Norberto Salomão
Norberto Salomão
Norberto Salomão é Advogado, Historiador, Professor de História, Analista de Geopolítica e Política Internacional, Mestre em Ciências da Religião e Especialista em Mídia e Educação.

Grupo Wagner reflete a “pejotização” nas guerras

Desde os tempos mais primitivos até nossos dias os conflitos armados fazem parte da história da humanidade. Eles ocorrem pelos mais variados motivos: disputas territoriais, rivalidades étnicas, perseguições religiosas e interesses políticos e econômicos.

Ilustração do vintage de uma batalha histórica durante a Guerra Civil

Mas, tudo indica que as primeiras experiências de conflitos entre grupos humanos estão ligadas às disputas por território e por água. Assim foi sendo construída imagem do guerreiro como uma figura honrada e que estava intimamente ligada a ideia de pertencimento ao seu grupo e pela disposição de entregar sua vida nessa missão.

Essa imagem de defesa do grupo e depois de defesa da pátria, estruturou o conceito sobre os militares de forças regulares como heróis, homens honrados e incorruptíveis. O princípio de que eles lutariam sempre por amor à sua causa e à sua bandeira tornou-se algo óbvio e natural.

Um exemplo clássico dessa imagem, honrada e ilibada, é a dos cavaleiros medievais europeus. Eles eram regidos pelo Código da Cavalaria, um sistema moral pelo qual deveriam defender os vulneráveis, como viúvas, crianças e idosos. Para esses guerreiros na bastava apenas a força, pois eles deveriam ser disciplinados, dizer apenas a verdade e jurar fidelidade e obediência aos seus superiores.

Foto: Creative Commons Zero – CC0

Porém, nem sempre um rei ou um Estado tem forças suficientes ou adequadas para vencerem determinados tipos de combate. Nesses casos recorriam a guerreiros “avulsos”, ou seja, que não tinham nenhum vínculo e lutavam por pagamento: os mercenários.

O termo mercenário ganhou um sentido depreciativo, como aquele que age ou trabalha apenas por vantagens materiais, sem o vínculo e o compromisso afetivo com a causa em questão. Assim, os mercenários se tornaram um arriscado expediente de guerra, pois, como é interesseiro e venal, pode facilmente mudar de lado.

Para o mercenário, na maioria das vezes, não interessam as motivações do conflito, para disponibilizarem os seus serviços para um empregador, público ou privado, o que interessa é o pagamento previamente ajustado, mas cujo valores podem ser alterados ao sabor das circunstâncias. Tal condição pode colocar o contratante em uma posição de refém desse tipo de força militar paralela.

Nicolau Maquiavel. Pintura de Santi di Tito, séc. XVI.

Nicolau Maquiavel, autor florentino do século XV, se dedicou a analisar essa questão e afirmou que o príncipe deveria procurar constituir tropas próprias, sendo um risco recorrer aos mercenários mesmo que isso lhe garantisse a vitória. Na obra “O Príncipe”, no seu capitulo XII, sob o título “Das Espécies de Milicia e dos Soldados Mercenários”, Maquiavel faz uma referência direta a essa questão, como é possível observar no fragmento:

“(…) Direi, assim, que as forças com as quais um príncipe preserva seu Estado, ou são suas próprias ou são mercenárias, ou auxiliares ou mistas. As mercenárias e as auxiliares são inúteis e perigosas.  Se alguém mantiver seu Estado apoiado nas tropas mercenárias, jamais estará firme e seguro, porque elas não se unem aos príncipes, são desunidas, ambiciosas, indisciplinadas, infiéis; galhardas entre os amigos, vis entre os inimigos; não têm temor a Deus e não têm fé nos homens, e tanto se adia a ruína, quanto se transfere o assalto; na paz se é espoliado por elas, na guerra, pelos inimigos. A razão disto é que elas não têm outro amor nem outra razão que as mantenha em campo, a não ser um pouco de soldo, o qual não é suficiente para fazer com que queiram morrer por ti. Querem muito ser teus soldados enquanto não estás em guerra, mas, quando esta surge, querem fugir ou ir embora.”

Contemporaneamente, um autor que tem se dedicado a essa temática é o francês Walter Bruyère-Ostells. Ele é um especialista em história da guerra e dedica-se aos estudos de antropologia do combate e movimentação de combatentes não convencionais realizados por mercenários e voluntários armados. Ele também é diretor do departamento de História e co-responsável pelo Mestrado em Geoestratégia, Defesa e Segurança Internacional no Institut d’Études Politiques (IEP) d’Aix-en-Provence , no sul da França. 

Entre as publicações de Bruyère-Ostells está “História dos mercenários: de 1789 aos nossos dias”. Nessa obra ele desenvolve um histórico sobre os mercenários, de como eles constituem um dos ofícios militares profissionais mais antigos do mundo. Segundo ele, as forças mercenárias foram muito utilizadas como a espinha dorsal dos exércitos europeus desde a Idade Média. É possível observar atuação semelhante nas guerras de independência na América e na África. Na atualidade continuam a fazer parte dos principais conflitos em andamento pelo mundo.

Para Bruyère-Ostells, os mercenários são vistos de forma ambígua, pois para muitos são considerados criminosos, já para outros são aventureiros destemidos. O fato é que esse tipo de empreendimento militar tem sido cada vez mais intenso e ganhado visibilidade. O historiador francês destaca em sua obra como esse serviço manteve-se após a Revolução Francesa e ganhou novos contornos na atualidade do mundo globalizado, enfatizando que tem havido a proliferação de empresas militares privadas, que movimentam cerca de 100 bilhões de dólares anualmente.

As ações beligerantes de Vladimir Putin na Ucrânia, desde 2014, revelou as ações do grupo mercenário mais famoso do momento: o Grupo Wagner.

O primeiro-ministro Vladimir Putin visita a nova fábrica Concord, que fornece refeições pré-preparadas para escolas (Foto: Wikimedia Commons)

O grupo teria surgido por volta de 2014, durante a Guerra civil no leste da Ucrânia. Essa misteriosa organização militar composta por soldados falantes do idioma russo, passou posteriormente a atuar em vários países do mundo, destacadamente na Síria, no Sudão e na Líbia, normalmente ao lado de aliados da Rússia de Putin.

Segundo os relatos mais confiáveis, após a atuação no Leste da Ucrânia, esse grupo passou a exercer suas ações militares na Guerra Civil Síria, em 2015, apoiando as ações do governo do ditador Bashar al Assad. Por lá esses mercenários, além de protegeram poços de petróleo e gás e treinaram soldados sírios e milicianos favoráveis ao governo Sírio, também participaram dos combates em Alepo.

O Grupo Wagner (em russo Группа Вагнера, transliterado Grupa Vagnera) é uma organização paramilitar de origem russa.

No Sudão, país africano marcado por décadas de instabilidade política, golpes de Estado e crises humanitárias, o grupo Wagner também atua fortemente.

Em virtude dos sucessivos governos ditatoriais que tem marcado a vida política do Sudão, inclusive com massacres sobre determinados seguimentos da população, como no caso do território de Darfur, o país tem sofrido sanções internacionais. Em virtude dessas sanções do Ocidente, o Sudão estreitou suas relações com a Rússia desde 2017.

Sudão do Sul: um referendo incapaz de encerrar o conflito interno (Foto: arte/iG)

Os acordos entre o Sudão e a Rússia incluíram a permissão para que uma subsidiária do Grupo Wagner passasse a exportar ouro para a Rússia. O ouro constitui cerca de 45% do total das exportações do Sudão, que varia entre 26 e 30 toneladas por ano. Curiosamente as exportações de ouro foram excluídas das sanções internacionais e, segundo o jornal britânico The Telegraph, o ouro do Sudão ajudou a Rússia a atenuar os efeitos das sanções internacionais relativas à guerra na Ucrânia.

O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, em visita ao Sudão (09/03/2023), defendeu as operações do Grupo Wagner na África, como forma de “normalizar a situação na região” contra as ameaças “terrorista”. (Foto: Emmanuel Hungrecker)

Para entender melhor a atuação desse grupo é importante esclarecer sua composição. Grupo Wagner é uma empresa paramilitar privada. É uma rede semioficial de mercenários e/ou um exército privado com fortes ligações ao governo russo.

De acordo com a Constituição russa, o estabelecimento de empresas militares privadas é ilegal, pois estabelece que a responsabilidade pela segurança e defesa cabe exclusivamente ao Estado. Porém, a lei autoriza empresas estatais a terem forças de segurança armadas privadas. É valendo-se dessa brecha na lei russa que o Grupo Wagner se organizou e atua.

Na atual guerra da Ucrânia as notícias sobre as ações do Grupo Wagner têm sido constantes. o fundador do grupo, Evgeny Prigozhin, em um vídeo publicado no Telegram, afirmou, no início desse mês de março, que a cidade de Bakhmut está praticamente cercada pelas forças russas. Bakhmut é considerada ponto estratégico para o avanço russo na Guerra.

Contudo, nem tudo são flores nessa relação entre o Grupo Wagner e as forças armadas russas. O líder desse grupo paramilitar, Yevgeny Prigozhin, fez, recentemente, um apelo público para o envio de munições para aos seus combatentes na Ucrânia. Assim, de certa forma, ele lançou uma disputa aberta com a liderança militar russa.

Prigozhin ainda publicou uma imagem, na rede social Telegram, na qual aparecem os corpos de dezenas de combatentes, de seu grupo, mortos e amontoados. Uma espécie de “chantagem” emocional para conseguir mais munições e ao mesmo tempo expor o comando do Ministério da Defesa russo.

Foto do FBI mostrando o empresário Yevgeniy Prigozhin em sua lista dos mais procurados. (Foto: FBI)

Tudo indica que esse aumento de exposição do Grupo Wagner e de seu líder tem claras pretensões políticas. Ao se envolver cada vez mais na política enquanto lidera a luta por Bakhmut, magnata Yevgeny Prigojin começa a incomodar aliados do governo em Moscou. Além do mais, as guerras, que sempre foram uma excelente oportunidade de negócios para determinados grupos, têm revelado a lucrativa faceta da atuação de empresas militares privadas.

*Norberto Salomão é Advogado, Historiador, Professor de História, Analista de Geopolítica e Política Internacional, Mestre em Ciências da Religião e Especialista em Mídia e Educação.

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