A comunidade quilombola Kalunga Engenho II, de Cavalcante de Goiás, está vibrando com a conquista de Jean Pereira dos Santos. Aos 19 anos, o ex-aluno do Colégio Estadual Quilombola Kalunga José Cabral de Araújo foi aprovado na Northwestern University, a sexta melhor universidade dos Estados Unidos,  localizada em Evanston, no estado de Illinois.

“Até agora ainda não caiu a ficha”, disse Jean. O estudante sempre sonhou em estudar fora do país, desejo que carrega mesmo desde a infância. Aos oito anos ouvia as pessoas da cidade comentando sobre o curso de inglês e isso despertou a sua curiosidade sobre o país. “Eu sempre fui aquela criança curiosa e eu sempre quis muito aprender um novo idioma”, contou.

Agora que o sonho se tornou realidade, Jean nem acredita que conseguiu. “Eu tô sonhando agora com tudo isso que tá acontecendo. Tanto é que no meu vídeo que gravei abrindo o resultado eu falo “mentira”, “mentira”, “mentira” inúmeras vezes, porque foi algo que eu nunca imaginei receber, porque eu já fui rejeitado e já fiquei em lista de espera. Mas receber uma aprovação, aí eu fiquei tipo: meu Deus! Eu nunca cheguei nessa parte, eu não sei o que vai acontecer”.

Do sonho à conquista

A família de Jean não tinha condição financeira para pagar o curso de inglês que ele queria fazer e o estudante disse que tampouco tinha escola de idiomas na cidade. As pessoas com mais condições financeiras faziam as aulas em outras cidades e esse era o caminho que ele imaginava seguir, apesar de conhecer as suas dificuldades.

“Eu costumo dizer que a gente só sonha quando temos pessoas de referência, quando a gente sabe que um dos nossos conseguiu. Então, para mim, ao mesmo tempo que eu sempre sonhei, era algo que era muito distante, porque a gente só consegue sonhar com algo que tá na nossa realidade. E era um sonho muito longe, algo que nunca pensei que pudesse realmente se concretizar”, disse.

Jean passou para uma universidade americana (Foto: @radiokalungueira)
Jean passou para uma universidade americana (Foto: @radiokalungueira)

O sonho começou com o inglês, que ele aprendeu inicialmente sozinho em meados de 2020 pelo YouTube. Além da plataforma, Jean teve o auxílio de Jéssica, uma de suas referências e inspirações, que também é quilombola Kalunga. Segundo ele contou, Jéssica passou por dificuldades no curso universitário de medicina por não saber inglês e o empenho da amiga o motivou a aprender.

“Durante a pandemia, ela precisou se ausentar da faculdade e foi pra comunidade dar aula de reforço e essas aulas de inglês. Ela se comoveu muito comigo e começou a me dar aula do idioma, e eu comecei a pegar a base. A gente criou uma amizade muito incrível desde então, mas depois ela precisou retornar pra faculdade e eu continuei”, contou.

A construção do caminho possível

Jean contou com o YouTube, sites, filmes, jogos e Tik Tok para se preparar no idioma. Mas precisou de muito mais para conseguir alcançar o sonho da bolsa de estudos. “Eu contei com algumas mentorias que dão suporte para jovens de baixa renda, então eles financiam tudo. Se fosse pra sair do meu bolso eram mais de dez mil reais em provas de idioma, que é o SAT, que é tipo Enem americano. Tem outras coisas também que precisa pagar, como a taxa para aplicação”, disse.

O SAT (Scholastic Aptitude Test) é um Teste de Aptidão Escolar comumente utilizado pelas universidades estadunidenses no processo de admissão para seus cursos de graduação. O estudante quilombola sabe que seu empenho para aprender o inglês foi fundamental para o processo.

“É um negócio que é muito elitizado [o teste] e que eu não teria condição de pagar. E aí eu contei com o apoio da LALA, que é a maior academia de liderança da América Latina, porque eles têm uma mentoria que é pra jovens que estão impactando a sua comunidade de alguma forma positiva e fazendo impacto social”.

Jean também participou da mentoria do Daqui Pra Fora. Ao participar das mentorias, ganhou viagens e os testes pagos em Brasília. “Essa preparação durou dois anos porque no meu primeiro ano aplicando, que foi em 2023, eu não fui aceito em nenhuma faculdade. Já em 2024 eu apliquei somente pra Early Decision”, afirmou.

Impacto social do Jean

O Early Decision é um teste muito específico que busca candidatos decididos com a instituição que deseja estudar. Jean disse que ele busca o match entre a faculdade e o estudante, nos valores, perfil, necessidades para a permanência e comprometimento com a instituição. “Eles analisam o seu perfil e se realmente der aquele match eles vão te chamar. E foi isso que aconteceu”, disse.

Nos quase três anos que se preparou para se submeter aos testes, um deles foi um período sabático. Mesmo sabendo que sua opção foi para alcançar o objetivo de estudar fora, ele teve medo de ser visto como alguém que perdeu o engajamento com a própria educação. No entanto, foi justamente esse incômodo que  tornou o caminho dele possível.

“Não fazia sentido ir pra uma faculdade naquele momento sem melhorar a educação da minha comunidade. Então comecei a implementar um projeto que se chama Tocando em Frente na escola onde eu estudei, onde a gente leva o currículo adaptado com formato da BNCC de uma forma gamificada. Então a gente leva inglês, intercâmbio, arte e jornalismo, programação, robótica, debates e simulações da ONU. A gente leva tudo isso de uma forma adaptada para dentro das escolas, com gamificação e apostilas, tudo adaptado para comunidades indígenas e comunidades quilombolas”.

Com esse projeto, Jean entrou para a organização de mentoria que impacta mais de onze mil crianças no Brasil inteiro e aplicou o projeto em 2024.

Mais uma inspiração para a comunidade

Jean Pereira dos Santos é agora mais uma grande inspiração para as pessoas da comunidade quilombola Kalunga Engenho II e se junta a pessoas do território que já admira. Um grande exemplo para ele é a advogada Vercilene Dias que representa as comunidades quilombolas na Organização das Nações Unidas (ONU). “Isso é muito magnífico!”, exclamou.

O momento que está vivendo o deixa ainda mais agradecido à mãe, que foi uma das primeiras mulheres quilombolas a entrar na faculdade e depois ser professora na comunidade. Além da mãe dele, todos na comunidade vibraram com a notícia da aprovação e Jean afirma que todos no território venceram com ele. 

“Desde criança eu sempre aprendi que quando um de nós vence todos nós vencemos juntos, porque é sempre isso, né, aquele lema do Ubuntu: ‘eu sou porque nós somos’”, contou. 

Novos sonhos para realizar

O estudante irá para os Estados Unidos em agosto com a bolsa de 100% e um auxílio da universidade para que consiga viver na cidade. A parte de sonhar e buscar a vaga ele já tirava de letra, mas agora diz que se sente um pouco perdido com as muitas coisas que ainda há para fazer. Mas, claro, as suas expectativas com o futuro estão altíssimas.

O novo sonho de Jean é voltar e contribuir com melhorias para a vida do povo quilombola, não só dos Kalunga, mas do Brasil inteiro. “Eu acredito que é igual aquela música do Emicida,  que diz que viver é partir, voltar e repartir”, disse.

Nova jornada do Jean será nos Estados Unidos (Foto: @jeanstx_)

Com as expectativas muito altas para a nova jornada, Jean contou que está com medo, mas acredita que é um sinal que os próximos anos serão desafiadores.

“Eu estou muito feliz com tudo que tem acontecido, é uma jornada nova e vai mudar muita coisa. Eu vou estudar políticas públicas e educação que faz total sentido na minha trajetória. Por isso, eu quero trazer melhoria para a minha comunidade, levar a minha faculdade para outras pessoas quilombolas, para outros quilombos, construir essa ponte. Porque eu não quero simplesmente chegar, falar que eu consegui e simplesmente abandonar o barco do tipo que ninguém mais vai vir. Eu quero que esse barco retorne e que venha cheio”, finalizou.

*Este conteúdo está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta matéria, o ODS 04 – Educação de Qualidade.

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