Norberto Salomão
Norberto Salomão
Norberto Salomão é Advogado, Historiador, Professor de História, Analista de Geopolítica e Política Internacional, Mestre em Ciências da Religião e Especialista em Mídia e Educação.

É possível uma justificativa moral para a guerra?

Quero iniciar nossa reflexão partindo inicialmente da compreensão da diferenciação entre ética e moral.

A palavra ética tem origem no antigo idioma grego, ethos, e significa, “hábito”, “comportamento”, “modo de ser”. No aspecto filosófico, corresponde ao estudo das ações e do comportamento humano e seu objeto é refletir sobre os princípios que orientam as ações humanas.

Já a palavra moral é de origem latina, moralis, e significa “costume” “maneira”, “caráter”.

Apesar desses termos serem utilizados muitas vezes com o mesmo sentido, ética e moral se diferenciam. Enquanto a ética possui um caráter universal e imutável, pois se ocupa do estudo dos princípios que orientam as ações humanas, a moral relaciona-se aos comportamentos esperados dos indivíduos em sociedade, de acordo com os costumes, as tradições, os valores e as leis vigentes em um determinado tempo e em uma determinada sociedade.

Bem, a partir desses conceitos iniciais, poderemos refletir melhor sobre a questão da moral que envolve as relações internacionais e as narrativas que justificaram e justificam as guerras.

Nessa perspectiva, entendo que o principal ponto é analisar se os mesmos conceitos de normas que servem para regular as relações entre indivíduos na sociedade podem servir para balizar o relacionamento entre os Estados. Na verdade, não há uma conclusão única nesse debate. Dessa forma, para uma melhor apreciação, nesse tipo de conversa, precisaremos recorrer a algumas correntes teóricas.

Entre os teóricos do conceito da guerra justa, desde os que são partidários da perspectiva religiosa até os defensores de um argumento secular, a guerra pode ser justificada por um viés moral. Assim, essa corrente teórica estabeleceu princípios que visam determinar as condições em que a prática da guerra é justa.

Alguns desses princípios são: uma causa justa (como por exemplo, a defesa contra uma agressão iminente); autoridade apropriada e declaração pública (a decisão de guerra deve ser pública e declarada pelas autoridades competentes); último recurso (quando todas as tentativas pacíficas foram esgotadas). Além desses princípios, há outros que envolvem as regras internacionais sobre armamentos proibidos e sobre os direitos dos prisioneiros de guerra.

Além de dar um viés moral, que respalde a condição de guerra, a teoria da guerra justa também busca atribuir uma espécie de manual de ética para (e na) guerra, pelo qual as autoridades de Estado e os comandantes militares possam ser responsabilizados por suas decisões e ações, no âmbito internacional.

Em contrapartida à corrente que advoga a possibilidade de uma guerra justa e com respaldo moral, evidencia-se a Teoria Realista e suas vertentes.

A partir de referências teóricas tradicionais, de autores como Maquiavel e Hobbes, estruturou-se a Teoria Realista nas relações internacionais, a partir do século XX. Essa corrente de pensamento tem uma perspectiva pragmática de política internacional, segundo a qual o Estado é o elemento central e deve, em primeiro lugar, sempre buscar a manutenção de sua existência e das suas funções de poder.

De maneira geral, a concepção realista acredita que as relações internacionais são caracterizadas por uma espécie de anarquia que inviabiliza uma harmoniosa relação política internacional entre os Estados. Assim, deve prevalecer o princípio da autoajuda, que se baseia na defesa dos interesses próprios de cada Estado e que podem variar desde a garantia da manutenção da paz até a utilização da guerra como forma de expansão de seu poder.

Os realistas defendem a ideia de que os padrões morais aplicados às relações internacionais são uma utopia. Esses teóricos identificam-se com uma espécie de ceticismo moral, pois afirmam que as normas morais jamais conseguiram regular efetivamente a ligação entre os Estados, uma vez que o limite dessas normas é justamente a gama de interesses particulares de cada um desses Estados. Assim sendo, as relações internacionais são conflituosas por essência e a guerra é, muitas vezes, a forma de dar solução a essas diferenças.

A partir desse tipo de argumentação, que de maneira geral engloba as variadas visões das correntes do pragmático pensamento da Teoria Realista, as convenções morais podem ser bastante adequadas e desejáveis para regular as relações sociais, mas quando aplicadas às relações entre os Estados normalmente resultam em desastre para aquele que a adota, pois um Estado que se articula internacionalmente referenciado pela natureza moral, se fragiliza e torna-se vulnerável frente aos outros.

Por esse prisma, os Estados dependem sempre da força para defenderem suas autonomias e liberdades. Assim, a lógica da guerra é apenas a continuação da política, só que por meios diversos ao da diplomacia convencional. Esse conceito é também denominado de “realpolitik”.

Ao aplicarmos alguns desses conceitos teóricos, para tentarmos avaliar melhor o atual quadro de crise na Ucrânia e a eventual declaração de guerra por qualquer uma das partes, é de suma importância que observemos com atenção a disputa de narrativas que cada um dos lados se utiliza para respaldar seus discursos e ações.

Vejamos alguns argumentos que buscam explicar e por vezes justificar a atual crise na região euroasiática:

  • A Rússia quer reconquistar o protagonismo geopolítico que já foi da extinta URSS e, para isso, identifica no Ocidente, com a União Europeia e a OTAN, como inimigos comuns a serem combatidos pelo povo Russo;
  • A gênese da atual tensão remonta a crise política que se efetivou em 2014 com a anexação da Crimeia pela Rússia. A reação do Ocidente não foi a guerra, mas, sim, sanções econômicas contra a Rússia e o avanço de ações da OTAN e de seus aliados;
  • A Rússia apoia os separatistas ucranianos na região leste da Ucrânia, em Donbass (Donetsky e Luhansk), e visa desestabilizar o governo de Kiev;
  • O Kremlin não aceita a aproximação da Ucrânia com a OTAN, pois pretende ter total domínio sobre a região euroasiática;
  • A OTAN tem adotado uma postura ostensiva na região e, portanto, representa uma ameaça à segurança nacional da Rússia;
  • O governo Putin é intransigente e exige que a Otan reduza sua presença no leste europeu;
  • Putin adota uma espécie de “estratégia ioiô”, pois de um lado faz acenos ameaçadores e de outro dá a impressão de que deseja uma saída diplomática;
  • Os EUA e seus aliados do Ocidente usam a desculpa de defender a democracia para continuar a exercer uma influência global tanto no campo econômico quanto no campo militar.

Pois bem, elencados os principais argumentos de cada uma das principais partes envolvidas nesse quadro de tensão, parece claro que, além das demonstrações de força, com exercícios militares que evidenciem seus potenciais bélicos, há uma preocupação em buscar uma narrativa que dê respaldo moral para as ações que se anunciam, ou seja, tudo indica que, em caso de guerra, cada uma das partes envolvidas buscará convencer a opinião pública internacional de que apenas repeliu uma agressão iminente e que, portanto, agiu dentro dos preceitos morais preconizados e de que sua guerra é plenamente justa.

Assim, antes mesmo de uma guerra com armas, já acompanhamos uma guerra de narrativas.

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