmãos também ficaram com medo de sair às ruas. As ameaças atingiram toda a família.

Rafael revela que chegou a pensar em se mudar de cidade, construir uma nova vida com a sua família longe de Anápolis. “Com certeza pensamos nessa possibilidade de construir outra vida em um novo lugar, porque aqui já estava constrangedor, com as ameaças. No começo disseram que eu estava foragido, e eu não estava. Estava em casa”.

Nem a polícia acreditava que Rafael seria o culpado, mas, no anseio de indicar logo um culpado pelo crime e aplacar a pressão da mídia, preferiu ignorar a fragilidade dos indícios que apontavam para Rafael. O rapaz revela que, ao ser interrogado pela polícia, o próprio delegado responsável pelo caso, Éder Ferreira Martins, teria dito que ele não tinha perfil de criminoso. “O delegado disse: olha Rafael, eu não estou acreditando que seja você. Você não tem perfil pra isso. Inclusive, no dia que eles foram levar a intimação, eles olharam e disseram que não tenho perfil. Eu não saio pra festa, pra balada”.

Delegado ÉderJá para a imprensa, o delegado traçou outro perfil de Rafael, que foi apontado com convicção como o autor do crime. O jovem se tornou o principal suspeito para a polícia simplesmente porque teria tido um relacionamento de três meses com Thays no início de 2012. Para provar a tese, os investigadores divulgaram uma mensagem postada no Facebook no dia 20 de dezembro por um dos melhores amigos de Rafael – Bruno – que dizia: “Tá chegando a hora. Quero ver o circo pegar fogo e os palhaços morrerem queimados”. Rafael tentou explicar que a mensagem não fazia menção a nenhum crime, e sim às especulações sobre o fim do mundo, que disseram que ia acabar no dia 21 de dezembro. Mas não foi ouvido.

Em nenhum momento o delegado disse à imprensa que Rafael não tinha o perfil do criminoso que cometeu o atentado contra o casal de namorados.  Rafael caiu na boca de Matilde da mídia. A partir das declarações do delegado, o que se viu foram enxurradas de reportagens dos principais veículos de comunicação perpetrando a tese da polícia. A equipe do Fantástico, por exemplo, chegou a procurar Rafael em Anápolis para fazer uma matéria sobre o caso, mas não citou que a cobertura seria sobre os “seis casos de crimes passionais” investigados no início de 2013.

Sobre a atitude do delegado, Rafael prefere não se comprometer e diz apenas que o policial estava fazendo o seu trabalho. “O delegado fez apenas o dever dele. Como ele disse que teria três linhas de investigação, acredito que ele me expôs para mídia focar em mim e trabalhar nas outras linhas”.

UinglesReviravolta
A sensação de alívio – ainda que comedida – só veio 30 dias depois, quando a Polícia Civil apontou novas evidências que colocaram Uingles  como autor do crime. Uingles foi detido no dia 28 de janeiro, depois de detonar explosivos artesanais no interior de um ônibus coletivo em Goiânia, causando intoxicação em duas pessoas. Para sorte de Rafael, o novo suspeito praticou outro atentado. Caso não tivesse detonado o explosivo no ônibus, Rafael ainda seria o principal suspeito e poderia ser condenado por um crime que nunca cometeu.

A hipótese da participação de Uingles no atentado foi levantada pelo delegado Eduardo Gallieta, do 5º DP de Goiânia. Éder Martins só colocou Uingles como o principal suspeito depois que a bicicleta, utilizada no dia do crime, foi encontrada desmontada numa oficina de Anápolis e embalada para a viagem a pedido do próprio Uingles, que esteve no local exatamente no dia 5 de janeiro. Outras evidências reforçaram também a nova tese da polícia, como a blusa encontrada em poder de Uingles, que seria idêntica à que foi divulgada nas filmagens no dia do atentado. Uingles nega a participação no crime.

Ameaça1Uma dimensão do prévio linchamento feito pela mídia, que chegou a colocá-lo como único suspeito de um dos mais recentes crimes passionais, é que, até hoje, Rafael recebe ameaças. No Facebook, por exemplo, o jovem tem se deparado com mensagens ameaçadoras feitas por pessoas desconhecidas. “Têm pessoas que acreditam que foi ele (Uingles Queiroz da Costa), têm pessoas que não. Que ainda acham que fui eu”.

Ameaça2Aos poucos, Rafael tenta retomar a rotina. Ele ainda recebe a orientação de familiares e amigos para evitar sair às ruas como fazia antes de estourar o caso. “Minha família ainda fala: não fica saindo muito e, quando sair, vai rápido, sai rápido. Não fica muito tempo no mesmo local”.

Em breve, o jovem pretende procurar um novo emprego, já que a empresa na qual trabalhava, a indústria Neoquímica, o demitiu sem uma justificativa plausível. Procurada pela reportagem da Rádio 730, a empresa preferiu não comentar o caso. Um novo emprego ajudaria Rafael a começar um sonho que foi interrompido no início do ano: a faculdade de Tecnologia em Logística.

Como já ensinou o famoso dramaturgo e poeta alemão, Brecht, mais cedo ou mais tarde, a vítima poderá ser você. Rafael não deseja, nem àqueles que o condenaram previamente pelo crime, que o destino pregue uma peça como essa em suas vidas. “Que eles não possam cair nessa situação que eu cai”. Em relação à Thays e Guilherme, o jovem diz que continua orando para que os dois consigam se recuperar e seguir suas vidas normalmente.

Quanto ao erro cometido pela polícia e pela mídia, ninguém até hoje veio a público se desculpar por ter, equivocadamente, apontado Rafael como culpado por um crime que não cometeu, erro que vai marcar a vida desse jovem de 22 anos para sempre.