Goiânia terá uma Casa do Autista. Sancionada no dia 19 de julho pela prefeitura, a Lei determina que seja criado um espaço “destinado ao desenvolvimento da interação social, comunicação e habilidades cognitivas e motoras”, para atender pessoas diagnosticadas com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e seus familiares.

Assim que uma legislação é sancionada, é estabelecido o prazo de 120 dias para entrar em vigor. De acordo com o secretário-executivo da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Políticas Afirmativas, Eduardo de Oliveira, a administração municipal ouvirá, durante esse período, os movimentos que lutam em favor dos autistas e outras entidades organizadas para alinhar o projeto e verificar as condições financeiras para tornar a Casa do Autista uma realidade.

A jornalista Carla Lacerda é mãe de João Lucas Lacerda Alves, uma criança de nove anos que foi diagnosticada com TEA quando tinha dois anos e dois meses. Para ela, a Casa do Autista é uma iniciativa benéfica. “Mostra que o poder público começou a prestar atenção nessa parcela da população e está fazendo o que manda a própria lei de inclusão, a Lei Berenice Piana, criada especificamente para as crianças com autismo”, disse.

João Lucas foi diagnosticado com TEA com dois anos e dois meses (Foto: Arquivo pessoal/Carla Lacerda)

Conforme o secretário-executivo, Eduardo de Oliveira, a Casa do Autista deve ter todos os serviços agregados no mesmo lugar. “Estamos falando da transformação de acesso e mobilidade para essas pessoas em um único espaço, um trabalho multiprofissional onde você tem desde neuropediatra até assistentes sociais e psicopedagogia”, pontuou.

Para Carla Lacerda, a concentração de especialidades em um só ambiente ajudará os pais e cuidadores a reduzir a “jornada” com as crianças. “Muitas vezes você vê os pais numa peregrinação, seja de carro ou de ônibus, para uma clínica no Santa Genoveva, outra no Jardim América e a outra está no Setor Bueno. Isso te toma a tarde toda”, destacou.

Quem também vibrou com a sanção da Lei que cria a Casa do Autista foi a psicóloga especialista em análise do comportamento, Ana Luiza Cavalcante, que atende crianças com TEA. “É um super projeto. Enquanto profissional e defensora da causa, vibrei com o resultado”, lembrou.

Eduardo de Oliveira, secretário executivo da Secretaria de Direitos Humanos e Políticas Afirmativas (Foto: Sagres Online)

O projeto aprovado prevê o atendimento para crianças, jovens e adultos. A instituição ainda prestará assistência aos familiares dos pacientes, que, na visão de Carla Lacerda, também necessitam.

“Isso é muito importante. Os pais têm que estar bem para conseguir atender ao tratamento da criança. Temos que pontuar esses dois aspectos: que vai reunir o máximo de especialidades no mesmo local e oferecer um atendimento para os pais, seja com grupos ou atendimento terapêutico”, disse Lacerda.

Diagnóstico

Segundo a psicóloga Ana Luiza Cavalcante, o TEA é caracterizado como um transtorno do desenvolvimento infantil. A profissional explicou que pessoas neurotípicas, ou seja, que não possuem adversidades no desenvolvimento neurológico, apresentam conexões neuronais que funcionam da mesma forma. “Se sentimos um cheiro, ouvimos um som ou comemos alguma coisa a gente vai ter as mesmas zonas neuronais acesas, são os mesmos receptores”, disse.

Já as pessoas neuroatípicas apresentam, cada uma, diferentes formas de conexões neuronais, que causam as alterações no desenvolvimento neurológico.

“Quando a gente chama as pessoas com Transtorno do Espectro Autista de neurodiversas é porque elas têm muitas possibilidades de diferentes conexões neuronais. Essas pessoas recebem e processam informações de formas únicas. Se você pega o cérebro de dois autistas distintos para fazer essa comparação, um não vai ser igual ao outro, serão diferentes”, salientou.

Autismo não é doença. Não existe exame que comprove a existência do transtorno e não há a possibilidade de ser detectado durante a gravidez. “O diagnóstico é feito por observação comportamental, temos critérios a serem seguidos, relacionados à comunicação, às habilidades sociais e à linguagem que vão possibilitar identificar e rastrear esse transtorno”, explicou Ana Luiza.

No caso do João Lucas, Carla Lacerda percebeu que o filho não apresentava o desenvolvimento esperado para a faixa etária de dois anos, além de manifestar uma “seleção auditiva”. “Aos dois anos, ele ainda não falava, não imitava. A gente chamava pelo nome e ele não se atentava. Mas se estivéssemos em outro cômodo e colocássemos a música da Galinha Pintadinha ou da Peppa ele saia correndo. Não tinha um problema de audição, mas de forma leiga, é como se fosse uma seleção auditiva”, contou a jornalista.

O tratamento do espectro autista é conduzido por um psicólogo, mas a maioria das pessoas que possui o transtorno precisa de acompanhamento com fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicomotricista, equoterapia, entre outras especialidades.

“Depois do diagnóstico é preciso que os pais formem uma rede multidisciplinar de profissionais”, evidenciou Lacerda. “Tudo isso sem contar com as consultas médicas de rotina”.

Tratamento

Assim como as possibilidades de conexões neuronais são diversas para os autistas, os tratamentos também são diferentes e apresentam várias perspectivas. A psicóloga Ana Luiza afirmou que a ciência Applied Behavior Analysis (ABA), um tratamento terapêutico de ensino de habilidades, é a que tem mostrado mais resultados científicos positivos e é usada em várias áreas da saúde.

“É uma ciência do comportamento que estuda como o ser humano afeta o mundo e como o mundo afeta o ser humano. A gente usa os reforços para aumentar comportamentos”, explicou.

Segundo a especialista, a ciência se baseia em entender o que antecede e o que acontece  depois de um comportamento para conseguir fazer alterações anteriores e posteriores para, então, moldar esse comportamento.

Na prática, é preciso ensinar, segundo Ana Luiza, a criança a fazer pedidos. “Preciso que a criança peça água, comida, peça para ir ao banheiro. É preciso criar situações antecedentes,  uma necessidade de água para que ela me peça água e eu ofereça essa água. A chance de ela me pedir água novamente da próxima vez será maior”, explicou.

O tratamento ideal para o Transtorno do Espectro Autista é equivalente à rotina de uma pessoa que trabalha 40 horas semanais. De acordo com a psicóloga, as pesquisas que mostram mais resultados são aquelas com mais horas de intervenção, modelo ideal já existente nos Estados Unidos.

“Nos Estados Unidos tem uma escola especial para o autista, onde ele vai receber esse tratamento. A partir do momento que ele atinge certos critérios, vai para o ensino regular. No Brasil, temos o ensino regular para todos com o processo de inclusão e todo mundo estuda ali. Essa é uma diferença gritante porque lá, nesse sistema, eu consigo atingir 40 horas semanais de intervenção, que é esse modelo idealizável”, argumentou.

As terapias para pessoas autistas são intensivas e repetitivas. João Lucas, por exemplo, iniciou o acompanhamento no Centro Estadual de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (Crer), em Goiânia. Mas o atendimento oferecido pela instituição não ofertava a quantidade de sessões necessárias.

“O Crer oferece, até pela demanda, meia hora por semana, é o que o poder público consegue oferecer. Não é nem de longe o que uma criança com autismo vai precisar. João Lucas chegou a fazer terapia, terapia ocupacional e equoterapia no Crer. Daria uma hora e meia por semana”, lembrou.

João Lucas Lacerda Alves tem nove anos (Foto: Arquivo Pessoal/Carla Lacerda)

Atualmente, o João Lucas faz 11 horas semanais de terapia através de atendimento via plano de saúde. Mesmo assim, a mãe contou que foi difícil conseguir. “Entrei na Justiça e consegui que o plano de saúde arcasse com a terapia do João Lucas. Hoje, ele faz 11 horas de terapia ABA, três sessões de fono e duas de terapia ocupacional, tudo custeado pelo plano, mas mediante decisão judicial”, ressaltou.

Carla sabe que nos Estados Unidos existem escolas especiais para autistas e reconhece que o modelo seria o ideal para o filho. “A diferença é que nos Estados Unidos isso ocorre dentro de um espaço onde há saúde e educação juntas. Essas áreas dialogam e a criança passa os dias nessas instituições tendo aulas voltadas para o nível de dificuldade dela”, disse.

Custo

Ana Luiza relatou que o tratamento terapêutico não é facilmente acessível no Brasil e que por muito tempo foi elitizado. “Estamos falando de um tratamento que é uma média de 40 horas mensais, dez horas semanais. Se a gente colocar a média no piso da psicoterapia, são mais de cinco dígitos de tratamento mensal para essas crianças”, informou.

A psicóloga, que atende pacientes por planos de saúde, lembrou que recentemente a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) julgou se o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde é taxativo ou exemplificativo, e que a decisão final do julgamento afetaria diretamente cerca 50 milhões de usuários de planos de saúde no país, incluindo os serviços terapêuticos para autistas.

“Um plano de saúde para uma média de salário do brasileiro, que é um salário mínimo, custa de R$ 400 a R$ 600, ainda é um valor considerável. Então, por mais que a gente tenha essas possibilidades, o tratamento não chega a todo mundo. Acredito que essa Casa do Autista vai facilitar isso, vai fazer com que as pessoas tenham mais acesso ao tratamento”, avaliou Cavalcante.

Carla Lacerda já fez as contas de quanto custaria o tratamento do João Lucas se fosse custeado fora de um plano de saúde. “Custaria mais de R$ 15 mil por mês só em terapia. Sem contar a escola da criança, alimentação, medicação para alguma comorbidade, insônia, ansiedade. Por isso que eu falo que passou da hora de o poder público atentar para a população da comunidade autista”, argumentou.

Profissionais especializados

Atualmente, quando uma pessoa é diagnosticada com o Transtorno do Espectro Autista e não possui plano de saúde, o início do tratamento é pela porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo o secretário-executivo Eduardo de Oliveira, o primeiro passo é o teleatendimento.

“A pessoa procura as demandas específicas de cada especialidade e agenda a consulta. Depois é remanejado quando vai fazer exames e até mesmo para todo o sistema de assistência que deve ser dada a essas crianças e adolescentes para condição do espectro autista. Mas a porta de entrada é o SUS como qualquer cidadão”, disse Oliveira.

Ana Luiza possui uma tatuagem do símbolo do autismo (Foto: Arquivo pessoal/Ana Luiza)

Por enquanto, a administração municipal não tem estimativa de pessoas que serão atendidas na Casa do Autista. “O censo brasileiro não tem um recorte específico para pessoas autistas. A gente tem uma estimativa americana de 1% para a população autista no mundo e no Brasil, uma média de dois milhões de pessoas com autismo. Se a gente fizer o recorte para Goiás, é fazer um cálculo da densidade populacional desse atendimento”, explicou.

Para a psicóloga Ana Luiza Cavalcante, a demanda é muito importante, pois está completamente relacionada com a oferta dos serviços. “A gente tem grande dificuldade na produção científica no Brasil. Parte desse conhecimento é exportado e existe uma barreira por conta do idioma, não somos todos falantes do inglês. Então, se já enfrentamos obstáculos para acessar essa informação, imagina para oferecer esse tratamento”, pontuou.

Para que a Casa do Autista funcione de forma adequada, os psicólogos deverão ser qualificados e treinados. “A quantidade de profissionais vai ser um desafio porque a gente tem uma demanda muito alta, mas não temos profissionais no mercado com formação adequada para fazer isso. Espero que o município também disponibilize a formação desses profissionais”, argumentou Cavalcante.

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