A aviação encurta distâncias, aproxima as pessoas, rompe barreiras, derruba fronteiras, facilita negócios. Viajar de avião nos conecta em curto tempo com quem amamos. Mas, como atender as necessidades atuais, sem comprometer o futuro das próximas gerações? O combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês) é uma grande aposta para o setor aéreo para alcançar as metas de descarbonização e transição energética. O desafio é reduzir o custo de produção e aumentar o uso em larga escala.
Necessidade x Realidade
O diretor da Boeing para Políticas Públicas e Parcerias em Sustentabilidade para América Latina e Caribe, Otávio Cavalett, avalia a consciência do setor aéreo em relação aos impactos ambientais. Para ele, a indústria de aviação tem se empenhado para minimizar impactos, e, desta forma, viagens mais sustentáveis estão cada vez mais próximas de se tornarem realidade.
“Compreendo que a transição para o uso de 100% de SAF em aeronaves exige não apenas avanços tecnológicos, mas também mudanças nas normas e regulamentações do setor. Espero que as colaborações entre empresas como a Boeing e os órgãos reguladores possam acelerar esse processo. Acredito que, à medida que mais pesquisas e testes são realizados, será possível aumentar o uso de SAF nas operações aéreas de forma segura e sustentável”, explicou.
Investimento e pesquisas
Pesquisas de desenvolvimento do SAF e testes correm a passos largos. A utilização do SAF pela aviação aos poucos tem ganhando espaço. Para se tornar verde, a indústria terá de desenvolver novas tecnologias. Não é apenas o setor produtivo que se mobiliza em torno do combustível sustentável de aviação. O insumo também atrai o interesse da academia. Um dos projetos em andamento é desenvolvido por alunos e professores do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás (UFG).
A pesquisa para a produção de petróleo sintético foi impulsionada por meio de uma parceria entre a Universidade Federal de Goiás, a Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit GmbH (GIZ) (responsável por investimento financeiro), com o apoio da Fundação Rádio e Televisão Educativa e Cultural (RTVE).
O laboratório produz petróleo sintético, com a utilização de energia fotovoltaica a partir de resíduos agroindustriais, algo inédito, aproveitando o potencial produtivo da região, com muitas indústrias ligadas ao agronegócio. A partir do petróleo sintético bruto, é possível a realização do refino do material, resultando na produção de diferentes combustíveis, entre eles o SAF.
O professor do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás (IQ UFG) e coordenador do Laboratório de Pesquisa em Processos Renováveis e Catálise (GOH2), Christian Gonçalves Alonso, explica que o trabalho começa pela produção do chamado gás de síntese (mistura de 3 gases), matéria-prima para reconstrução de moléculas orgânicas que dá origem ao petróleo sintético.
Combustível alternativo
Esse material já é produzido pela UFG. O petróleo fabricado ainda deve passar por um processo de refino para se transformar em combustível. O SAF pode ser fabricado a partir de óleos vegetais (de cana-de-açúcar, milho ou palma, por exemplo), gorduras animais (como o sebo bovino) e até óleo de cozinha usado.
“Quando se pensa nesse tipo de combustível, a gente tem o desafio de ao mesmo tempo pensar a sustentabilidade ambiental, mas também com a pesquisa, com o desenvolvimento, levar a uma sustentabilidade financeira para que a gente tenha isso em larga escala. Esse é o grande gargalo, entender como tudo isso funciona e, de certa forma, trabalhar no sentido de resolver esses gargalos, dar viabilidade a esses processos”, explicou Christian Alonso.
O diretor da Boeing, Otávio Cavalett, acredita que o aprimoramento tecnológico aliado ao interesse de grandes empresas do setor aéreo em buscar soluções sustentáveis para que combustíveis como o SAF sejam difundidos em larga escala, e seu uso comercial seja possível. Desta forma, alia-se dois conceitos de sustentabilidade: ambiental e econômica.
“É encorajador ver grandes empresas buscando formas mais sustentáveis de operar. O uso de SAF pode realmente contribuir para a redução das emissões de carbono na aviação. E quanto à viabilidade econômica, é uma questão importante. Como mencionou, historicamente os biocombustíveis passaram por um processo de redução de custos à medida que a tecnologia e a produção foram aprimoradas. Espero que essas tendências se repitam com o SAF, tornando-o mais acessível e viável em larga escala no futuro”
Adaptações
Atualmente, aviação utiliza o Querosene da Aviação, um combustível líquido refinado do petróleo, de origem fóssil. Além de poluente, não é renovável. Ele emite de 60% a 80% menos carbono do que o querosene de aviação (QAV). Apesar do número expressivo, há um grande desafio enfrentado pela indústria de “como aumentar a escala e diminuir os custos” do SAF. O insumo já é fabricado em países como: Estados Unidos, China, Japão, Singapura, Alemanha, Noruega e México.
O professor explica que SAF é o que chamamos de “combustível drop-in“. O uso é semelhante ao que conhecemos hoje nos veículos flex, comuns Brasil afora. Ou seja, para ser usado comercialmente, deve ser misturado com o combustível de aviação tradicional, mas, com o desenvolvimento tecnológico, a tendência é que a necessidade do combustível fóssil para aviação seja significativamente reduzida.
Características
Segundo Cristhian Alonso, o combustível de aviação sustentável tem as mesmas características do querosene fóssil e é intercambiável. De acordo com o professor, o combustível sustentável deve ser certificado com os mesmos padrões de qualidade e segurança do querosene fóssil.
“O querosene de aviação produzido por uma rota sintética, tem que atender exatamente as mesmas normativas que se atende com o querosene produzido via petróleo e eventualmente tem um rigor ainda maior. Então, o que se espera é a mesma eficiência, a mesma qualidade, a mesma condição de uso, mas talvez aí a gente tenha que fazer adequações em motores, em sistemas de propulsão, para adequar à medida que esses combustíveis vão se tornando disponíveis”, relatou o professor.
A presidente da Associação das Empresas Brasileiras de Empresas Aéreas (ABEAR), Jurema Monteiro tem destacado, em diversas reuniões com representantes de diferentes segmentos, que o SAF representa 65% do conjunto de medidas para zerar as emissões do setor aéreo até 2050.
“Temos defendido o alinhamento do mercado brasileiro de SAF com as regras internacionais. Acima de tudo, é necessário que haja um diálogo com o governo para que possamos construir conjuntamente políticas públicas de SAF no país”, afirmou Jurema após encontro com representantes do Poder Executivo, em 2023.
Incertezas
O Brasil já superou outras incertezas no que se refere a produção de combustíveis sustentáveis. Um dos exemplos mais claros é o uso do etanol em larga escala. A utilização começou na década de 1970, em meio a um contexto de crise mundial do Petróleo e após altos e baixos, o combustível faz parte do cotidiano de milhões de brasileiros. Christian Alonso acredita que algo semelhante pode ocorrer com o SAF na aviação.
“Eu creio que todas essas tecnologias, elas em algum momento a gente vai atingir um grau de maturidade que permita a gente trabalhar isso com eficiência, ter esses combustíveis disponíveis e a gente olhar lá pra década de 80, 70, quando começa o Proálcool, a questão do etanol no Brasil, ele começa assim também, com uma série de incertezas, com uma série de dificuldades, gargalos tecnológicos, escala, e o que a gente vê hoje é uma indústria plenamente desenvolvida e faz parte, vamos dizer assim, da nossa matriz energética e traz sustentabilidade a essa matriz, de certa forma”, disse o professor.
Expectativas
Dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas(IPCC) apontam o setor de aviação como responsável por aproximadamente 2% das emissões globais de CO2 produzidas pela atividade humana. Um dos compromissos firmados pela Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), constituída por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), e que foi assinada em tratado, é justamente a descarbonização do setor aéreo.
A avaliação deste setor é que as metas mundiais para as reduções de emissões tem estimulado o desenvolvimento de combustíveis a partir de matérias-primas sustentáveis, residuais e de baixo custo, e com baixas emissões de gases de efeito estufa (GEE). A pós-doutora do curso de Química da UFG, Isabela Dias, associa a expectativa da população, em geral, e do trabalho realizado de forma científica.
“Com esses conceitos que vão sendo criados e com essa expectativa externa é muito bom. É bom quando você vê da sociedade que ela tem conhecimento do que está sendo feito e que eles criam uma certa expectativa, olha a universidade está fazendo isso em prol da sustentabilidade a gente tem uma agenda para 2030 que é deixar de usar combustíveis fósseis e usar combustíveis renováveis, então eles conseguem ver que a universidade em si está fazendo ciência e está buscando cumprir com esse papel, dando um retorno à demanda da sociedade”, afirmou.
Metas Globais
Em 2016, diversos países adotaram o chamado Corsia, que é o Esquema de Compensação e Redução de Carbono para a Aviação Internacional. O Corsia começou como um projeto-piloto, em 2021, com quase 100 países participantes, e o restante deve embarcar até 2027.
As companhias aéreas brasileiras terão de fazer parte do Corsia (e, portanto, ter um crescimento neutro em carbono em voos internacionais) a partir de 2027. Importante lembrar que os estados-membros da Organização da Aviação Civil Internacional (Oaci) aprovaram, em 2022, uma meta global de zerar as emissões de carbono do setor até 2050.
Quanto a produção de SAF, atualmente o volume produzido representa menos de 1% da demanda global por combustível de aviação. No entanto, em 2023, foram produzidos mais de 600 milhões de litros de SAF, o dobro do ano anterior, de acordo com a Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata). A produção deve triplicar este ano. A tendência é a de que, no futuro, a demanda global aumente, a partir da oferta de mais combustíveis sustentáveis.
*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), na Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). ODS-07 Energia Limpa e Acessível e ODS 13 – Ação Global Contra a Mudança Climática.