Os números impressionam: cerca de 1 bilhão de toneladas de alimentos foram para a lata de lixo, em todo o mundo, no ano de 2019. A constatação foi do relatório lançado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) no passado, que apontou o Índice de Desperdício de Alimentos. Assista à reportagem a seguir

Segundo o levantamento, cerca de 17% do total de alimentos disponíveis aos consumidores foram para o lixo das residências, varejo, restaurantes e outros serviços alimentares naquele ano. Nas cozinhas de nossas casas, 11% dos alimentos que compramos também foram descartados. Situação que se repete ano a ano.

Esses números ficam ainda mais assustadores, quando lembramos que todo esse desperdício, acontece num momento em que o número de famílias em situação de insegurança alimentar vem crescendo em vários países do globo terrestre.

A insegurança alimentar é um termo utilizado para designar a pessoa que pessoa não tem acesso regular e permanente a alimentos em quantidade e qualidade suficientes para sua sobrevivência.

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Ainda segundo dados da ONU, 690 milhões de pessoas foram afetadas pela fome em 2019 e, pasmem, três bilhões de pessoas foram incapazes de custear uma dieta saudável.

Para o Diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos (WFP) no Brasil, Daniel Balaban, essa situação é inadmissível e precisa ser enfrentada.

“Se nós queremos chegar a um mundo livre da fome até 2030, nós precisamos trabalhar os sistemas alimentares como um todo. (…) É impossível que continuemos com um quadro tão grave, de pessoas passando fome e, ao mesmo tempo, desperdiçando tantos alimentos ao redor do mundo. No caso brasileiro também é um problema seríssimo a ser enfrentado. O Brasil já desperdiça 26 milhões de toneladas de alimentos todo ano.”

Além da questão da insegurança alimentar, o representante do Programa Mundial de Alimentos, que é uma agência da Organização das Nações Unidas, explica que o desperdício de comida também interfere nas emissões globais de gases de efeito estufa, causando danos ambientais. Estima-se que de 8% a 10% das emissões globais de gases de efeito estufa estão associadas aos alimentos não consumidos.

Daniel Balaban ressalta ainda que quando a comida é desperdiçada, são muitos recursos naturais que também estão indo para o lixo.

“Não é só o alimento que está sendo jogando fora: é a terra que foi utilizada, a energia, o trabalho das pessoas, é a água. Nós temos apenas 1% da água do planeta que pode ser utilizada para o plantio e para beber, então nós não podemos mais utilizar essa água para produzir alimentos que serão desperdiçados, que serão jogados fora”, diz ele.

A meta 12.3 do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU é reduzir, pela metade, o desperdício alimentar global, tanto no varejo e no nível do consumidor, quanto ao longo das cadeias de produção e fornecimento, até 2030.


Para chegar a essa meta, a ONU, através do Programa Mundial de Alimentos vem atuando no combate ao desperdício, através dos sistemas alimentares mais curtos.

Como grande parte das perdas acontecem no transporte e na armazenagem dos alimentos, a proposta é que as pessoas consumam alimentos que são produzidos perto de onde elas moram.

A Organização vem incentivando também que mais pessoas passem a produzir alimentos, para que a redução da distância entre o produtor e o consumidor, tenha reflexo também na redução das perdas.


Mas independente das ações em nível mundial, já existem boas iniciativas sendo implementadas em vários lugares, que combatem o desperdício e alimentam, quem tem fome.


Um bom exemplo é o Banco de Alimentos da OVG, a Organização das Voluntárias de Goiás, em parceria com a Ceasa, as Centrais de Abastecimento de Goiás. E aqui o processo é muito simples.

Os permissionários do entreposto comercial repassam ao Banco, os alimentos que já não tem valor comercial, mas que ainda estão aptos para o consumo humano.


No local, as frutas, verduras e legumes passam por uma seleção. Os que podem ser utilizados “in natura” vão compor cestas que são distribuídas a famílias e instituições cadastradas pela OVG.


No total mais de 2 mil pessoas e 200 instituições são cadastradas no Banco de Alimentos. E entre 85 a 150 de toneladas de alimentos, que antes iam para o lixo, agora reforçam a alimentação de centenas de famílias de Goiânia e região metropolitana.


São pessoas como a diarista Aldeir Queiroz, que se desloca, toda semana, de Trindade, cidade a 18 quilômetros da capital, enfrenta três ônibus para buscar os alimentos no banco. Mãe “solo” de três crianças pequenas, viu no banco uma fonte para melhorar a alimentação dos filhos.

“O que eu ganho é pouco, não dá nem para o básico, então, algumas coisas já estavam faltando pra eles. Aqui a gente consegue um reforço”, avalia.


A dona de casa Maria Violeta Alves também percorre uma longa distância em busca de uma alimentação mais nutritiva para a família. Semanalmente, ela sai do Setor Finsocial, na região noroeste de Goiânia para ir à Ceasa pegar uma cesta de frutas, verduras e legumes.

Comida que se multiplica e supre as necessidades de outros lares “Já tem 4 meses que busco os alimentos aqui. Além da minha casa, a cesta também é suficiente para dividir com minha irmã e meu sobrinho”, conta.

Segundo a Gerente de Nutrição Social e Sustentável da OVG, Marília Araújo Silva, a ordem no local é aproveitar tudo. Os alimentos que não podem ser consumidos “in natura”, tem as partes que podem ser aproveitadas, separadas e desidratadas.

Já transformados em alimentos secos, passam a compor kits, que também vão enriquecer as cestas e, ainda são distribuídos em outras ações da instituição em todo o estado.

Mas mesmo o que não serve para o consumo humano, não vai para o lixo. Frutas e verduras já em condições “inservíveis”, junto com casca, sementes e outros resíduos são doados para alimentação animal.

E o trabalho do banco não se restringe ao aproveitamento e distribuição dos alimentos, a atuação é bem mais abrangente. “Nós fazemos um acompanhamento das famílias, nossas assistentes sociais e outros profissionais fazem o controle dos níveis de insegurança alimentar e outros indicadores.

Tudo isso para conhecer o perfil do nosso público e traçar estratégias de atendimento das famílias. E ainda fazemos um trabalho de educação e orientação, com a realização de oficinas de reaproveitamento, a distribuição de receitas, entre outras iniciativas”, explica a gerente.

Perdas

Pela grande quantidade de alimentos comercializados, a Ceasa registra uma grande perda de alimentos, que já teve uma relevante redução com a implantação do Banco de Alimentos. Mas ainda assim, a Ceasa ainda gera incríveis 23 toneladas de lixo todos os dias.

Somente em um comércio visitado por nossa reportagem foi possível ver o tamanho das perdas. A loja do Lucas Silva Zuppa comercializa melancia e abacaxi. Todos os dias, cerca de 120 quilos de frutas, que não servem mais para a venda, são descartados e vão para o banco. Se não fosse o programa, tudo pararia no lixo.

Lucas explica que o descarte acontece porque os produtos que apresentam qualquer “defeito”, seja um amassado ou mesmo algumas manchas, perdem o valor comercial. “O cliente não compra, não adianta”, revela o comerciante.

No caso do comércio do Lucas, as frutas que não são vendidas, são todas doadas para o banco, mas dentro da Centrais, ainda existem muitas situações que levam à geração dessa quantidade imensa de resíduos orgânicos, como o descarte de casca, sementes e outras partes dos produtos que não são aproveitadas e os alimentos que caem dos caminhões e dos carrinhos abarrotados, que cruzam as ruas da Ceasa.

A quantidade de lixo é explícita nas vias do entreposto comercial. Sujeira e desperdício que custam anualmente cerca de 800 mil reais, só para que os resíduos sejam depositadas no aterro sanitário, sem contar o custo da coleta e do transporte. Situação que deve ser resolvida com a instalação de um complexo biodigestor, que deve começar a ser instalado até o final desse ano.

Na semana passada, o governador Ronaldo Caiado assinou o projeto de lei autorizando o repasse dos recursos do Governo do Estado para a Ceasa para aquisição do biodigestor. O PL agora será enviado à Assembleia Legislativa.

Segundo o diretor administrativo e financeiro da Ceasa, Rogério Martins Esteves o edital de licitação para a compra do biodigestor já está quase pronto e deve ser divulgado ainda nesse mês de abril. “Se a matéria for apreciada e aprovada com rapidez, pela Assembleia Legislativa, a previsão é de que até o final do ano, já devemos começar as operações com o biodigestor”, prevê.

De acordo com Rogério Martins, a expectativa é de que quando o complexo estiver funcionando com a capacidade total, a destinação de lixo para o aterro caia das atuais 23 toneladas diárias, para uma ou duas, no máximo.

Para além de todos esses esforços da ONU, de governos e instituições, a meta dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de reduzir pela metade o desperdício de alimentos até 2030, só será alcançada com a conscientização e decisão individual de cada pessoa em fazer a sua parte. Esse também é uma das metas da campanha do Programa Mundial de Alimentos.

O Diretor do Centro de Excelência contra a Fome entende que cada um deve repensar o consumo e mudar suas atitudes diárias.

“É importante essa iniciativa de tocar nesse assunto, porque a gente mostra para as pessoas o quanto de alimento que nós jogamos fora. Desde a pessoa que planta, o transporte, os comércios, as famílias, todos tem uma responsabilidade nesse processo. Por exemplo, os supermercados devem olhar os alimentos que estão com data de validade próxima e baixar o preço, porque as pessoas vão comprar e consumir antes do vencimento. E para isso nós temos que comunicar, falar do assunto e a partir daí, cada um vai se conscientizar e nós vamos ter uma redução no desperdício de alimentos em todo o planeta” conclui Daniel Balaban.