JOÃO GABRIEL
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O governo de Jair Bolsonaro (PL) publicou nesta sexta-feira (16) uma instrução normativa que flexibiliza a exploração de madeira em terra indígena (TI), inclusive com participação de grupos não indígenas. Por lei, os recursos naturais dessas áreas podem ser utilizados apenas pelos próprios indígenas.

O documento, assinado pelos presidentes da Funai (Fundação Nacional do Índio), Marcelo Xavier, e do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Eduardo Bim, é descrito como um “plano de manejo florestal sustentável”.

A criação de planos de manejo não é raridade e permite criar exceções à lei. O dispositivo, por exemplo, é usado para que indígenas e ribeirinhos possam pescar peixes em determinadas regiões do Amazonas, por exemplo.

Documentos obtidos pela Folha, no entanto, indicam que o plano publicado pelo governo Bolsonaro pode atender a interesses de madeireiras, que vinham pressionando por isso, e que a norma tem sido gestada nos órgãos há algum tempo.

Em 2021, a Funai foi consultada pela Sollos, fabricante de móveis de madeira, acerca da viabilidade da criação de um “projeto-piloto” de plano de manejo sustentável para a Terra Indígena Baú, no Pará.

O ofício, ao qual a Folha teve acesso, indica que “não há impedimento legal” para tal atividade, mas que ela carece de regulamentação, e afirma que “estão sendo realizadas articulações interinstitucionais entre Funai e Ibama para a construção de uma instrução normativa conjunta” para resolver a questão.

O documento é da Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da fundação. Não é possível afirmar, no entanto, se a instrução à qual ele se refere é exatamente a que foi publicada nesta sexta, ainda que atenda à demanda da empresa.

A Sollos tem lojas em 15 países e, em seu site, diz que busca “integrar o melhor de nossa cultura às referências internacionais através do uso racional da madeira como matéria-prima, do controle dos processos e métodos de produção em concordância com todos os requisitos ecológicos e do investimento em equipamentos de última geração aliados a técnicas artesanais”.

Procurada por meio de sua assessoria de imprensa, a empresa não se posicionou. A Folha também teve acesso a ofícios trocados entre a Funai e o Ibama, inclusive por seus presidentes, no decorrer de 2022, que debatem a criação do plano para exploração de madeira.

Em janeiro de 2022, por exemplo, Marcelo Xavier escreve a Eduardo Bim para solicitar “que sejam realizadas as respectivas adequações à minuta” sobre o plano de manejo florestal em TIs.

Além disso, apesar de ter sido editada no Diário Oficial a duas semanas do fim do governo Bolsonaro, o título da instrução normativa diz que ela é de “31 de outubro de 2022” -ou seja, em tese está pronta desde o dia seguinte ao segundo turno da eleição, da qual o atual presidente saiu derrotado.

Um dos focos da equipe de transição do futuro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem sido justamente o chamado revogaço.
Os grupos de trabalho da transição propõem que uma série de medidas editadas por Bolsonaro sejam revogadas assim que possível pela próxima gestão -boa parte delas na área do meio ambiente, mas também na segurança pública, por exemplo.

Segundo Aloizio Mercadante, foram entregues a Lula 23 páginas com possíveis normas a serem revogadas. A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e o grupo de trabalho sobre questão indígena da transição também propuseram uma série de reversões relacionadas ao tema.

“As questões de normas e regulações estão sendo analisadas pelos grupos de trabalho de cada área, que irão encaminhar ao presidente e futuras autoridades de cada área as suas recomendações”, afirmou a assessoria de imprensa de Lula, que acrescentou ainda que, em que pese os relatórios temáticos já terem sido finalizados, novas informações ainda podem ser acrescidas.

Há, dentro do movimento indigenista, o debate sobre a regulamentação, ou não, da atividade madeireira em terras indígenas. Há comunidades, inclusive, que demandam a criação de regras para a extração.

Críticos da medida publicada pelo governo Bolsonaro, no entanto, afirmam que ela tem brechas para exploração de madeira por parte de não indígenas e também para realização de obras sem a previsão de estudos de impacto ambiental.

“A instrução editada no final de mandato de um governo derrotado, sem consulta aos povos indígenas e à revelia da Constituição e do Estatuto do Índio, porque permite que não indígenas se apropriem dos recursos florestais que são destinados ao usufruto exclusivo dos indígenas”, afirma a advogada Juliana de Paula, do ISA (Instituto Socioambiental).

A norma publicada nesta sexta permite a exploração de madeira pelos indígenas, mas também por sociedades de composição mista, e define estas como: “forma de associação ou cooperativa onde é admitida a participação de não indígenas, desde que essa participação seja inferior a cinquenta por cento (50%)”.

Além disso, segundo De Paula, a norma abre brecha para que sejam realizadas obras, como estradas e até edifícios, dentro de terras indígenas, sem estudo de impacto ambiental.

O artigo 15 do documento diz que podem ser realizadas, por meio de contratação, a “abertura de estradas, pátios e ramais” e a “construção de obras de arte especiais, tais como pontes, estradas, obras de drenagens e outras”, além de “edificações”.

“Para a realização do manejo florestal, a instrução prevê que poderão ser construídas estradas e edificações, mas não explica se essas atividades serão licenciadas, nem como. Isso poderá gerar mais impacto sobre os indígenas e aumento do desmatamento”, afirma ela.

Historicamente, os territórios indígenas concentram algumas das maiores áreas de floresta preservada do Brasil. Sob o governo Bolsonaro, contudo, o desmatamento nessas áreas disparou.

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