Compartilho com os leitores esse texto do professor Marcos Crispim, que nos inspira a um olhar diferente do futebol. Do passado, da alegria e irreverência do brilhante Mané Garricha. Da época de romantismo do esporte.

Futebol feito para alegrar

“Garrincha foi um pobre mortal que ajudou o Brasil inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho”. Carlos Drummond de Andrade.

No dia 16 de junho de 1950, um menino do interior do Rio de Janeiro voltava do mato onde tinha ido caçar passarinho quando viu todo mundo chorando na rua. Imaginou uma tragédia: talvez um desastre de trem com dezenas de mortos? Mas, não era trem descarrilhado: era povo chorava a derrota do Brasil para o Uruguai na Copa do Mundo de futebol transmitido pelo rádio. O menino que driblava todo mundo no campinho de terra da vizinhança, achou um exagero chorar por causa do futebol. Futebol foi feito para alegrar e não para levar às lágrimas! Mal sabia aquele garoto de Majé, Rio de Janeiro, Manuel Francisco dos Santos, apelidado de Garrincha, que ele e seus dribles trariam alguns anos mais tarde alegria e a felicidade não somente para Pau Grande (a região onde vivia) como para o Brasil inteiro.

Brincalhão por natureza e de uma simplicidade sem limites, o menino driblador não sonhava com o auge e com a glória. Queria sim, deixar de trabalhar na fábrica de tecido para ter mais tempo para caçar passarinho e jogar pelada. Mas, assim como suas pernas tortas, a vida tinha também suas idas e vindas, curvas e retas. Quando o menino jogou fora o estilingue para calçar chuteiras pela primeira vez, começou a protagonizar a mais improvável história de um jogador de futebol. Como poderia um garoto com perna direita seis centímetros mais curta que a esquerda e com ambas as pernas tortas para o seu lado esquerdo, deixar no chão tantos zagueiros?

Nilton Santos, o maior lateral esquerdo de todos os tempos, levou uma caneta do Garrincha no primeiro teste dele no Botafogo. E olha que em toda a carreira, o lateral só tomou três bolas debaixo da perna (incluindo essa do treino) – Ainda bem, pôde declarar depois de alguns anos jogando no mesmo time de Garrincha, se fosse meu adversário eu teria levado uma saraivada de canetas.

O futebol praticado pelo Mané era um futebol em estado de graça. Um futebol de pura espontaneidade, romântico, apaixonante. Um futebol de inventividade absoluta, um baile de beleza. A bola amava aquelas pernas tortas. E era absolutamente correspondida.

Quando sagrou campeão do mundo de futebol em 1958 na Suécia, conta-se que Garrincha falou aos seus companheiros de seleção que achou o campeonato rápido e sem graça. Bom mesmo eram as disputas do campeonato carioca: tinha turno e returno.

Deixando de lado as lendas e casos pitorescos que envolvem o craque, na verdade, acredito que o Mané depois do apito final na Suécia lembrou de sua querida Pau Grande em Majé. Seus olés nos “Joões” como ele denominava as vítimas de seus dribles não só contribuíram para sagrar o Brasil pela primeira vez campeão do mundo como realizou seu íntimo desejo. No fundo, ele queria que pelas ruas estivesse aquele mesmo povo que tinha chorado na derrota do Brasil para o Uruguai. Desejava poder estar com os seus conterrâneos comemorando. Afinal, ele tinha dito e previsto: futebol foi feito para alegrar e não para levar às lágrimas.

Tanta alegria trouxe nosso “anjo de pernas tortas” para os brasileiros que a melancólica doença do alcoolismo contrasta com uma carreira tão vitoriosa. Mas, tudo me leva a crer que nosso craque joga nos campos azuis do céu. Gente tão simples e que tanto fez por nós, só pode estar por lá dando suas fintas e canetadas. A bola, eterna amante, foi junto com certeza. Porque é tudo o que a bola quer: brincar pela grama da eternidade com aquelas milagrosas pernas tortas que tanto riso e graça legou.

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