A produção intensiva de carne bovina está diretamente associada à degradação do meio ambiente e, consequentemente, às mudanças climáticas. Nesse sentido, a escolha por hábitos alimentares como vegetarianismo e veganismo despontam como alternativa para proteção dos animais e medida para mitigar as crise do clima. Um exemplo é o movimento “segunda-feira sem carne”, um incentivo para que as pessoas deixem de consumir carne pelo menos um dia por semana.

No entanto, a manutenção da vida humana no planeta não envolve somente mudanças de hábitos de consumo, mas principalmente a implementação de modelos produtivos sustentáveis.  Isso porque a produção intensiva de vegetais, baseada na monocultura, uso de agrotóxicos e desmatamento, ameaça a biodiversidade e o equilíbrio do ecossistema, assim como a produção de carne.

Essa é a avaliação da pesquisadora Fabiana Thomé, engenheira de alimentos, professora de agronomia da Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutora na área de desenvolvimento rural, agricultura familiar e sistemas alimentares sustentáveis. De acordo com o relatório de 2023 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), a produção de alimentos, baseada nesse modelo intensivo, implica diretamente na mudança climática.

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De acordo com a pesquisadora da UFG, o vegetarianismo e o veganismo são positivos por representarem uma proposta de consumo consciente, que envolve reflexão crítica sobre a origem e condições produtivas dos alimentos, o que pode ser aplicado para os demais produtos.

“Quando a gente pega essas tendências alimentares, estamos falando de pessoas que estão refletindo sobre o que consomem, pensando o que vão consumir, que escolhas vão fazer. Essas escolhas trazem essas características reflexiva e críticas da alimentação. A gente pensar o que está comendo é que me parece ser a chave para essa resposta”, explica Thomé.

“No caso das carnes, eu sei quem produziu, de que modo foi produzido, quais condições de bem estar animal esse futuro alimento teve. Isso se vincula a falar do consumo de alimentos orgânicos, agroecológicos, consumo de alimentos locais, valorização da agricultura familiar, do acesso à terra para quem quer produzir. Isso amplifica o debate”, ressalta a professora da UFG. “Não só vegetarianismo, veganismo, mas outras tendências que nos colocam como consumidores ativos e reflexivos, contribuem sim para minimizar ou pelo menos associar a alimentação com a mudança climática”, completa.

Essa é umas das principais questões levantadas pelo Guia Alimentar para a População Brasileira. “O Guia Alimentar nos convida a pensar a alimentação não por aquelas categorias que a gente aprendeu na escola, de carboidrato e proteína, por exemplo, mas vai nos ajudar a pensar a alimentação a partir do grau de processamento’, afirma Fabiana.

Ela destaca ainda que o consumo de ultraprocessados, além de não ser saudável, distancia as pessoas da cozinha. O Guia estimula o consumo de alimentos naturais, o que envolve o conhecimento sobre o preparo e o hábito de ler o rótulo. “Se a sua avó não reconhece isso como alimento, desconfie”, exemplifica. 

Rebanho

O Brasil tem mais gado do que gente. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou, em setembro de 2023, a Pesquisa da Pecuária Municipal (PPM), referente ao ano de 2022. De acordo com o estudo, o país tem um rebanho de 234 milhões, enquanto a população brasileira é de 203 milhões, de acordo com Censo 2022 do IBGE.

A criação de gado de corte em larga escala provoca o desmatamento para formação de pastagens ou para o confinamento dos animais, além da emissão de gases do efeito estufa, que é natural do sistema digestivo de ruminantes, mas que, devido ao tamanho da população de gado, contribui para o aquecimento global.

Fabiana Thomé explica que, no Brasil, a pecuária está presente em 2,5 milhões de estabelecimentos rurais, dos quais 75% são da agricultura familiar, ou seja, ocorrem em pequenas propriedades de até 4 módulos fiscais. Segundo ela, a pecuária em si não é a vilã das mudanças climáticas, mas sim a maneira como a criação de gado é realizada, o que vale também para a agricultura.

“A questão da sustentabilidade é fundamental, não importa a escala de produção. Desmatamento, uso de agrotóxicos, poluição e esgotamento dos recursos hídricos, perda da biodiversidade, incluindo os polinizadores que são fundamentais para o ecossistema. Tudo isso não deveria nem estar sendo discutido nem negociado”, alerta.

Pecuária regenerativa

Como alternativa ao modelo produtivo vigente, Fernanda Thomé cita um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) que formula estratégias para o cultivo de gado em harmonia com o meio ambiente através da chamada pecuária regenerativa. O estudo aponta que em  áreas de pastagens naturais, o próprio pastoreio tem um papel importante para conservação da biodiversidade. 

“Diferentemente da pastagem que é feita depois do desmatamento, numa pastagem natural existem centenas de espécies forrageiras que contribuem para o equilíbrio ecológico e a manutenção da natureza, pautada em bem estar animal, alimentação diversificada para o gado que, por conta de todos esses fatores contribuem para minimização dos gases de efeito estufa”, explica.

Nesse modelo produtivo, uma avaliação técnica da área limita a quantidade máxima de gado por hectare, uma vez que a alta presença bovina em um pequeno espaço ocasiona a compactação do solo, o que dificulta a fertilidade da terra. Um dos locais apontados pelo estudo como ideal para esse tipo de pecuária é o pampa, bioma que ocorre no sul do Rio Grande do Sul. Essa região, conhecida como campanha gaúcha, é caracterizada pela vegetação de pequeno e médio porte que recobre terrenos planos e suavemente ondulados.

“A gente poderia estar produzindo gado de corte considerando as pastagens naturais do pampa, mas de alguns anos pra cá está avançando para a produção de grãos. Elimina-se a pastagem natural que poderia ser nosso grande trunfo, ocasionando erosão de solo, degradação do meio ambiente e comprometimento dos recursos hídricos.”

A professora lembra a cultura indígena como forma de repensar o modo como nos relacionamos e enxergamos a natureza.  “Nosso caminho seria inspirado nos povos originários, produzir se sentindo parte da natureza, não nos apropriarmos dela para exaurir seus recursos. Ao promover saúde para o ambiente, naturalmente estamos promovendo saúde para as pessoas”, completa.

Consumo e desperdício de alimentos

Repensar o que consumimos também implica em nos atentarmos ao desperdício de alimento, tanto no ambiente doméstico como nas indústrias e empresas. “São alimentos que não chegam à mesa dos consumidores porque têm perdas na distribuição ou que, depois que chegam, são descartados porque perderam prazo de validade ou foram adquiridos em maior quantidade”, observa Thomé.

Ela cita os cinturões verdes, áreas agricultáveis citadas às margens dos grandes centros urbanos, como alternativa para redução do custo de produção e do trânsito do alimento até o consumidor. “Precisamos pensar em produzir localmente e pensar em circuitos curtos de produção de alimentos. Pensar numa ideia de cinturões verdes, produzir em grande escala, mas em maior quantidade de propriedades, que poderiam abastecer os centros urbanos com produção no entorno”, salienta.

Dados de um relatório do Vigisan de 2022, que apresenta informações sobre a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) no Brasil, apontam que 58% da população está em situação de insegurança alimentar. Além disso, 15% está em quadro grave, que significa situação de fome. “A produção aumentou significativamente, mas esses alimentos estão chegando para as pessoas? Para grande parte da população, embora a gente tenha alimentos, não é possível adquirir.”

Desigualdade

Por fim, a pesquisa ressalta que a redução das desigualdades é outra política pública que não pode ficar de fora desse assunto. De acordo com o Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos), 42% do território agricultável no país está concentrado em 0,8% das propriedade rurais. Ao mesmo, 1,4% dessa área apropriada para o plantio pertence a 33% de propriedades rurais. Nesse sentido, o tema da reforma agrária é apontado como fundamental para a mudança do cenário produtivo. No entanto, ela precisa vir acompanhada de outras ações.

“A Política Nacional de Reforma Agrária é pensar o acesso à terra para quem quer a terra. Mas ter a terra sem ter políticas de habitação, saúde, acesso à infraestrutura de um modo geral e políticas de comercialização é pensar uma política incompleta. Dar a terra sem esse conjunto de políticas não é reforma agrária. Reforma agrária é pensar, além do acesso à terra, proporcionar que essas famílias que tiveram acesso à terra tenham condições de produzir e dinamizar os mercados locais”, conclui a engenheira de alimentos.