Norberto Salomão
Norberto Salomão
Norberto Salomão é Advogado, Historiador, Professor de História, Analista de Geopolítica e Política Internacional, Mestre em Ciências da Religião e Especialista em Mídia e Educação.

A trágica cultura armamentista dos Estados Unidos

A reflexão histórica é, sem dúvida, uma excelente aliada para a compreensão de temas polêmicos. É nesse sentido que buscarei fazer um breve relato da história estadunidense visando abrir um canal de compreensão para relacionarmos as origens da cultura armamentista, sua manutenção até o presente, na sociedade dos EUA, e os trágicos desfechos envolvendo ações com armas de fogo. As raízes dessa mentalidade belicista parecem residir na própria gênese do país do Tio Sam.

Tiom Sam, um dos maiores símbolos dos EUA – Wikimedia Commons

Foram anos de luta pela independência, em relação à Inglaterra, até que finalmente, em 1781, as 13 colônias norte-americanas conseguiram a vitória. Dois anos mais tarde, em 1783, houve o reconhecimento dessa independência por parte do governo britânico.

Os colonos norte-americanos não tinham um exército formal, lutaram a partir da organização de milícias voluntárias, que tiveram como comandante máximo George Washington, um dos “Founding Fathers”, termo utilizado para se referir aos líderes do movimento de independência e posterior formação dos Estados Unidos da América do Norte. Entre esses “pais fundadores” também estavam Thomas Jefferson, John Adams, Benjamin Franklin, Alexander Hamilton, John Jay e James Madison.

Como nas 13 colônias não havia uma corporação militar oficial, cada homem era diretamente responsável pela defesa de sua família, de sua liberdade e de sua propriedade. Assim, observando esses aspectos históricos, talvez possamos compreender um pouco sobre as raízes culturais da mentalidade armamentista estadunidense e de como o direito ao uso das armas passou a integrar a categoria de direitos fundamentais na Constituição dos EUA.

Mesmo com a Inglaterra reconhecendo a independência das 13 colônias, os líderes do movimento de emancipação perceberam que havia a necessidade de se unirem e formarem um só país. Assim, organizaram-se duas propostas em relação à união e à formação de um novo país.

Thomas Jefferson, fundador dos EUA.

O grupo Democrata-Republicano, liderado por Thomas Jefferson e James Madison, propunha a união com um poder central simbólico e total autonomia para os estados-membros. No século XIX, esse grupo deu origem ao atual Partido Democrata. O grupo Federalista, liderado por George Washington e Alexander Hamilton, propunha a união com um poder central forte e mínima autonomia para os estados-membros. A concepção federalista inspirou a posterior criação do Partido Republicano.

Após muita discussão houve um entendimento consensual entre as duas propostas. Seria estabelecida uma união com governo central forte e relativa autonomia dos estados-membros. Dessa forma, a Convenção Constitucional da Filadélfia, que ocorreu entre 25 de maio e 17 de setembro de 1787, aprovou a primeira e única constituição dos EUA.

Entre 1789 e 1791, James Madison foi o líder da “Câmara dos Representantes” e passou a colocar em discussão a necessidade de complementar a constituição com emendas que expressassem e defendessem, de maneira clara, quais eram os direitos fundamentais. Assim, Madison elaborou e fez aprovar a “United States Bill of Rights” (Carta dos Direitos dos Estados Unidos ou Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos Estados Unidos) com as primeiras dez emendas feitas à Constituição dos Estados Unidos.

Carta dos Direitos dos Estados Unidos.

Entre as dez emendas da Carta dos Direitos dos Estados Unidos está a 2ª emenda, que proíbe a violação do “direito do povo de manter e portar armas”. A 2ª emenda foi inspirada em princípios do direito consuetudinário inglês, bem como na Declaração de Direitos de 1689, na Inglaterra. Alguns juristas consideram que essa emenda coloca o direito de autodefesa e resistência à opressão, no mesmo patamar do direito à vida, à liberdade e à propriedade. A íntegra do texto é a seguinte: “Sendo uma milícia bem regulamentada, necessária para a segurança de um estado livre, o direito do povo de manter e portar armas não deve ser violado”.

A questão é que com o passar do tempo os tribunais estadunidenses passaram a estabelecer diferentes interpretações à 2ª emenda, principalmente tendo em vista os interesses da indústria de armas. O principal ponto de controvérsia é se o direito de portar armas seria individual ou específico para o povo, caso tenha que enfrentar alguma ameaça.

Uma das famosos decisões judiciais foi dada em 2008, no processo que envolve o Distrito de Columbia contra Dick Heller (um policial que acionou a Justiça para poder registrar uma arma pessoal). A Suprema Corte decidiu que a 2ª emenda protege o direito individual de possuir e portar armas de fogo. Em outro processo de teor semelhante, McDonald contra a Cidade de Chicago, em 2010, a Corte Suprema ampliou seu entendimento. Assim, declarou inconstitucional leis federais, estaduais ou municipais, que vetassem o direito individual dos cidadãos dos Estados Unidos de se armarem. Esse tipo de decisão interpretativa reconhecia definitivamente como inviolável o direito de qualquer cidadão de portar armas. Igualava-se assim ao direito à liberdade de expressão e ao direito ao voto.

Pois bem, o saldo desse tipo de “direito inviolável” não tem sido positivo, pois desde a década de 1970 foram mais de 2 mil ataques a tiros em escolas dos EUA, segundo levantamento Centro de Defesa e Segurança Interna da Escola de Pós-Graduação Naval em Monterey, no Estado da Califórnia.

Em destaque, a maior parte desses ataques ocorreu a partir de 2012, ano que marcou um terrível evento, no qual 26 pessoas foram mortas em um atentado à escola primária Sandy Hook, em Newtown, no Estado de Connecticut. Ou seja, os casos aumentaram depois da decisão da Suprema Corte em 2010.

O atentado mais recente ocorreu no dia 24 de maio de 2022, em Uvalde, no Texas, em que foram mortas 19 crianças e 2 adultos. Convém lembrar que 10 dias antes, em Buffalo, Nova York, outro atentado havia atingido 13 pessoas. Mais trágico é saber que somente no primeiro semestre deste ano, que ainda não se concluiu, aproximadamente 7 mil pessoas morreram e mais de 10 mil foram feridas, vítimas da ação com armas nos EUA.

Capitólio. Foto: Wikipédia

Apesar de todas essas tragédias, a cultura armamentista e o lobby das empresas de armas estadunidenses não cedem frente à crueza dos dados. A mudança depende de vontade política, mas há, por enquanto, apenas uma minoria de senadores republicanos disposta a enfrentar um eleitorado conservador e alterar a lei. Assim, esses parlamentares se limitam a apoiar a criação de meios “mais eficazes” para a segurança escolar. Alguns chegam a propor o armamento de professores para poderem defender os alunos nessas situações.

É lamentável vermos que a vida é colocada abaixo da suposta liberdade individual de se armar. Poderíamos questionar onde está a lógica para a defesa dessa condição, mesmo tendo embasado com argumentos históricos as raízes culturais dessa mentalidade, parece irracional que insistam com essa perspectiva de mundo.

Infelizmente, o que tem falado mais alto, no momento atual, é o poder econômico da indústria das armas, que financia inclusive o sistema político e suas campanhas eleitorais. Diante disso, acredito que não possamos vislumbrar, em curto prazo, uma mudança efetiva dessa triste realidade. Pior ainda é que essa onda de defesa da violência armada, disfarçada de direito da autodefesa, tem ganhado ferrenhos adeptos em terras tupiniquins.

Leia mais:

Mais lidas:

Leia também: